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A dinâmica da maldade e as condições objetivas do bullying na escola

The dynamics of maldess and the conditions objectives of bullying at school

Volnei Fortuna(1); Marisa Ignes Orsolin Morgan(2); Zaira de Oliveira Canci(3)

1 Mestre em Educação com doutorado em andamento em Educação. Universidade de Passo Fundo (UPF). Passo Fundo, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

2 Mestra em Educação. Universidade de Passo Fundo (UPF). Passo Fundo, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

3 Mestra em Educação. Universidade de Passo Fundo (UPF). Passo Fundo, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

Resumo

Este artigo reconstrói a análise desenvolvida por Philip Zimbardo que considera a influência das circunstâncias e situações sociais como fatores determinantes para o comportamento humano. Tem como objetivo compreender os motivos que levam os sujeitos se portarem a outrem de formas diferentes em determinados contextos ou situações sociais, considerando as ambiguidades do comportamento humano. A questão nuclear da análise gira em torno de mecanismos que possibilitam pessoas comuns procederem erradamente e cometerem atos impensados. Zimbardo apresenta situações em que a iniciativa individual é influenciada pelas circunstâncias sociais. Desenvolve experimentos que simulam situações do dia a dia, prevalecendo mecanismos como os da desindividuação, desumanização e inação. Direcionando teoricamente à análise do fenômeno bullying no contexto escolar, apontaremos condições objetivas que possibilitam atitudes violentas características deste fenômeno e a influência da instituição escolar e do grupo como determinantes no comportamento de jovens e crianças. A pesquisa é uma revisão bibliográfica, seguindo o método analítico e sistemático sobre Zimbardo, autor que se aproxima das ideias defendidas por Theodor W. Adorno quanto à importância de tornar conscientes os mecanismos que influenciam e possibilitam as pessoas cometerem atrocidades. Ambos os autores convergem em pontos comuns quanto à força de influência do coletivo na iniciativa individual e a necessidade de tornar conscientes estes mesmos mecanismos.

Palavras-chaves: Mal. Bem. Desindividuação. Anonimato. Bullying. Escola.

Abstract

This article reconstructs the analysis developed by Philip Zimbardo that considers the influence of social circumstances and situations as determining factors for human behavior. We aim to understand the reasons that lead subjects to behave in different ways in different contexts or social situations, considering the ambiguities of human behavior. The core issue of the analysis revolves around mechanisms that enable ordinary people to go wrong and commit unthinkable acts. Zimbardo presents situations in which individual initiative is influenced by social circumstances. It develops experiments that simulate day-to-day situations, prevailing mechanisms such as deindividuation, dehumanization and inaction. By theoretically directing the analysis of the bullying phenomenon in the school context, we will point out objective conditions that allow violent attitudes characteristic of this phenomenon and the influence of the school institution and the group as determinants in the behavior of youngsters and children. The research will be a bibliographical review, following an analytical and systematic method on Zimbardo, author who approaches the ideas defended by Theodor W. Adorno on the importance of making conscious the mechanisms that influence and enable people to commit atrocities. Both authors converge on common points regarding the influence of the collective in the individual initiative and the need to make these same mechanisms conscious.

Keywords: Bad. Good. Deindividuation. Anonymity. Bullying. School.

1 Introdução

É antiga a discussão acerca da origem do mal. Zimbardo (2012) apresenta uma nova perspectiva ao debate. Sua teoria defende que o sujeito não nasce nem bom nem mau, mas propenso a ambos. O autor considera a força das circunstâncias e situações sociais do dia a dia como determinantes à conduta individual. Compreende que cada ser humano tem capacidade igual para o bem e para o mal. As circunstâncias sociais é que determinarão quais as potencialidades que serão desenvolvidas. Deste modo propõe que se analise o impacto transformador das situações na conduta individual, pois aquilo que somos é moldado por uma série de fatores desconsiderados. Os experimentos na Prisão de Stanford, em que guardas maldosamente utilizavam de mecanismos de opressão e sofrimento a muitos prisioneiros, foram utilizados durante a pesquisa e mostraram que o sujeito não tem completo domínio sobre as situações que agem sobre ele, situações do dia a dia que o levam a agir de maneira egoísta e maldosa (ZIMBARDO, 2012).

