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A relação entre a escolaridade e a pobreza: uma análise das políticas para democratização do acesso ao ensino superior no Brasil

The relationship between schooling and poverty: an analysis of policies for democratization of access to higher education in Brazil

Cassiana Ferreira Simões(1); Shirlena Campos de Souza Amaral(2)

1 Universidade Federal Fluminense – UFF, Campos RJ, Brasil.
E-mail: [email protected] | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3516-0376

2 Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF, Campos RJ, Brasil.
E-mail: [email protected] | ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0178-4970

Resumo

O artigo ora apresentado intenciona analisar a democratização do acesso ao Ensino Superior no Brasil enquanto mecanismo de inclusão social das minorias e superação da pobreza. Tal perspectiva nasce num contexto neoliberal em que se relaciona a pobreza com a ausência da educação formal e conseguintemente a qualificação profissional como mola mestra para acesso ao trabalho e à renda. Como critério metodológico, o estudo foi realizado a partir de fontes bibliográficas, onde discute-se os conceitos de pobreza, bem como a lógica meritocrática em contraposição à igualdade de oportunidades, no que concerne às políticas de democratização do acesso ao ensino superior pós anos 90. Para tanto, fundamentar-se-á em John Rawls e seu princípio de igualdade equitativa de oportunidades e complementar-se-á o trabalho com a análise de dados disponíveis, no IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), MEC (Ministério da Educação e Cultura) e INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), onde a partir de então se delimitará o público que tem acesso ao Ensino Superior, e ainda a relação existente entre pobreza e escolaridade. Diante aos resultados o estudo perpassará ainda pela discussão da dualidade público x privado e do público não estatal, pois verificou-se uma primazia da expansão do ensino superior privado em detrimento do público. Conclui-se, todavia que, apesar dessa dicotomia, a chamada democratização do ensino superior, tem proporcionado o acesso da população baixa renda aos cursos superiores, tendo evidente impacto do nível de escolarização deste público.

Palavras-chave: Pobreza. Acesso ao Ensino Superior. Inclusão social.

Abstract

The present article intends to analyze the democratization of access to Higher Education in Brazil as a mechanism for social inclusion of minorities and overcoming poverty. This perspective is born in a neoliberal context in which poverty is related to the absence of formal education and, consequently, professional qualification as a mainspring for access to work and income. As a methodological criterion, the study was carried out from bibliographical sources, where the concepts of poverty as well as the meritocratic logic as opposed to equal opportunities are discussed, as far as politics of democratization of access to higher education after the 1990s To this end, it will be based on John Rawls and his principle of equitable equality of opportunities and will complement the work with the analysis of available data, in the IBGE (Brazilian Institute of Geography and Statistics), MEC (Ministry of Education and Culture) and INEP (National Institute of Studies and Educational Research Anísio Teixeira), where from then on the public that has access to Higher Education will be delimited, as well as the relationship between poverty and schooling. In view of the results, the study will also be based on the discussion of public x private and non-state public duality, since the expansion of private higher education to the detriment of the public has been paramount. It is concluded, however, that despite this dichotomy, the so-called democratization of higher education, has provided low-income population access to higher education, with a clear impact on the level of education of this public.

Keywords: Poverty. Access to Higher Education. Social Inclusion.

Introdução

A educação no Brasil permeia-se por elementos que expressam a desigualdade socioeconômica do país. Em se tratando de educação superior, considera-se que mesmo com as recentes reformas, não se pode falar literalmente em democratização do acesso, haja vista que as políticas de expansão se deram num âmbito dicotômico público-privado, percebendo-se ainda que a estrutura do sistema educacional do país prioriza sobremaneira os interesses privados, com um número maior de instituições, vagas e matrículas na rede particular em detrimento da rede pública que continua a carecer de recursos físicos, humanos, e financeiros.

Desta forma, tendo ainda como enfoque a pobreza e sua relação com a educação e entendendo a pobreza como multidimensional, o presente artigo propõe-se a elucidar o público que está tendo acesso ao ensino superior. Estamos de fato atendendo a pobreza absoluta, ou apenas a pobreza relativa? Qual a relação existente entre pobreza e escolaridade? Desta forma, pretende-se verificar o papel da educação na reprodução e legitimação das desigualdades sociais, pois confia-se que:

A pobreza pode ser mais bem entendida como referente não apenas aos que são vítimas da má distribuição e recursos, porém, mais exatamente àqueles cujos recursos não permitem, em primeiro lugar, satisfazer as refinadas exigências e normas sociais impostas aos cidadãos dessa sociedade (TOWNSEND, 1996, p. 580).

Neste sentido, acredita-se que a educação, coadjuvando com outros determinantes passa a ser nas sociedades modernas um mecanismo de ascensão social, contudo vale ressaltar que ascensão social não significa erradicação da pobreza. De acordo com Hoffmann (2000, p. 104): “Não há dúvida de que a escolaridade é um determinante importante do rendimento das pessoas. A educação é um dos caminhos clássicos de ascensão social”. Em complemento acredita-se que: “[…] a pobreza mais cruel, a mais extrema, é a que rouba também a possibilidade de pensar diferente. A que deixa você sem horizontes, nem ao menos desejos: condenado ao mesmo inevitável”. (CAPARRÓS, 2016, p. 12), e o acesso ao ensino superior pode se configurar na superação de tal condição.

