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Bildung: uma nebulosa na educação contemporânea

Bildung: a nebula in contemporary education

Leandro José Kotz

Doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação nas Ciências da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ. Bolsista Taxa Prosup/Capes.
E-mail: [email protected]

Resumo

O presente artigo tematiza a compreensão de uma formação mais alargada na interface com a ética no cenário contemporâneo da educação. Parte-se do pressuposto de que a formação não é possível sem a ética, ao passo que, a formação pode potencializar nos indivíduos o discernimento ético. Entretanto, as propostas pedagógicas que se inspiram na Bildung (formação alargada) com uma interdependência na axiologia, podem de modo genérico, cair em uma armadilha do mercado globalizado. Destarte, é mister proceder uma crítica sem reservas às forças ideológicas que corrompem com o possiblidade de formar o humano de modo integral, denunciando a educação que prepara para funções específicas, dito de outro modo, para o mercado de trabalho. Por fim, cabe frisar que a Bildung corre o risco de degenerar-se em ideologia de mercado – se é que não se degenerou.

Palavras-chave: Bildung. Educação contemporânea. Mercado.

Abstract

This article studies the understanding of a broader formation in the interface with ethics in the contemporary scenario of education. The assumption is that training is not possible without ethics, whereas training can empower individuals with ethical discernment. However, the pedagogical proposals inspired by Bildung (broad formation) with an interdependence in axiology can, in a general way, fall into a trap of the globalized market. Hence, it is necessary to proceed with an unreserved criticism of the ideological forces that corrupt the possibility of integrally forming the human, denouncing the education that prepares for specific functions, in other words, for the labor market. Finally, it should be stressed that the Bildung runs the risk of degenerating into a market ideology - if it has not degenerated.

Keywords: Bildung. Contemporary education. Marketplace.

1 Introdução

No título da presente pesquisa, está esboçada a hipótese de trabalho. O que é remanescente da Bildung – formação cultural alargada – no cenário contemporâneo são elementos difusos e amalgamados com o ideal de educação do capitalismo globalizado. Nesse sentido, a Bildung passou por um processo de desenraizamento de sua compreensão originária. De formação integral e ampla passa a se restringir a um propósito, preparar indivíduos para o mercado de trabalho. Essa concepção, evidentemente, implica em consequências do ponto de vista ético. O processo educativo é arquitetado por uma racionalidade instrumental que tem por escopo formar pessoas altamente qualificadas – em teoria –, mas que têm dificuldade e/ou são incapazes de discernimento ético e de pensar criticamente as questões do chão da vida e da própria existência.

Uma suposta formação com vistas a maioridade intelectual, mas que é parcial e tutelada pelo sistema econômico para ficar entre a maioridade e a menoridade (ademais, alguém que não tem instrução técnica mínima não é incorporado no mercado). Prova disso é a incapacidade de discernimento ético e de conduzir de forma autônoma a própria existência além de pensar as questões do chão da vida – nisso está implícito a incapacidade de fazer uso do próprio entendimento. Hodiernamente, algumas características da Bildung são promessa de instituições formais de ensino, mas que de modo geral, são um estratagema empregado como marketing. Diante de uma economia que não esboça nenhum rosto humano1, cresce a preocupação em salvaguardar alguns valores, potencialmente, oferecidos por essas instituições de ensino.

Para entender o dinamismo da redução da educação institucional ao objetivo de formar para o mercado de trabalho, faz-se mister, interpretar alguns elementos da atual conjuntura do capitalismo, a serviço do qual está a educação. Faz-se isso, a partir das contribuições teóricas do economista Franz Hinkelammert. Em um segundo momento, desdobra-se a ideia de que a Bildung não escapa do mercado e, portanto, é oferecida como uma mercadoria. Portanto, o objetivo da presente pesquisa pode ser descrito por meio de uma citação de Adorno: “pensar é, já em si, antes de todo e qualquer conteúdo particular, negar, é resistir ao que lhe é imposto” (2009, p. 25).

2 Capitalismo globalizado e a política de mercado absoluto

Na atual conjuntura, sobretudo, em países que adotam uma política neoliberal, a esfera econômica determina as demais. Não se trata de fazer um juízo qualificativo, mas perceber que a lógica de mercado prevalece e imprime suas demandas nas demais esferas, ou seja, constituiu-se num primado. Sendo assim, nem mesmo a educação escapa de suas malhas, tampouco, percebe-se nela um contra ideal que possa emergir. Se assim for, o ensino é arquitetado, em boa media, pelo sistema econômico e para o sistema.