Zimbardo (2012) recria essas situações em experimentos que fazem uso de mecanismos de desindividuação que contribuem para o anonimato e observa as transformações do comportamento do sujeito quando ele se encontra sob o estado psicológico da desindividuação e em condições de não identificação. O autor analisa, no processo de desumanização, a exclusão do ser humano da ordem moral de ser uma pessoa humana como justificativa das ações violentas. Aponta ainda os mecanismos cognitivos responsáveis pelo desligamento moral entendendo que os mecanismos de autorregulação não são fixos em relação aos padrões morais, mas que são antes governados por um processo dinâmico que pode ora ativar a autocensura moral, ora desligá-la.

A temática a ser problematizada tem como objetivo compreender os motivos que levam os sujeitos a se portarem a outrem de formas diferentes em determinados contextos ou situações sociais, considerando as ambiguidades do comportamento e condição humana. A questão nuclear da análise gira em torno de mecanismos que possibilitam pessoas comuns a procederem erroneamente e cometerem atos impensados. A pesquisa foi desenvolvida como uma revisão bibliográfica, aonde num primeiro momento, seguimos metodologicamente a investigação de Zimbardo a respeito da origem da maldade que não vê o homem como o único responsável pelas ações violentas e más.

Deste modo foram tratadas as situações que promovem a desindividuação e o anonimato e as suas consequências para a conduta e o comportamento dos sujeitos. Em seguida, foi analisado o processo de desumanização demonstrando que rótulos desumanizadores fomentam atos de agressão e os mecanismos que promovem o desligamento moral. Finalizando a reconstrução da teoria de Zimbardo, buscamos compreender o que causa o mal da inação e impossibilita a intervenção e denúncia dos atos de violência, entendendo que passividade colabora ao mal.

À luz da teoria de Zimbardo e de Theodor W. Adorno, analisamos a conduta bullying no contexto escolar e o peso da influência da escola e do coletivo no comportamento das crianças e jovens, objetivando tornar claros os mecanismos que tornam possível qualquer ato de violência contra a condição humana em especial os da conduta bullying.

2 Anonimato e desindividuação: o comportamento sob o anonimato e o estado psicológico da desindividuação

Zimbardo propõe ao leitor que se posicione diante do antigo debate sobre a origem do mal. Nascemos bons e somos corrompidos pela sociedade ou nascemos maus? Neste item reconstruímos os experimentos de Zimbardo e sua análise do comportamento do sujeito quando envolto em situações onde são presentes os mecanismos de desindividuação e anonimato. O autor apresenta outra perspectiva à questão fugindo da dualidade bem e mal. Sua nova perspectiva considera a força da influência das circunstâncias sociais à iniciativa individual. Defende a ideia de que as circunstâncias sociais tais como riqueza, pobreza, geografia, clima, domínio cultural, político, religioso e as situações específicas do dia a dia interagem com a nossa biologia e personalidade. O antigo debate sobre a maldade humana deixa espaço à compreensão que entende o homem como um sujeito com probabilidades e inclinações iguais tanto para o mal como para o bem (ZIMBARDO, 2012).

O homem não seria mau nem bom por natureza. As circunstâncias, as situações e as instituições sociais ocupariam papel importante no comportamento humano. O sujeito não seria o único responsável pelas suas ações. Para o autor “aquilo que somos é moldado pelos amplos sistemas que governam nossas vidas [...]” (ZIMBARDO, 2012, p. 417). Os impulsos, tanto para o mal como para o bem, são inerentes à condição humana. Nesse sentido, a tese do autor busca compreender quais são os mecanismos que desencadeiam ações de bondade e maldade com o intuito de desmistificar a ideia de que o sujeito é completamente responsável pelas suas ações.