Sendo assim, num primeiro momento, o artigo por meio de uma interlocução entre autores busca conceituar a pobreza e suas formas de representação na sociedade brasileira, procurando com isso demonstrar qual a população que as políticas de acesso ao Ensino Superior têm atingido. Num segundo momento, pretende-se a partir da análise das atuais políticas de democratização do Ensino Superior pós anos 90, verificar se as mesmas podem ser consideradas políticas de redistribuição de oportunidades e de inclusão social. Ressalta-se que, durante esse processo serão utilizados dados estatísticos buscando demonstrar a relação entre pobreza e escolaridade, na tentativa de verificar em que medida o Ensino Superior tem sido possível às minorias pobres.

O conceito de pobreza e sua relação com a escolaridade

Partindo do conceito de estratificação social adotado por Max Weber, o qual para o autor não é definida apenas economicamente, mas também nas dimensões social e política, sendo que a dimensão social leva em consideração o prestígio, assim como o grau de conhecimento, a posição dentro das instituições sociais e a religião, enquanto a dimensão política concentra-se no grau de poder e entendendo que desta forma, o autor valoriza as oportunidades de vida e as oportunidades de acesso a bens e serviços alcançados pelos indivíduos, acredita-se que torna-se mister a promoção de ações para inclusão das minorias no ensino superior, entendendo que este pode e deve ser um mecanismo de ascensão social.

Citando, ainda, a afirmação de Giddens (2001, p. 78), o qual diz que: “A principal força do desenvolvimento de capital humano obviamente deve ser a educação. É o principal investimento público que deve estimular a eficiência econômica e a coesão cívica”; há que se lembrar que no contexto brasileiro, apenas o ensino fundamental é obrigatório, fazendo com que as demais etapas de ensino sejam opcionais.

Desta feita, considerando a família baixa renda como uma unidade de rendimentos, aqui se enfatiza que a opção por cursar o ensino superior depende sobremaneira da condição socioeconômica da família, ao passo que a opção pela matrícula pode significar menos uma força de trabalho na composição da renda familiar, ou seja, o ingresso do pobre no ensino superior para muitos significa menos uma renda para a família e estes enfrentam veementemente a possibilidade de abandono dos estudos. “Con la educación obligatoria, el Estado exige del individuo que aprenda un mínimo, pero deja a su arbítrio el aprender más o incluso “demasiado” (SIMMEL, 2014, p. 61). Desta forma, responsabiliza-se unicamente o sujeito pela continuidade dos estudos.

Entende-se, sobretudo, que a pobreza não reduz apenas às privações materiais, a pobreza atinge igualmente o campo espiritual, moral e político. A pobreza muito mais do que falta de comida, habitação ou afins, é carência de direitos, de possibilidades e de esperança (YASBECK, 1996, p. 63). Para Mollat:

El pobre es aquel que, de manera permanente o temporal, se encuentra en una situación de debilidad, de dependencia, de humillación, caracterizada por estar privado de los medios, variables según las épocas y las sociedades, de potencia y de consideración social: dinero, relaciones, influencia, poder, ciencia, calificación técnica, honorabilidad del nacimiento, vigor físico, capacidad intelectual, libertad y dignidad personales. Viviendo al día, no tiene ninguna oportunidad de levantarse sin la ayuda ajena. Una definición tal puede incluir a todos los frustrados, a todos los abandonados, a todos los asociales, a todos los marginados; no es específica de ninguna época, de ninguna región, de ningún medio. No excluye tampoco a aquellos que, por ideal ascético o místico, quisieron desprenderse del mundo o que, por abnegación, escogieron vivir pobres entre los pobres. (MOLLAT, 1978, p. 12).

Contudo, a pobreza que aqui se refere para análise do acesso ao ensino superior é aquela vinculada estreitamente à desigualdade de renda e sobretudo caracterizada pela situação de vulnerabilidade socioeconômica. Estamos assim, tomando como base o conceito de privação relativa em que:

As pessoas sofrem uma privação relativa se não podem obter regime alimentar, confortos, padrões e serviços – que lhes permitam desempenhar os papéis, participar das relações e ter o comportamento habitual que se espera delas como membros da sociedade (TOWNSEND, 1996, p. 580).

Portanto, viabilizar o acesso à universidade, de forma a efetivar uma verdadeira inclusão das camadas menos favorecidas economicamente, deve se configurar em ampliação de oportunidades e em mecanismo de ascensão sociocultural e deve visar sobretudo, o alcance do status de cidadania, pois acredita-se que “a cidadania é fundamentalmente um método de inclusão social”. (SOUKI, 2006, p. 41).

Concorda-se ainda com Oliveira (2011), quando afirma que o vínculo entre educação e desigualdade social é inegável e tem consequências importantes na política educacional.

A educação tem sido apresentada, na América latina como em outras partes, como o principal instrumento para solucionar os problemas de pobreza, desigualdade e falta de oportunidade que afetam os segmentos mais pobres da região. Primeiro, acredita-se que a educação, como capital humano, aumenta a produtividade e gera riqueza. Depois, a ampliação do acesso à educação daria mais oportunidades a todos, reduzindo a desigualdade social. Terceiro, ao difundir os valores de convivência social e comportamento ético, a educação fortaleceria o capital social, gerando mais confiança, honestidade e credibilidade nas transações econômicas, fortalecendo os mercados e criando um ambiente mais favorável para os investimentos. (SCHWARTZMAN, 2004, p. 481, grifos nossos).