Hinkelammert descreve o processo de globalização analogamente a um furacão. Por onde passa devasta. Não há força de resistência relevante, ou ainda, algo que impeça um furacão. Dedutivamente, infere-se que a consequência produzida pela falta de um padrão de resistência tornou-se principal argumento de legitimação da globalização e, única possibilidade concreta para pensar a economia. Conforme o economista, “la aparente falta de alternativas contribuyó a la legitimación del proceso. Como, aparentemente, ya no hay espacios de soluciones alternativas, la globalización y el sometimiento a ella es presentado como realismo” (HINKELAMMERT, 2001, p. 5).

A suposta falta de alternativas, contudo, não impede o pensamento de projetar e buscar outras opções. Porém, se se perguntar por modelos que tensionem a economia de mercado, não se pode ter em conta o mercado enquanto tal até os dias hodiernos. Para Hinkelammert, não há problema com a economia de mercado, o mercado é o problema (cf. 2001, p. 27). A pergunta pela alternativa deve surgir do núcleo desse paradigma. De mais a mais, ao longo da tradição alternativas foram pensadas e algumas objetivadas, mas que entraram em colapso como, por exemplo, o socialismo, ou sequer foram adotadas, como o comunismo. Segundo Hinkelammert, uma possibilidade é a aposta em um capitalismo solidário como antítese ao selvagem e predador. Porém, essa opção implica em mudança civilizacional global2, que hodiernamente está em segundo plano para muitas nações3. “Alternativas aparecem en el interrior de los mercados, para oponerse a la lógica del mercado, que es lógica del mercado total” (HINKRLAMMERT, 2001, p. 27). Todavia, o problema tange ao mercado total, em nome dele, sustenta-se que não há nenhuma alternativa. O mercado é apresentado como alternativa para o estado. Subjacente a esse processo, encontra-se a teologia com seu jogo de linguagem que é incorporada pelo modelo econômico revestindo-se de uma aura soteriológica, dito de outro modo é a solução da história, logo fora da economia de mercado não há salvação4.

Numa perspectiva técnica, conforme Hinkelammert sabe-se de que fonte emanariam alternativas, por meio de: “[...] uma nova ordem mundial dos mercados, das finanças e do meio ambiente” (2001, p. 29). Contudo, tais perspectivas são negadas diante da totalização do mercado. Assim sendo, não há telos em sustentar a ideia de alternativas ou instâncias reguladoras do mercado selvagem. As alternativas não são impossíveis como tais, são feitas impossíveis, quando se nega sua legitimidade. O resultado é a destruição violenta do esforço cognoscível5 em buscar soluções e da vida de modo geral (cf. HINKELAMMERT, 2001, p. 28-29).

A sociedade que alimenta e acredita que não há alternativas tem como critério econômico-político a eficácia. Diante da eficácia cai qualquer conjectura de contra ideal, isto porque este modelo é o que mantém as maiores taxas de desenvolvimento econômico6, por conseguinte, teoricamente estabeleceria uma condição de igualdade entre os indivíduos – ou ao menos teria maior probabilidade. No entanto, altas taxas de crescimento econômico não resultam necessariamente em condições melhores de vida para as minorias (entende-se por minoria, grupos sociais que não possuem direitos reconhecidos, negados ou negligenciados). Portanto, trata-se de uma ilusão e ao mesmo tempo configura-se numa crença no deus mercado, como modo de erradicação dos problemas, isso por seu turno, não permite alternativa, aliás, desejá-la é no mínimo ingenuidade (pois esse modelo é o que permite maior crescimento), além de ser um ataque contra a humanidade (uma vez que pode gerar igualdade social entre os desiguais).

A taxa de desenvolvimento econômico com seu critério de eficiência é instância que regula a axiologia. “En su criterio central de eficiência formal, que fue considerado como el tribunal máximo, que decide sobre los valores humanos y éticos” (HINKELAMMERT, 2001, p. 30). Apenas o que é eficiente possui valor. A eficiência é o critério ético supremo do qual se derivam os demais valores. Essa perspectiva engendra uma lógica necrófila, um círculo sacrificial ao deus mercado e, quando se fecha, tudo é lícito. Os indivíduos guiam-se pela relação meio-fim, mas não percebem que ao atingir o fim que tanto disputam entre si, já não há mais possibilidade de ter fins, pois mortos não desejam.

Estamos com dois competidores que estão sentados cada um sobre um galho de uma árvore, cortando-o. O mais eficiente será aquele que conseguir cortar primeiro, com maior rapidez, o galho sobre o qual está sentado. Cairá primeiro, mesmo que tenha ganho a corrida pela eficiência (DUCHROW; HINKELAMMERT, 2003, p. 31).