Zimbardo comprova sua tese apresentando o resultado de algumas experiências. Neste tópico analisaremos as pesquisas relacionadas ao poder da conformidade do grupo que chamamos de coletivo. Desta problemática desdobram-se duas outras questões, o anonimato e a desindividuação. O autor utiliza o exemplo do filme “O senhor das moscas”, de William Golding, para nortear a compreensão do leitor a respeito destes fenômenos. De suas pesquisas apresentamos o experimento das mulheres universitárias e das crianças em uma falsa festa de Halloween. Todas as pesquisas com o propósito de analisar a força exercida pelo coletivo nos fenômenos de anonimato e desindividuação da ação humana. Zimbardo (2012) se perguntava se disfarçar a própria aparência poderia afetar os processos comportamentais dos sujeitos. O autor buscava compreender a psicologia da desindividuação e o comportamento sob o anonimato nestes experimentos.

No experimento das mulheres universitárias, o autor dividiu o grupo em dois. Um grupo completamente descaracterizado, desindividuado e anônimo, com números ao invés de nomes próprios. O segundo grupo não passou pelo processo de desindividuação, mantiveram as características de personalização e individuação. O experimento analisou a criatividade dos sujeitos em situações de pressão. A ferramenta utilizada foram choques elétricos. Os choques serviram para estimular a criatividade. Zimbardo notou que o grupo descaracterizado, desindividuado, portanto anônimo, aplicavam choques muito mais demorados que o grupo que manteve características como os nomes. O autor concluiu com o experimento que “[...] qualquer coisa, ou qualquer situação, que torna as pessoas anônimas, como se ninguém sabe quem você é, ou não se importa com isso, reduz o sentimento de responsabilidade pessoal, criando, dessa forma, o potencial para a ação cruel” (ZIMBARDO, 2012, p. 421).

O experimento da falsa festa de Halloween foi realizado com crianças, as quais recebiam fantasias e depois eram convidadas a participarem das brincadeiras comuns da festa. Primeiro brincaram sem as fantasias e depois fantasiadas. Zimbardo pode perceber que quando as crianças brincavam sem as fantasias os objetivos em suas mentes era os referentes aos jogos, a diversão, mas quando brincavam fantasiadas, portanto anônimas, os objetivos das brincadeiras não eram os mesmos. A agressão se fez presente nas brincadeiras quando as crianças se vestiam com as fantasias. Zimbardo (2012, p. 424) pode analisar que “O anonimato facilitou a agressão [...]” e ainda que “[...] A agressão tornou-se a própria recompensa [...]” da brincadeira.

Os experimentos corroboraram a tese inicial de Zimbardo, de que somos fortemente influenciados pelas circunstâncias e situações sociais do dia a dia. Desde o início do seu texto o autor chama a atenção do leitor para a necessidade de se analisar as situações onde os fatos acontecem de modo a não responsabilizar somente o sujeito pelas ações. “[...] é preciso estar mergulhado em uma situação para avaliar seu impacto [...]” (2012, p. 451) sobre o sujeito. Sob a influência de algumas situações, os experimentos comprovaram que a pessoa comum é levada a fazer o que normalmente não faria, o que comprova que o homem não nasce nem bom nem mau, mas propenso a ambos.

No grupo ou no coletivo, o sujeito pode encontrar condições objetivas e mecanismos que influenciam sua iniciativa individual. Suas características individuais e sua capacidade de resistência são alteradas. O grupo descaracteriza o sujeito que passa a assumir as características do grupo em si, subsumindo-se, ou seja, colocando-se em concordância e submetendo-se às regras gerais, o que facilita práticas de violência. Sob o grupo as pessoas tornam-se anônimas. O grupo se sobressai ao indivíduo, o que dificulta a responsabilização do sujeito pelas suas próprias ações. Não há máscaras ou fantasias como nos experimentos. Neste caso o grupo torna-se a fantasia que é assumida sem reflexão pelos sujeitos através de ideais e normas coletivas.