No entanto, para saber se as políticas educacionais têm se configurado numa política de redistribuição de oportunidades, é importante conhecer quem são estes alunos que estão acessando as universidades. Conforme o relatório “Perfil Socioeconômico e Cultural dos Estudantes de Graduação das Universidades Federais Brasileiras” publicado em 2011:

Os estudantes de raça/cor/etnia branca são maioria (54% contra 59% em 2004), em especial na classe A (74%). O percentual de estudantes de raça/cor/etnia preta aumentou de 5,9% em 2004 para 8,7% em 2010. Este aumento ocorreu em todas as regiões, com destaque para a região Norte, que praticamente dobrou o seu percentual (13,4% contra 6,8% em 2004), e a região Nordeste, que teve um aumento de 46% (12,5% contra 8,6% em 2004). O universo de estudantes de raça/cor/etnia preta e parda também aumentou (40,8% contra 34,2% em 2004) e sua maior concentração está nas classes C,D e E (53,3% contra 43,7% em 2004). (ANDIFES, 2011, grifos meus).

Ao analisar a classificação dos estudantes por renda familiar detecta-se que 41% das famílias recebem até três salários mínimos. Porém, há grandes disparidades regionais. Este percentual cresce significativamente nas regiões Nordeste e Norte para 50% e 63%, respectivamente, e cai sensivelmente para as regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste para 31, 32 e 33%, respectivamente. (ANDIFES, 2011, grifos nossos).

Quadro 1. Números de matriculados nas IES por raça/etnia declarada

q1.png

Fontes: INEP/ Microdados da Educação Superior. In: SENKEVICS, 2017.

Os dados apresentados acima, os quais referem-se aos Censos da Educação Superior nos anos de 2012 até 2013, também revelam um aumento gradual do acesso de alunos que se autodeclaram negros ou pardos. Analisando-os, cumpre ressaltar que:

Mesmo se se considerar a proeminência da desigualdade entre ricos e pobres na explicação dos fenômenos sociais, o modo como ela se expressa na contemporaneidade brasileira é problemático, uma vez que os indicadores sociais mostram uma confluência entre desigualdade econômica e desigualdade racial (SILVÉRIO, R.V., 2002, p. 222, grifos nossos).

Isto posto, ao passo em que verifica-se que está havendo um número cada vez maior de negros acessando o ensino universitário, conclui-se que isto se dá igualmente para a população em vulnerabilidade socioeconômica. Dessa forma, aqui se evidencia a equidade educacional, partindo do princípio de justiça social que pressupõe a oferta de oportunidades iguais de educação aos desiguais socialmente (RAWLS, 2003). Concluí-se assim que, a justiça social vem se efetivando de forma crescente, no que diz respeito ao acesso ao Ensino Superior.

Por sua vez, conforme dados da PNAD, o percentual de pessoas com nível superior subiu de 6% em 1995 para 10% em 2009, o número de ingressos no mesmo nível de ensino passou de 510.000 para 1.5 milhões, em contraposição o coeficiente de Gini que mede o grau desigualdade na distribuição de renda, permanece o mesmo desde a década de 70. Dessa forma, depreende-se que a política educacional, classificada para muitos teóricos como uma política de enfretamento à pobreza, até o fim do século XX, não conseguiu quiçá a minimização da desigualdade social, ou seja, não se configurou numa forma a dividir o “bolo”, mas sim em um método alternativo para ter acesso a uma fatia do mesmo, o que torna a desigualdade social perene.

No que concerne a renda familiar dos concluintes do ensino superior dispostos Quadro 2 verificamos que, o quantitativo de famílias que possuem renda de até 1,5 salário mínimo (10,4%) é inferior aos que as famílias recebem mais de 10 salários-mínimos (13,8%). Tais dados ratificam a desigualdade socioeconômica ainda presente no Ensino Superior.

Quadro 2. Renda familiar de alunos participantes do ENADE1 2015

Faixa de renda familiar

BRASIL

Percentual

Até 1,5 salário mínimo (até R$ 1.086,00)

48.861

10,4%

De 1,5 a 3 salários mínimos (R$ 1.086,01 a R$ 2.172,00)

116.564

24,8%

De 3 a 4,5 salários mínimos (R$ 2.172,01 a R$ 3.258,00)

98.699

21,0%

De 4,5 a 6 salários mínimos (R$ 3.258,01 a R$ 4.344,00)

67.595

14,4%

De 6 a 10 salários mínimos (R$ 4.344,01 a R$ 7.240,00)

72.767

15,5%

De 10 a 30 salários mínimos (R$ 7.240,01 a R$ 21.720,00)

52.018

11,1%

Acima de 30 salários mínimos (mais de R$ 21.720,01)

12.591

2,7%

Sem Resposta

4

0,0%

Fonte: Sinopse do ENADE 2015 – Elaboração própria.

Contudo, ao verificar o quadro que segue, pode-se interpretar, que o acesso ao Ensino Superior têm sido crescente, à medida que analisa-se a escolaridades dos pais e ratifica-se que em média apenas de 15% tiveram acesso a este nível de ensino, e que a escolaridade preponderante dos mesmos se concentra entre os níveis fundamentais e médio, sendo assim acredita-se que ao passo que a escolaridade dos filhos tem se sobreposto a dos pais, confirma-se que as desigualdades educacionais têm diminuído de forma relevante.