A própria lógica de mercado traça estratagemas para as relações de produção e sociais, pois contém em seu seio o critério ético supremo - eficiência. Os valores que emergem disso são os mais corretos e humanos, segundo essa concepção. Por esta razão, uma alternativa é imoral e um ataque aos direitos humanos7, além de obviamente destruir com a ordem e, por conseguinte, com a economia.

Solamente lo que es eficiente, tiene valor o lo tiene potencialmente. Lo que no es eficiente, no es admisible en cuanto valor ético. Entonces toda la ética se reduce a la enseñanza de la eficiencia formal que llega a ser el criterio ético supremo. Si se sigue a un criterio de este tipo, evidentemente esta ética es la instancia suprema de la legitimación que son consideradas como las más eficientes y que están implicadas en el supremo criterio ético. Entre ética y relaciones de producción nunca puede aparecer la más mínima tensión. Se han identificado. [...] Portanto, los valores que ellas determinan, son los valores correctos, más acertados y más humanos. [...] Portanto, solamente este sistema burgués puede hacer legítimamente el chantaje com una sola alternativa. Es el sistema que gana. ¿Quién tiene razón? Quién gana! Las tasa de crecimiento basada en el mercado, que sigue a la maximización de las ganâncias, es la mayor. Portanto, la economía del mercado es la única economía para la cual no hay alternativa (HINKELAMMERT, 2001, p. 30-31).

Por fim, como síntese dessa seção, cabe citar Adorno – segundo o entendimento aqui sustentado, o filósofo frankfurtiano compreendeu bem o processo do capitalismo tardio. “Nenhuma teoria escapa mais ao mercado: cada uma é oferecida como possível dentre as opiniões concorrentes, tudo pode ser escolhido, tudo é absorvido” (ADORNO, 2009, p. 12). Se for assim, o mercado é instrumentalizador da educação e, inclusive, de padrões de resistência.

3 “Nenhuma teoria escapa mais ao mercado”

Nesse cenário negativo do mercado total, encontram-se algumas resistências como, por exemplo, a aposta em instituições de ensino que prometem uma formação ampla, integral e profundamente enraizada na axiologia como contraponto a avalanche do mercado globalizado. Entretanto, em que medida essa formação não passa de mera mercadoria? A relação entre esse tipo de formação e a ética está articulada nos processos educacionais institucionais? Qual é o topos da ética na formação? O que se compreende por formação alargada? Não se pretende responder essa problemática, mas cabe fazer algumas ponderações à luz da suspeita hermenêutica que move esta interpretação desde sua gênese, qual seja, a Bildung pode ter sido reduzida a uma mercadoria entre outras.

De onde brota essa suspeita? De sua necessidade! Por que há necessidade da ética e formação estarem em uma relação de reciprocidade e interdependência? Essa questão emana do chão da vida – do qual brota o imperativo de uma formação mais alargada diante da destruição da vida produzida pelo sistema, entretanto, o que se tem é uma educação para o mercado que é sintoma de esvaziamento da Bildung conforme seu sentido clássico (cf. FLICKINGER, 2010, p. 177-178). Outrora o sentido de uma formação mais alargada consistia em estimular a autonomia e a autodeterminação à luz do esclarecimento (cf. FLICKINGER, 2010, p. 177). Para preservar a esperança de uma sociedade independente e pautada pela racionalidade.

O sentido clássico de Bildung remete a Aufklärung, entre seus idealizadores, destaca-se Kant,

Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento [Aufklärung] (KANT, 2012, p. 63-64).

Para sair da condição de menoridade, deve-se ter coragem de servir-se de seu entendimento, libertando-se das determinações e direções impostas por outrem. A saída da menoridade não é tarefa fácil, no entanto, não assumi-la é ser pusilânime e, portanto, culpado da condição de menoridade. De resto, a menoridade confere estabilidade e conforto, pois não há nada sobre o que deliberar, porque se está sob a tutela de alguém ou de alguma coisa (uma revista, um livro, uma receita, um guru espiritual entre outros) (cf. KANT, 2012, p. 64). Nesse sentido, a Aufklärung precisa ser compreendida, neste aspecto, em sua positividade. Ademais convoca ao processo de desmistificação e emancipação a partir de uma formação cultural ampla que promove a saída da menoridade8, sendo expressão máxima disso, o uso público da razão. Há, contudo, um aspecto negativo,

Adorno e Horkheimer, em Dialética do Esclarecimento, mostraram o contraponto dessa concepção de esclarecimento: a razão emancipatória, no capitalismo tardio, converte-se em razão instrumental; o esclarecimento transforma-se dominação e alienação. Essa mudança de perspectiva da racionalidade é problemática séria. O esclarecimento tinha a pretensão de libertar os seres humanos do mito. Com essa modificação de caráter, o próprio esclarecimento torna-se mito, justificação ideológica (WERLANG, 2005, p. 20).