Quando as pessoas se encontram no estado psicológico de desindividuação como as mulheres universitárias do primeiro grupo do experimento, a conduta é influenciada pela sensação de poder e dominação. Qualquer situação que torne as pessoas anônimas, situações que promovam a desindividuação em detrimento da individuação reduz o sentimento de responsabilidade destes sujeitos sobre suas próprias ações criando um potencial para ações violentas. Esse potencial se torna mais verdadeiro quando se junta às situações a permissão do grupo, do coletivo.

3 Consequências do estado de desindividuação

Supõe-se que o lado bom do ser humano seja a racionalidade, responsável pela coerência e sabedoria que faz com que o mesmo se distinga dos outros seres vivos e, o lado ruim, seja o caos, a desordem e a irracionalidade. No item anterior reconstruímos os experimentos de Zimbardo (falsa festa de Halloween e mulheres universitárias) e as transformações do comportamento dos sujeitos em situações que promoviam a desindividuação e a não identidade. Neste item analisaremos as consequências do estado psicológico de desindividuação.

O sujeito pode se tornar mau em situações onde seu controle cognitivo é bloqueado gerando a suspensão da consciência, da autoconsciência, da moralidade, da responsabilidade, da obrigação e da vergonha. Nestas situações o sujeito analisa a própria conduta com base em cálculos de custo benefício. Zimbardo (2012, p. 426) nos apresenta estratégias que contribuem para situações deste tipo:

[…] (a) reduzir os sinais de impunidade social do autor (ninguém sabe quem sou, e ninguém se importa), e (b) reduzir a preocupação quanto à auto avalição do autor. A primeira elimina a preocupação da avaliação social, da aprovação social, por meio do sentimento de anonimato – o processo de desindividuação. Ela é eficaz quando se está operando em um ambiente que transmite o anonimato e dispersa a responsabilidade pessoal. A segunda estratégia interrompe o automonitoramento e o monitoramento da coerência interna, apoiando-se em táticas que alterem o estado de consciência. Chega-se a isso usando álcool e drogas, excitando emoções fortes [...] tendo uma noção expandida do tempo presente, no qual não há preocupações com o passado ou o futuro, e projetando nos outros a responsabilidade em vez de dirigi-la a si.

O estado psicológico da desindividuação gera um quadro psicológico único. Nestas situações o comportamento do sujeito é controlado pelas circunstâncias e pelos impulsos biológicos e hormonais. O pensamento é substituído pela ação. As decisões racionais e ponderadas dão lugar à busca imediata pelo prazer. O sujeito encontra-se em um estado de excitação onde não são consideradas respostas habituais e a personalidade é anulada. É por isso que se torna tão fácil praticar o bem como praticar o mal, tudo depende do que a situação traz à tona. No estado psicológico da desindividuação não há certo, errado ou pensamentos de culpa. “Com as restrições internas suspensas, o comportamento está totalmente sob controle externo das circunstâncias [...]” (ZIMBARDO, 2012, p. 428).

Zimbardo (2012) explica este quadro psicológico como à transição da mentalidade apolínea para a dionisíaca1. Nestas situações de desindividuação, essa transição pode ser muito rápida. Pessoas comuns se tornam capazes de cometerem atrocidades estimuladas pela sensação de tempo expandido e sem preocupação pelas consequências de suas ações no futuro.

Como exemplo, o autor utiliza a terça-feira gorda2, que celebra o excesso da busca pelo prazer libidinal. Na celebração os sujeitos se esquecem dos cuidados e obrigações tradicionais. As constituições cognitivas e morais são suspensas e todos estão voltados à diversão imediata. Vale ressaltar que essa entrega é consciente, que se trata de uma celebração transitória e que logo os “festeiros” terão que voltar aos hábitos tradicionais, principalmente com o advento da quaresma. Este momento é denominado por Zimbardo (2012) como desindividuação na ação coletiva.