Quadro 3. Escolaridade dos pais dos alunos participantes do ENADE 2015

Escolaridade do pai

Nenhuma

26.150

5,6%

Ensino Fundamental: 1º ao 5º ano (1ª a 4ª série)

133.413

28,4%

Ensino Fundamental: 6º ao 9º ano (5ª a 8ª série)

70.819

15,1%

Ensino Médio

143.168

30,5%

Ensino Superior – Graduação

70.785

15,1%

Pós-graduação

24.763

5,3%

Sem Resposta

1

0,0%

Escolaridade da mãe

Nenhuma

18.422

3,9%

Ensino Fundamental: 1º ao 5º ano (1º a 4º série)

116.645

24,9%

Ensino Fundamental: 6º ao 9º ano (5ª a 8ª série)

73.356

15,6%

Ensino Médio

152.087

32,4%

Ensino Superior – Graduação

71.199

15,2%

Pós-graduação

37.389

8,0%

Sem Resposta

1

0,0%

Fonte: Sinopse do ENADE 2015 – Elaboração própria.

Ainda neste contexto de análise da escolaridade dos pais, faz- se importante referenciar que tais dados vêm revelar uma alteração significativa no contexto sócio educacional dos últimos cinquenta anos, de acordo com o estudo de Ribeiro, Cineviva e Brito (2015), que em sua pesquisa evidenciaram a estratificação educacional entre os jovens no Brasil de 1960 a 2010, afirmando que:

[...] o efeito da escolaridade da mãe sobre as chances de conclusão do ensino superior é o mais estável entre todas as transições analisadas, indicando que quanto mais alta a escolaridade da mãe, maiores as chances de conclusão, em especial para filhos de mães com ensino médio e ensino superior completo. (RIBEIRO; CINEVIVA; BRITO, 2015, p. 103).

Contudo, após a implementação das recentes políticas de democratização do acesso ao ensino superior, as quais serão retratadas na próxima seção esta realidade começa a se transformar:

Veremos que, para além da acelerada redução na desigualdade de renda e consequente redução do grau de pobreza entendida como insuficiência de renda, nesta última década assistimos no Brasil uma excepcional expansão do acesso da população a uma ampla variedade de oportunidades. Fenômeno este particularmente mais acentuado entre os grupos mais vulneráveis. Portanto, não é só a desigualdade de renda que vem melhorando, mas também a desigualdade em diversos tipos de oportunidades (BARROS, 2011, p. 41).

Assim sendo, no decorrer da próxima seção se buscará detalhar estas políticas adotadas após os anos 90 e como estas têm impactado nesta alteração de perfil dos discentes, de forma que se reconheça sua importância, mas também que sejam apontadas suas lacunas e possibilidades de aprimoramento.

Políticas para democratização do acesso ao ensino superior pós anos 90

No decorrer dos anos 90, no governo de FHC, deu-se a aprovação da LDBEN (Lei de Diretrizes Básicas da Educação Nacional) de 1996, e com ela a criação de um conjunto de leis que regulam os mecanismos de avaliação do sistema de Educação Superior, recredenciamento das instituições de Ensino Superior, tomando como base as avaliações, renovação periódica para reconhecimento dos cursos, o que de certa forma veio afetar a autonomia do setor privado educacional, a criação de ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) como alternativa ao vestibular criado em 1911, a criação do Exame Nacional de Cursos, o Provão. “Com o governo Cardoso, o Brasil vivenciou mais uma etapa da reforma universitária consentida e conduzida pelo capital, nos marcos da expansão operacionalizada pelo projeto neoliberal de educação superior” (LIMA, 2013, p. 20).

Vale ressaltar que na década de 90 o setor empresarial/industrial atribuía à baixa escolaridade o motivo pelo atraso e baixa capacitação da força de trabalho para fazer frente à competividade externa, assim a elevação dos níveis de escolarização era uma das metas neste período e às universidades caberia a função de formar quadros especializados que pudessem atender o modelo capitalista dependente.

Num quadro em que as orientações dos organismos internacionais pautavam a agenda da implementação de políticas públicas dos países periféricos, retratadas nas necessidades de ajustes estruturais e de reforma do Estado, a educação situava-se no bojo das transformações relacionadas à adequação das demandas do capital. As diversas ações que apontavam para a reforma da educação, entre as quais a LDB e o PNE, coadunavam-se com as diretrizes do Banco Mundial, particularmente no tocante ao financiamento à gestão. Nesse novo modelo, não cabia mais ao Estado arcar com a manutenção do sistema público de ensino como um todo, visto pelos formuladores da doutrina neoliberal como ineficiente e atrasado. Colocam-se como necessárias a parceria com a iniciativa privada, a busca de novas e alternativas fontes de recursos e a corresponsabilidade e participação da sociedade civil nesse processo (KALAM, 2013, p. 183).

Desta forma, ao final do governo FHC tem-se uma educação fragmentada, segmentada, flexível e dispersa, o que não contribui para estabelecer as bases de cooperação, integração e coesão entre os entes federativos. Caracterizando-se assim, como políticas de governo e não de Estado, haja vista o atendimento a grupos focalizados e sua temporalidade. Oliveira (2011) afirma que as políticas de governo são aquelas que o Executivo formula e implementa visando responder às demandas da agenda política interna, ao passo que as políticas de Estado são aquelas que resultam em mudanças de normas preexistentes e que tem incidência em setores mais amplos da sociedade.

Em 2003 inicia-se o primeiro mandato do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, e com ele as expectativas de melhorias no campo social entre eles a educação. Neste mesmo ano, foi formado um Grupo de Trabalho com o objetivo de “analisar a situação atual e apresentar plano de ação visando a reestruturação, desenvolvimento e democratização das Instituições Federais de Ensino Superior - IFES” (BRASIL, 2003). É interessante frisar que essa iniciativa presidencial foi criticada pelas associações dos docentes das universidades públicas que viam nessa proposta uma tentativa de desobrigação do Estado com a educação pública.