A Bildung (em sua gênese) configura-se em uma crítica ácida aos processos modernos de especialização e da fragmentação dos saberes, nos quais sobressai o utilitarismo pragmático, com a ideia de uma formação voltada ao que é útil. De crítica ao processo produtivo e formativo, a formação alargada é transformada em razão instrumental e, portanto, segundo Adorno, tem dívidas com o paradigma de barbárie9.

Para Flickinger a Bildung está desarraigada de sua dimensão fundante e de seu enlace com a ética que fomenta a autodeterminação. Observa-se que na formação alargada cultural o cerne da prática pedagógica é o humano. Contudo, nas sociedades contemporâneas – nas quais é predominante a produção material – a formação cultural está intimamente vinculada à ideia de status10 e de exploração.

Não é mistério algum que as sociedades capitalistas, nas quais vivemos, estejam girando em torno do trabalho. Por isso mesmo, é a integração do indivíduo no mercado de trabalho que lhe providencia não apenas materiais para sua subsistência, senão, antes de tudo, o reconhecimento como membro valioso da comunidade. Quem não consegue acesso a este mercado corre o risco de uma exclusão social. [...] Quem quiser alcançar um mínimo de independência pessoal terá de concentrar todo o esforço no aperfeiçoamento das condições que o acesso ao mercado de trabalho exige (FLICKINGER, 2010, p. 179).

Impera a lógica econômica nas relações sociais as quais não se pautam por valores chancelados pela ética como morais – mas conforme foi desdobrado na seção anterior, pelo valor imoral de eficiência. Nas diversas esferas sociais [...] “as transformações aí vividas tenham servido, antes de mais nada, para aperfeiçoar e sofisticar o domínio da lógica econômica sobre o ser humano” (FLICKINGER, 2010, p. 179). Com o mercado totalizado alguns indivíduos são jogados nele para sobreviver. Mesmo que o mercado seja reificador, busca-se por meio da educação e da especialização, uma qualificação profissional para ingressar no mercado de trabalho (isso é posto como principal sentido da educação11) e, por conseguinte, realizar-se enquanto humano. Entretanto, tal realização é dúbia, ademais está regulada pelo estratagema meio-fim. O trabalho nas sociedades capitalistas contemporâneas é um meio para adquirir bens materiais ou ainda para a acumulação de capital, estas são as finalidades. Logo, a necessidade econômica determina o tipo e qualificação, e não propriamente a vontade de optar por uma qualificação ou profissão independente de sua remuneração. “Não é o homem cujas vontades e aspirações condicionam o processo de sua formação” (FLICKINGER, 2010, p. 187).

[...] não é mais o homem que se realiza por meio de seu trabalho; [...] Ao contrário, a sociedade de trabalho efetua-se por meio da economização abrangente do homem, desacoplando-se assim do que originalmente compôs o ideal da formação no seu pleno sentido da Bildung; a saber, do interesse ético-social e biográfico-construtivo (FLICKINGER, 2010, p. 180).

A relação que se estabelece entre formação e trabalho condiciona o indivíduo, pois nem sempre o trabalho ao qual se submete é de seu interesse, ou como Flickinger afirma, foi subtraída do indivíduo sua autonomia e autodeterminação biográfica. Dito de outro modo, no mercado totalizante, no qual tudo é determinado pela economia, pouca ou nenhuma possibilidade há para seguir a vontade e, por conseguinte, ser o protagonista da própria existência (biografia). Assim, infere-se, que a relação entre formação e trabalho resulta em uma liberdade forçada. Diante das rápidas mudanças no conhecimento e no mundo do trabalho, surge a sensação de insegurança e instabilidade. Destarte, a formação pode ser anacrônica ou deve ser contínua, pois contínuas são as mudanças na ciência, na tecnologia e no trabalho. O processo de aperfeiçoamento contínuo, na sua imediatidade parece proporcionar liberdade e autonomia e, consecutivamente, garantir segurança no que concerne em manter-se no mercado de trabalho. Isso “[...] resulta de um processo de modernização que, no fundo, visa ao aperfeiçoamento da camisa de força à qual o homem está sendo entregue; [...] o homem vive o sofrimento pelo pesadelo a liberdade” (FLICKINGER, 2010, p. 182). Trata-se de uma liberdade que não tem origem no indivíduo, mas de uma necessidade que lhe é estranha.