4 Desumanização e desligamento moral

Neste item, Zimbardo (2012) chama atenção para o processo de desumanização do homem que ocorre sempre que seres humanos são excluídos por outros da ordem moral de ser uma pessoa humana e os mecanismos acessados pelos sujeitos no processo de desligamento da moral. Certos grupos são identificados pelos agentes desumanizadores como sujeitos que não fazem parte da esfera humana e suspendem sua moralidade. Os agentes desumanizadores são todas aquelas pessoas que rotulam o outro pelas suas características como cor, religião e sexualidade, deficiência e debilidade física ou opção política. As vítimas do processo de desumanização perdem a condição humana, o que viabiliza e justifica aos olhos dos agressores as ações violentas.

A desumanização é responsável pelo racismo e pela discriminação, além de estigmatizar grupos minoritários; é vivenciada principalmente pelas pessoas com deficiência, desacreditadas socialmente, vistas como seres humanos incompletos. A desumanização legitima pessoas normais e moralmente justas a cometerem atrocidades. Não ser considerado normal, não possuir as qualidades humanas de pessoas “completas” e saudáveis, facilita ações desumanas. Rótulos desumanizadores fomentam atos agressivos contra terceiros. Zimbardo (2012) cita o experimento de Albert Bandura para demonstrar este poder.

O experimento foi realizado na Universidade de Stanford com 62 voluntários do sexo masculino. O grupo foi dividido em “grupos de supervisão” compostos por três membros. A tarefa dos grupos consistia em punir, com choques elétricos, as decisões consideradas ruins dos universitários que formavam os grupos dos “tomadores” de decisões. Os grupos que estavam na supervisão podiam escolher a intensidade dos choques. Os grupos dos “tomadores” de decisão foram aleatoriamente classificados como “bando de animais” de “vagabundos”, foram desumanizados, enquanto outros foram caracterizados como sujeitos sensíveis, íntegros, portanto humanizado. Os demais permaneceram em condição neutra (ZIMBARDO, 2012).

O grupo de supervisão foi influenciado para acreditar nas rotulações, o que teve grande impacto na intensidade das punições. O grupo desumanizado tomou choques mais longos em comparação ao grupo humanizado. O grupo neutro permaneceu no meio dos dois extremos. Os pesquisadores concluíram que a rotulação funciona como um desinibidor das qualidades humanas, contribuindo para ações violentas. A equipe de Bandura verificou que a desumanização servia como justificativa para os choques mais longos. Essas descobertas mostraram como os sujeitos desligam suas sanções usuais e são levados a se comportarem de maneira violenta e prejudicial em relação ao outro.

Bradura desenvolveu o modelo conceitual denominado de “mecanismos do desligamento moral” (ZIMBARDO, 2012). Este modelo pressupõe que a maioria dos sujeitos adota padrões morais ao longo do processo de socialização, os quais agem como guias para o comportamento pró-social, ou como inibidor do comportamento antissocial, que são definidos, geralmente, pela família e comunidade social. Com o passar do tempo esses padrões são internalizados como códigos para a conduta pessoal agindo como mecanismos de autorregulação. Mas, esses mecanismos não são fixos, pois são governados por um processo dinâmico que pode ora ativar a autocensura moral, ora o seu desligar (ZIMBARDO, 2012).

A pesquisa de Bandura explica que pessoas comuns em situações do dia a dia podem facilmente praticar atos egoístas e imorais, basta que ativem um ou mais dos seguintes mecanismos cognitivos: a) redefinir o comportamento prejudicial como uma ação honrada e o justificar moralmente; b) deslocar a responsabilidade pessoal; c) encobrir e minimizar as consequências reais das ações; d) desumanizar as vítimas e alegá-las como merecedoras de tais ações. O autor ressalta que tornar explícitos os mecanismos mentais que as pessoas usam para se desligarem de seus padrões morais não significa justificar, desculpar ou desresponsabilizar os sujeitos pelas suas ações, mas reafirmam a necessidade de compreendê-los para poder reverte-los.