Ratifica-se ainda que, os primeiros anos do Governo Lula foram marcados muito mais por permanências do que por rupturas (OLIVEIRA, 2011). Seu primeiro mandato foi destacado essencialmente pela promoção de políticas assistenciais e compensatórias, tendo como público específico os mais pobres. Selma Rocha (2013) salienta que em verdade os governos Lula e Dilma trouxeram de volta o tema desenvolvimento pautado na justiça social, mediante a garantia de direitos às minorias (pobres, negros, mulheres, crianças...).

Muitos debates ocorreram no ano de 2003, a fim de subsidiar a antiga questão da Reforma Universitária em aspectos como a gestão, autonomia acadêmica e financeira, avaliação e regulação, estrutura e organização, democratização e acesso, dentre outros. Conforme Kátia Lima:

A análise das ações constitutivas da reformulação da educação superior realizada no Governo Lula da Silva (2003-2010) – como parte de mais uma fase da contrarreforma do Estado brasileiro- indica também uma nova fase da expansão nos marcos de um neoliberalismo reformado (NEVES, 2005). Um processo realizado por um vasto conjunto de ações e que pode ser identificado através de dois grandes eixos temáticos: o empresariamento da educação e a certificação em larga escala. (LIMA, 2013, p. 23).

O eixo de empresariamento da educação superior foi contemplado mediante o aumento do número de Instituições de Educação Superior (IES) privadas e do financiamento público indireto para o setor privado (Ex. FIES e PROUNI) e ainda, a privatização das IES públicas por intermédio de cursos pagos e da criação de fundações de direito privado, enquanto a certificação em larga escala se caracterizou primordialmente pela expansão e consolidação do EAD (Educação a distância) e do REUNI.

Tal configuração ainda pode ser evidenciada nos dias atuais quando verifica-se que o total de instituições de Ensino Superior no Brasil em 2014 era de 2368, sendo 298 públicas e 2070 privadas2. O número de novas vagas total foi de 6.345.652, sendo 5.751.766 nas instituições particulares contra 593.886 nas públicas. Diante dos dados, faz-se o seguinte questionamento: massificação ou expansão? Ou ainda, expansão para quem?

Complementando os dados, Mancebo, Silva Júnior e Schugurensky (2016, p. 211), utilizando dados das sinopses estatísticas do Ensino Superior do Ministério da Educação (MEC) entre os anos de 1995 a 2004, chamam a atenção para este crescimento dualizado e argumentam que:

Se, por um lado, essa expansão deve ser percebida como positiva por ampliar o acesso da população ao ensino superior, é necessário atentar para alguns efeitos perversos desse mesmo processo, pois, indiscutivelmente, o que mais se expandiu no período foram as matrículas nas instituições privadas, que tiveram um crescimento da ordem de 454%, enquanto que na rede pública foi de 180% somente.

Ressalta-se que, a primazia pelo ensino privado significa muito mais do que a cobrança por um serviço, a privatização da educação pressupõe a substituição de valores solidários e humanistas por uma cultura competitiva, baseada nos valores do consumismo e do individualismo, além de influenciar os conteúdos e as relações de poder dentro da instituição.

Neste contexto, considera-se que as principais políticas visando a Reforma Universitária e a democratização do acesso foram o REUNI (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão da Universidades Federais), o PROUNI (Programa Universidade para Todos), o FIES (Fundo de Financiamento Estudantil) e as políticas de ações afirmativas.

O REUNI foi criado pelo Decreto 6.096 de 24 de abril de 2007, com o objetivo de criar condições para o acesso e a permanência na Educação Superior, por meio de ações como expansão da estrutura física, acadêmica e pedagógica das instituições, aumento de vagas nos cursos de graduação e ampliação dos cursos noturnos.

De acordo com Neves:

A principal política governamental para o ensino superior, instituída em 2007, foi o Programa de Apoio aos Planos de Reestruturação e Expansão para as Universidades Federais (REUNI). Seu objetivo era a expansão do acesso e ampliação das matrículas nas instituições públicas, a partir de um melhor aproveitamento da estrutura física e dos recursos humanos existentes nas universidades federais. O programa também tem como meta a elevação gradual da taxa de conclusão média dos cursos de graduação presenciais para 90% e da relação de 18 alunos de graduação em cursos presenciais por professor ao final de cinco anos. As despesas são financiadas com dotações orçamentárias anualmente consignadas ao Ministério da Educação. (NEVES, 2012, p. 14).

O programa encontra-se estruturado em quatro eixos: aumento do número de vagas; reestruturação acadêmico curricular; política de assistência estudantil; suporte da pós-graduação para o desenvolvimento da graduação. Contudo, sua estrutura preconiza a dissociação entre ensino, pesquisa e extensão, ao passo que operacionaliza e reduz às universidades a unidades de ensino de graduação.

Gráfico I. Vagas ofertadas nas graduações presenciais
nas universidades federais 2003-2011

g1.png

Fonte: http://portal.mec.gov.br/docman/janeiro-2013-pdf/12386-analise-expansao-universidade-federais-2003-2011

Analisando o Gráfico I, percebe-se o crescimento de aproximadamente 30 mil vagas nas IFES no período compreendido entre 2003-2007, contudo no período concernente ao REUNI (2007-2011), se deu um crescimento exponencial, superando 90.000 vagas.