Portanto, nesta seção, tentou-se demonstrar que, a Bildung como ideal de formação mais alargada interligada com a ética é esvaziada de sua pretensão fundante/originária e transformada em mercadoria. Ao invés de proporcionar autonomia aos homens, a formação é confiscada e distorcida – de ampla à restringida - pelo mercado que se impõe como elemento primordial para potencializar a liberdade econômica e, a partir desta, a liberdade de modo geral.

4 Conclusão

Uma educação que é refém do mercado é aporética no que concerne ao desenvolvimento de uma formação mais alargada. Diante desse limite, não se trata de uma simplificação da complexidade dos processos sociais, políticos e econômicos nos quais a educação está envolvida, mas em perceber que a formação institucional é frágil e pode estar corroborando a razão instrumental/técnica. Daí que, pensar o retorno da Bildung em seu sentido originário poderia constituir-se como antídoto, através da crítica corrosiva que traz intrinsecamente ao utilitarismo e ao pragmatismo que regem a vida social e econômica. Se assim for, então a tarefa do pensamento consiste em proceder com a crítica ao mercado e a formação, em uma tentativa de colar os fragmentos difusos da Bildung – aquilo que resta, mas que é distorcido em função do lucro.

Conforme Flickinger, o sentido fundante da Bildung pensa “o ser humano na sua íntegra e não somente como elemento funcional em um sistema por ele vivido como um mundo a ele impingido” (2010, p. 193). Esse discurso, a saber, de promover o humano na íntegra é assumido por várias instituições formais de ensino, mas, sobretudo, como marketing, ou seja, um estratagema empregado pelas instituições de ensino em uma luta por alunos. Isso fica nítido na medida em que o processo formativo mais amplo não está claro para as próprias instituições e, por essa razão, muitas vezes, não está definido no projeto político pedagógico de modo claro. Em outras palavras, não se sabe ao certo o que é e como objetivar a Bildung na interface com a ética na contemporaneidade.

Diante do mercado globalizado total, pensar é resistir, conforme Adorno. E este é o grande objetivo da presente reflexão, de mais a mais, consiste em uma denúncia de um determinado padrão estabelecido e que inibe qualquer alternativa. Daí que, as instituições de ensino não podem prescindir do pensamento crítico em relação as novas demandas oriundas do mercado que lhes são impostas. Reconhece-se que essas preocupações – elaborar alternativas, tanto para o mercado total e para a educação intrumentalizadora – não foram assumidas nesta reflexão, não obstante, são de grande relevância. Conforme os filósofos frankfurtianos, a esperança preserva-se naquilo que está fora da lógica de mercado. Caberia, portanto, indagar o que está fora desse âmbito. Nesse sentido, Flickinger sinaliza para espaços (como, por exemplo, grupo de jovens e de motoqueiros, cf. 2010, p. 189-190) nos quais os indivíduos buscam uma liberdade não forçada para constituírem suas biografias. São espaços de formação não institucionais, mas nos quais os indivíduos são protagonistas, isto é, podem deliberar e, portanto, gozam de uma determinada autonomia.

Como a educação está reduzida a ditadura do mercado,

[…] parece-me que temos de contar com a interdependência constitutiva entre a educação formal-institucional e um espaço não formal de experiências formadoras. Porque, na medida em que os processos institucionais da educação tentam inserir os indivíduos nos caminhos de qualificação prefigurados pelo mercado de trabalho e pelo mundo econômico em transformação permanente – mundo este que é desacoplado do mundo da vida e dos interesses essenciais das pessoas –, estes mesmos criam chances de experienciar espaços de vida e modos de agir por eles mesmos escolhidos, em correspondência com suas necessidades e seu entendimento de uma vida autônoma (FLICKINGER, 2010, p. 189).

Portanto, as experiências educacionais não formais permitiriam o exercício da autonomia, seriamente, comprometido como acima foi desenvolvido. No entanto, isso não significa o descarte da formação institucional. Por fim, trata-se de mover em um horizonte utópico crítico. Crítico porque não se negligencia a complexidade subjacente nos atuais processos educacionais de adestramento e utópico, pois há esperança de colar os elementos difusos da Bildung – usurpada pelo mercado e comercializada – e, por conseguinte repensar uma formação com vistas à autonomia e à autodeterminação.

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Revista Brasileira de Ensino Superior, Passo Fundo, vol. 4, n. 1, p. 97-109, Jan.-Mar. 2018 - ISSN 2447-3944

[Recebido: Dez. 12, 2017; Aceito: Fev. 21, 2019]

DOI: https://doi.org/10.18256/2447-3944.2018.v4i1.3183

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