5 O mal da inação: atores ou espectadores do mal?

O mal é responsável pelas ações mais violentas, destrutivas e criminosas, entretanto, o silêncio de quem vê pode ser também uma forma de mal. Neste item analisaremos o mal da inação que, para Zimbardo, torna tão responsável o espectador pela maldade quanto o próprio agressor. Um dos maiores colaboradores do mal é “[...] quem olha e não vê, quem escuta mas não ouve [...]” (ZIMBARDO, 2012, p. 439), uma vez que a presença silenciosa diante de uma cena de maldade demonstra a linha que separa o bem do mal, representando um situação de inação perante as maldades que geram um sentimento de indiferença, comprovada no fato das pessoas conviverem diariamente uma com as outras em diversos lugares, mas é como se não existissem umas para as outras.

Pesquisas realizadas pelos psicólogos sociais Bibb Latené e Jonh Darley, na busca pela compreensão das ações das pessoas comuns diante de situações de extrema emergência, concluíram que, quanto maior o número de pessoas que testemunhavam situações, menor era a probabilidade de intervenção de ajuda. Desta constatação, Zimbardo (2012) interpreta que, fazer parte de um grupo passivamente como observador significa supor a disposição de outros membros do grupo em oferecer auxílio e, portanto há uma pressão menor para que se tome a iniciativa de ajuda. De outro modo, a pressão aumenta quando se está sozinho ou em um grupo de três a quatro pessoas, fato que dispara o sentimento de responsabilidade pessoal de intervir.

Segundo Zimbardo (2012, p. 441) “[...] o fracasso de intervir não se dá apenas por se temer pela vida em uma situação violenta, mas também porque se nega a seriedade da situação, temendo fazer coisa errada, parecer um idiota, ou se está preocupado em envolver-se em algo que ‘não é da minha conta’ [...]”, aliado ao fato que uma solicitação de ajuda pode criar uma obrigação social de proteção. O que significa que não respondemos a programações prévias, mas que podemos mudar qualquer atitude por meio de nossas ações construtivas e criativas. O problema, entretanto, reside em aceitar as definições e normas dos outros sobre determinadas situações, em vez de assumirmos o risco de contrapor essa norma e abrir novas possibilidades e opções comportamentais.

A inação do mal ocorre quando os observadores de ações, nas quais esteja visível o mal, sabem o que está acontecendo e não intervém ajudando ou contestando o mal, permitindo que esse persista. Isso se refere à opção de não envolvimento tanto de nações como de indivíduos que negam a seriedade da ameaça e a necessidade de uma ação imediata. Isso pode ser exemplificado por situações históricas como holocausto, ou por situações cotidianas que envolvem abuso de força e poder como a violência e abuso sexual que não são denunciados. Da associação da incompetência com a indiferença e indecisão ressalta o fracasso na intervenção nas situações em que uma ação imediata é fundamental para a sobrevivência (ZIMBARDO, 2012).

Analisa Zimbardo (2012) que, para a psicologia, é uma verdade que as situações e as personalidades interagem para gerar comportamentos; as pessoas sempre agem dentro de determinados contextos comportamentais, elas tanto são produto de diferentes ambientes como são produtores dos ambientes que encontram. Os seres humanos não são objetos passivos. As pessoas geralmente selecionam os ambientes que vão encontrar, os evitam, transformam e os influenciam. Somos capacitados para escolhas e na maioria das vezes influenciamos os acontecimentos de nossas vidas, além de que os comportamentos humanos em sociedade são afetados por mecanismos biológicos, valores e práticas culturais.