Vale ressaltar, que neste período, o foco preponderante continua a ser a competência para o trabalho, dessa forma, assistiu-se a uma formação crescentemente fragmentada e utilitarista, em que não se permitia uma visão das relações sociais, ficando a formação emancipatória cada vez mais minimizada.

A expansão realizada no período 2003-2010 foi viabilizada, portanto, pelo “alargamento” da concepção de universidade neoprofissional, heterônoma e competitiva, através da difusão de educação terciária elaborada pelo Banco Mundial. Um processo de expansão conduzido, especialmente pelo REUNI, aprofundando a hierarquização entre unidades e/ou universidades federais (LIMA, 2013, p. 31).

Outro importante programa para viabilização do acesso ao Ensino Superior foi o PROUNI (Programa Universidade para todos), instituído pela Lei Federal 11.096/95, oferta isenções tributárias as instituições privadas de ensino superior que como contrapartida, concedem bolsas de estudo (parciais ou integrais) aos alunos matriculados. A concessão de bolsas tem como critério a renda per capita de até 3 salários-mínimos.

Diferentemente da experiência de alguns países que tem programas de apoio fortemente concentrados nos estudantes, através de empréstimos ou bolsas, no Brasil o apoio dá-se significativamente às instituições de ensino superior através da isenção tributária e previdenciária para as consideradas filantrópicas (NEVES, 2012, p. 4).

Em complemento Lima afirma que:

O Prouni constitui-se em mais uma modalidade de parceria público-privada que objetiva resolver a crise de inadimplência vivenciada pelo setor privado diante do aumento dos valores das mensalidades ou anuidades das instituições privadas de ensino superior e do nível de empobrecimento progressivo dos trabalhadores brasileiros. (LIMA, 2007, p. 173).

Não obstante, há que se ressaltar o universo de estudantes que tiveram acesso ao Ensino Superior por meio do referido programa, ponderar que o investimento seria mais eficaz no Ensino Superior público é fato, mas não se pode pormenorizar o universo de cidadãos que foram contemplados com o programa. “O Prouni já atendeu, desde a sua criação até o processo seletivo do segundo semestre de 2016, mais de 1,9 milhões de estudantes, sendo 70% com bolsas integrais” (http://prouniportal.mec.gov.br).

O programa de democratização de acesso ao Ensino Superior mais discutido pelos críticos em educação é o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), que constitui-se em um programa do Ministério da Educação destinado a financiar a Educação Superior em instituições privadas conforme preceituado na Lei 10.260/2001. Desde a promulgação da referida norma, várias mudanças ocorreram em sua formatação e critérios para concessão do financiamento. No presente momento, o FIES só pode ser requerido por estudantes com renda per capita de até 3 (três) salários-mínimos e a classificação se dá por meio do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio). O programa pode ser assim referenciado como um clássico exemplo do público não estatal:

[…] na medida em que a educação é um bem público e instituições públicas e privadas prestam esse serviço público para o conjunto da sociedade, está naturalizada a alocação de verba pública para as instituições privadas e o financiamento privado das IES públicas (LIMA, 2007, p. 179).

Conforme o Gráfico II, o orçamento do FIES aumentou cerca de 15 bilhões num interstício de cinco anos, aqui mais uma vez pode ser visualizado a alocação de recursos públicos nas IES privadas e sobretudo um privilegiamento das mesmas, em detrimento do aumento de vagas nas IES públicas que não cresceram na mesma proporção. Configura-se assim, um crescimento de grandes empresas educacionais, cujos recursos mantenedores principais são públicos, seja por meio da isenção de impostos oferecida pelo PROUNI, ou pelo financiamento por intermédio dos bancos públicos, no caso do FIES.

Gráfico II. Evolução do orçamento do FIES

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Fonte: Siafi – Tesouro Gerencial/ http://portal.mec.gov.br

Barroso (2013, p. 55) enfatiza que é nesta alteração das relações entre público e privado que é preciso encontrar um novo princípio de justiça que contemple as necessidades individuais e expectativas dos alunos e que garanta a equidade no acesso a uma educação de qualidade.

Foi ainda, neste mesmo cenário político-social, que o termo Ação Afirmativa emergiu, a partir das discussões sobre a efetivação dos Direitos Humanos e do reconhecimento do direito à diferença, entendendo-se a ineficiência das políticas universalistas no enfrentamento às marcantes desigualdades ainda presentes na sociedade contemporânea.

Para Joaquim Barbosa Gomes, o país pioneiro na adoção das políticas sociais denominadas pela expressão “ações afirmativas” foram, como é sabido, os Estados Unidos da América. Tais políticas foram concebidas inicialmente como mecanismos tendentes a solucionar a marginalização social e econômica do negro na sociedade americana. Posteriormente, foram estendidas às mulheres, e demais minorias étnicas e nacionais, aos índios e aos deficientes físicos.

Gomes (2001, p. 40) acrescenta:

Atualmente, as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate da discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a constituição do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.

Até meados dos anos 90, a adoção de políticas de ação afirmativa no Brasil era objeto de controvérsias, tanto por parte do movimento negro brasileiro quanto por cientistas sociais. Todavia, o tema ingressou na agenda política do governo do então presidente da república na época Fernando Henrique Cardoso (FHC) por decreto em 1995 ao instituir o GT Interministerial para a Valorização da População Negra. Tal iniciativa veio no bojo do Programa Nacional de Direitos Humanos. Em junho de 1996, o Ministério da Justiça promoveu o Seminário Internacional Multiculturalismo e Racismo: o papel da ação afirmativa nos estados democráticos, com o intuito de colher subsídios para a formulação de políticas voltadas para a população negra (MAIO; SANTOS, 2005, p. 187).