Na maioria das vezes a identidade pessoal é conferida pela percepção que os outros fazem sobre nós, pela forma como nos tratam, ignoram, reconhecem ou condenam. Aprendemos a viver conforme as expectativas que os outros depositam em nós, em alguns grupos, somos tomados com líderes, enquanto em outros somos simplesmente mais uma pessoa. As identidades pessoais têm lugar determinado na sociedade, somos onde vivemos, trabalhamos, moramos, comemos, sendo possível prever atitudes e comportamentos a partir do conhecimento e combinação de fatores como status, etnia, classe social, religião, formação, e também pelos traços de personalidade. As circunstâncias nos conferem identidades sociais, mesmo quando deveria ser obvio que não se trata de nossa identidade pessoal. Algumas situações determinam os papeis que as pessoas devem exercer conforme evidências da Psicologia Social que enfatizam o poder do contexto social, ou seja, o poder das circunstancias interpessoais (ZIMBARDO, 2012).

Para Zimbardo (2012), os processos sociais que levam à maldade, cujas engrenagens são mais facilmente acionadas, ganham maior grau de eminência quando as pessoas estão em uma situação nova, não familiar ou ambígua; situações nas quais os padrões de respostas são caracterizados pelo anonimato – desindividuação, pois reduzem a sensação de responsabilidade pessoal; pela necessidade de aceitação social; pela desumanização do outro; pela difusão de responsabilidade pessoal; pela obediência cega à autoridade; pelo conformismo não-crítico às regras do grupo; pela tolerância passiva ao mal pela indiferença ou inação e desligamento moral ocasionado pela criação de justificativas morais para determinadas ações, que confirmam como necessários nossos comportamentos para com nossos “inimigos” reconstruindo nossas percepções das vítimas como merecedoras de punição.

6 Bullying e o contexto escolar?

A escola é uma instituição de ensino formal e por isso compromissada com o processo de ensino-aprendizagem e com a formação dos sujeitos. Alguns pressupostos são básicos e necessários ao desenvolvimento deste processo, dentre eles destacamos o ambiente escolar. É preciso que o educando se sinta confortável dentro da sala de aula e na instituição que frequenta. Por este motivo destacamos uma prática recentemente discutida, o bullying, que impede o educando de encontrar na escola um ambiente acolhedor e sadio onde consiga desenvolver sua humanidade, suas potencialidades, sua cidadania.

A prática silenciosa, tirânica e opressora do bullying se configura como um modelo contemporâneo de agressividade. É um fenômeno que se faz presente nas instituições formais e informais da sociedade. Aqui especificamente analisa-se a escola enquanto “lócus” da prática do bullying. Enquanto instituição formal a escola possui a função de assegurar a boa socialização de seus alunos e o bullying caracteriza uma prática contrária e este ideal. O bullying não representa um simples desentendimento entre crianças ou adolescentes. É um fenômeno complexo e representa uma prática que engloba uma série de atos gerando desrespeito e humilhação, por isso cabe aos educadores desenvolver a sensibilidade para a percepção da conduta bullying de forma a mapeá-lo dentro do contexto escolar (ZIMBARDO, 2012).

De maneira mais sistemática o bullying se classifica como um fenômeno social de prática e conduta violenta. É encontrado em todas as partes do mundo, e não se trata de um fenômeno novo, pois sua ocorrência é antiga. Estudos sistemáticos são muito recentes. No Brasil, por exemplo, estudos sobre bullyng são frágeis, considerando que somente a partir de 1997 foram realizadas pesquisas, isso faz com que estejamos atrasados em 15 anos em relação à Europa. Na pesquisa realizada pela Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência, os dados coletados revelaram que 40,5% dos alunos entrevistados disseram estar envolvidos em episódios de violência, a pesquisa também “demonstrou que o bullying em nossas escolas se encontra com um índice mais elevado do que os apresentados em países europeus” (LEÃO, 2010, p. 122). Na Noruega apenas em 1982, após o suicido de três crianças com idade entre 10 e 14 anos o ministério da educação deu início a campanhas de conscientização.

Embora uma prática antiga muito observada na escola como mostram os estudos, como fenômeno e prática de violência foram recentemente estudados, o bullying foi durante muito tempo confundido com brincadeiras inocentes de crianças e de adolescentes e, portanto, passageiras. Através de estudos sistematizados, como apontado anteriormente, é que famílias e professores compreenderam a complexidade deste fenômeno.