Conforme Amaral e Mello:

Nas universidades públicas brasileiras as políticas afirmativas, estabelecidas por leis ou resoluções dos conselhos universitários, especialmente, os sistemas de reserva de vagas - a tão conhecida política de cotas para grupos específicos, em geral os identificados como negros ou afrodescendentes, os egressos das escolas públicas e a população carente - emergiram com a finalidade de democratizar o acesso ao ensino superior e reduzir as desigualdades sociais e étnicas presentes no Brasil. (AMARAL; MELLO, 2012, p. 2).

As ações afirmativas como políticas públicas trazem como fundamento os princípios da reparação, da diversidade e da justiça social. Parkin (1980, p. 812) salienta que: “A questão moral central em toda essa tese é que a exploração e a consequente degradação que surge à base de diferenças étnicas têm um direito prioritário à reparação, em relação às pequenas e grandes injustiças de classe”.

Sandel baseando-se no princípio da equidade defendido por John Rawls nos apresenta o embasamento teórico sólido para implementação de ações afirmativas:

Uma das formas de remediar essa injustiça é corrigir as diferenças sociais e econômicas. Uma meritocracia justa tenta fazer isso, indo além da igualdade de oportunidades meramente formal. Ela remove os obstáculos que cerceiam a realização pessoal ao oferecer oportunidades de educação iguais para todos, para que os indivíduos de famílias pobres possam competir em situação de igualdade com os que têm origens mais privilegiadas. Ela institui programas assistenciais para famílias de baixa renda, programas compensatórios de nutrição e de saúde para a infância, programas educacionais e de treinamento profissional - tudo o que for preciso para que todos, independente de classe ou situação familiar, tenham acesso ao mesmo ponto de partida. Segundo a concepção meritocrática, a distribuição de renda e fortuna que resulta do livre mercado é justa, mas só se todos tiverem as mesmas oportunidades para desenvolver suas aptidões. Os vencedores da corrida só serão merecedores das recompensas se todos partirem da mesma linha de chegada. (SANDEL, 2015, p. 191).

No início dos anos 2000, a adoção de cotas étnico-raciais para ingresso em universidades públicas colocou na mídia a discussão sobre ações afirmativas, especialmente porque desnuda a temática da exclusão de determinados segmentos sociais dos bancos universitários, cujas relações que se estabeleceram a partir de então são permeadas por conflitos. Moehlecke (2002) questiona se tais políticas seriam um direito ou um privilégio que favorecem determinados grupos, ou mesmo se estabelecem oposição com as políticas universalistas, preconizadas pela Constituição Federal de 1988. Marca-se o confronto entre uma histórica seletividade no acesso à Educação Superior e a exigência, por parte de diversos segmentos sociais, de igualdade de oportunidade para as classes menos favorecidas social e economicamente.

Apesar dos argumentos contrários a implementação das ações afirmativas no Ensino Superior, em agosto de 2012 foi sancionada a Lei 12.711, conhecida como Lei de Cotas. Sua aprovação marcou duas décadas de lutas dos vários movimentos sociais comprometidos com a democratização da Educação Superior pública, mas por outro lado, esvaziou o debate referente às cotas étnico-raciais, ao tomar como parâmetro principal a renda.

Para Kátia Lima (2007, p. 174):

[...] a crítica central à política de cotas implementada pelo governo, por sua forma e conteúdo, está relacionada com uma perspectiva marcada pela focalização da política educacional para o alívio da pobreza e o esvaziamento de um princípio histórico dos movimentos sociais, sindicais e estudantis, organizados pelo Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública: a universalização do acesso à educação.

Neste âmbito Amaral e Mello, analisando em seus estudos as realidades da UERJ e UENF mencionam que:

[...] após a primeira experiência com cotas e todas as incertezas dela derivadas, dada a dificuldade prática de aplicação das leis, houve revisão da legislação no sentido de melhorar a presença de jovens pobres na universidade pública, já que o critério da renda familiar do candidato não havia sido considerada e muitos candidatos oriundos de famílias não carentes estariam sendo favorecidos. O estabelecimento do critério carência foi então introduzido para evitar a “injustiça” de se beneficiar duplamente os já privilegiados economicamente como ocorrera no ano anterior, seja com os oriundos de escola pública, seja com os negros. (AMARAL; MELLO, 2012, p. 9-10).

De acordo com a Portaria Normativa nº 18, DE 11 de Outubro de 2012, que dispõe sobre a implementação das reservas de vagas em instituições federais de ensino e em seu artigo 10 prevê:

O número mínimo de vagas reservadas em cada instituição federal de ensino que trata esta Portaria será fixado no edital de cada concurso seletivo e calculado de acordo com o seguinte procedimento: I - define-se o total de vagas por curso e turno a ser ofertado no concurso seletivo; II - reserva-se o percentual de 50% (cinquenta por cento) do total de vagas definido no inciso I, por curso e turno, para os estudantes que tenham cursado integralmente o ensino fundamental ou médio, conforme o caso, em escolas públicas; III - reserva-se o percentual de 50% (cinquenta por cento) do total de vagas apurado após a aplicação da regra do inciso II, por curso e turno, para os estudantes com renda familiar bruta igual ou inferior a 1,5 (um vírgula cinco) salário-mínimo per capita; IV - reservam-se as vagas aos estudantes autodeclarados pretos, pardos e indígenas com renda familiar bruta igual ou inferior a 1,5 (um vírgula cinco) salário-mínimo per capita, da seguinte forma: a) identifica-se, no último Censo Demográfico divulgado pelo IBGE, o percentual correspondente ao da soma de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação do local de oferta de vagas da instituição. (Grifos nossos).

Desde então, a política de ação afirmativa, em particular na modalidade da reserva de vagas para ingresso nas universidades públicas, vem possibilitando que grupos socialmente vulneráveis como pobres, negros e indígenas, tenham acesso a direitos sociais como a educação. Todavia, a atual conjuntura de crise política e financeira vem trazendo rebatimentos ao sistema educacional brasileiro, e tais medidas ainda estão longe de promover a efetiva universalização do direito à educação. Desta forma, concorda-se com Neves quando afirma que:

Sem dúvida, as políticas de inclusão social atuais: Afirmativas (cotas, bônus), PROUNI e REUNI, tem seu valor e cumprem uma função importante; mas não são suficientes para a virada da democratização do acesso ao ensino superior no Brasil. (NEVES, 2012, p. 16).

Por tudo exposto, acredita-se que o vínculo entre educação e desigualdade social é inegável e tem consequências importantes na política educacional, dessa forma, não se pode pretender responder aos desafios de acesso e permanência no Ensino Superior sem levar em consideração a questão social mais ampla.

Considerações Finais

Face aos dados retratados no presente artigo, considera-se que as políticas de acesso ao Ensino Superior adotadas a partir dos anos 90 são caracterizadas pela lógica da focalização e seletividade. Destaca-se que, a estratégia de governo nas últimas décadas, visou, sobretudo o fortalecimento do capital, porém sem deixar de atender às minorias. Nesse intento, cabe aqui evidenciar que as atuais políticas educacionais, aqui analisadas, podem ser consideradas políticas de redistribuição de oportunidades e de inclusão social, contudo enquanto política de enfrentamento à pobreza ainda se faz necessário combiná-las com políticas de crescimento econômico e de redistribuição de renda.

Acredita-se que, encontrar uma alternativa para atendimento às minorias num contexto capitalista dependente, faz-se necessário na atual conjuntura, minimizar as desigualdades sociais por meio da redistribuição de oportunidades, este parece que foi o objetivo das políticas de democratização do acesso. Todavia, o investimento nas políticas universais, quais sejam, o de fortalecimento dos ensinos fundamentais e médio públicos, tanto no âmbito de sua infraestrutura quanto na qualidade do ensino ficaram esquecidos.

Conclui-se que as políticas de acesso aqui estudadas se configuraram sim em medidas de inclusão social, quando constatamos exemplos palpáveis de alunos provenientes de escola pública, negros, indígenas e a população baixa renda, ocupando uma vaga no ensino superior, seja nas instituições públicas ou privadas. Ratifica-se assim, a inclusão quando presenciam-se as minorias ocupando espaços educacionais jamais pensáveis, conforme demonstrado por intermédio da escolaridade de seus pais.

No entanto, é mister ressaltar que as políticas de acesso que visam incluir as minorias pobres, delimitam como baixa renda as pessoas que recebem até três salários-mínimos per capita, para os programas FIES e PROUNI e para as cotas sociais o limite é de 1,5 salário-mínimo. Se tomarmos como parâmetro a renda do programa Bolsa Família que define como extrema pobreza os que possuem renda per capita menor que R$ 77,00, e pobreza, os que possuem entre R$ 77,01 a R$ 154,00, pode -se afirmar que os limites de renda definidos pelos programas educacionais são muitos superiores, o que nos leva a inquirir se estamos atendendo os verdadeiramente pobres ou a reconhecida classe média. Mas para tanto, seria necessário uma pesquisa mais ampla haja vista que o próprio questionário do ENADE não dispõe de tal dado, pois engloba a primeira faixa de renda em até 1,5 salário-mínimo.

Desta forma, é pertinente qualificar as ações, apontar suas lacunas, mas também soluções, sem perder o direcionamento de que o direito à Educação Superior deve ser universal. Não obstante, por outro lado, sem se prender à utopia de que no contexto capitalista contemporâneo ela se fará possível. Considera-se então, que as políticas de acesso apresentadas se fazem necessárias, com estudos e aperfeiçoamentos cotidianos, mas sem pormenorizar que são políticas paliativas e focais, e como todas as políticas dessa natureza, devem ser acompanhadas por políticas universais, que envolvam o acesso, qualidade e permanência em todos os níveis de ensino, devem assim ser consideradas temporárias para que num futuro próximo possam ser dispensáveis.

Por fim, conclui-se que, acreditar que as políticas educacionais por si só serão responsáveis pelo combate à pobreza é um grande “fetiche”, pois para reduzir a pobreza no Brasil é necessário definir uma estratégia ancorada em políticas redistributivas tanto de renda quanto de oportunidades que priorizem a redução das desigualdades, em que investir na educação, aqui representada pelo Ensino Superior, é apenas um degrau para sua erradicação.

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Revista Brasileira de Ensino Superior, Passo Fundo, vol. 4, n. 2, p. 21-43, Abril-Junho, 2018 - ISSN 2447-3944

[Recebido: Janeiro 16, 2018; Aceito: Julho 24, 2019]

DOI: https://doi.org/10.18256/2447-3944.2018.v4i2.2392

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