São três os protagonistas do bullying: o espectador, a vítima e o agressor. Os agressores são aqueles que vitimizam os mais fracos do grupo de relações, apoiados, muitas vezes, pelos demais componentes do grupo social considerados também como agressores. Na busca por auto-afirmação, reconhecimento, aceitação e popularidade o agressor humilha, ridiculariza e hostiliza suas vítimas. A conduta do agressor se caracteriza pela dominação, ameaça e imposição de suas vontades.

As vítimas são geralmente pessoas pouco sociáveis, são tímidas, passivas, submissas, com baixa auto-estima, possuem aspecto físico frágil e com debilidades na coordenação motora, extrema sensibilidade e dificilmente se impõe no grupo de relações.

Os espectadores, ou as testemunhas, também fazem parte da prática de violência. São chamados assim, pois se posicionam passivamente, não interferem e tampouco denunciam os abusos. Geralmente se posicionam assim, inertes, pois temem se tornarem as próximas vítimas. Nestes casos a omissão serve como defesa (LEÃO, 2010).

A principal característica do bullying são as práticas de violência velada, por isso é preciso que pais e professores fiquem atentos às alterações de comportamento das crianças e dos adolescentes. Não há um diagnóstico que aponte se a criança está ou não sofrendo com a conduta bullying, mas é possível implementarmos mecanismos que trabalhem nos sujeitos reflexões atentas à diversidade cultural, pluralidade e garantia dos direitos fundamentais, por isso, elencamos a seguir alguns apontamentos que facilitam a compreensão deste fenômeno que, cada vez mais, se faz presente nas escolas e nas famílias.

O termo bullying deriva da palavra inglesa bully. Traduzida para o português, significa valentão, tirano. Esse termo é usado para caracterizar relações interpessoais entre desiguais, ou seja, de um lado há uma pessoa, ou um grupo, que exerce poder, humilha e intimida com ações agressivas, do outro, um grupo ou uma pessoa que recebe essa violência na maioria das vezes passivamente. O agressor geralmente é mais forte, mais popular e tem idade superior à idade das vítimas (LEÃO, 2010).

O fenômeno bullyng é uma prática de violência que compreende atitudes agressivas, intencionais e repetitivas sem motivos aparentes. As práticas são adotadas por um ou vários agressores causando muita dor, sofrimento, angústia, danos físicos, morais, psicológicos e materiais às vítimas. As práticas vão de insultos, intimidações, criação de apelidos, gozações e ridicularização pelo aspecto físico, emocional, intelectual, financeiro e até pela opção religiosa e sexual. As vítimas sofrem deterioração da auto-estima, da ideia que fazem de si mesmas. A reversão do quadro, na maioria das vezes, deve ser feita com a ajuda mútua da escola, professores, colegas, família e, principalmente, apoio psicológico de profissionais especializados (LEÃO, 2010).

É mais evidente em grupos de crianças e adolescentes, pois nestas fases o sujeito está formando a identidade e busca constantemente por auto-afirmação e por reconhecimento. Para Leão (2010), a necessidade de auto-afirmação faz com que os agressores escolham suas vítimas baseados em características como força física, popularidade, situação econômica, vítimas que sabe que não irão se defender ou buscar ajuda prontamente.

As consequências da prática do bullying são irreparáveis e podem se refletir na baixa auto-estima das crianças e adolescentes, na queda do rendimento e evasão escolar, dificuldade de relacionamento, em tentativas de suicídio e isolamento. Essa forma de violência é difícil de ser identificada. As vítimas temem delatar seus agressores por vários motivos, como medo de represálias, de serem desacreditados, de passarem vergonha na frente dos colegas e da própria família (LEÃO, 2010).

Infelizmente, o bullying pode encontrar respaldo na omissão de alunos, professores e funcionários. A passividade funciona como legitimadora das práticas de violência, pois é a aceitação por omissão e negligência. O bullying é um problema social que traz à tona a intolerância e que encontra respaldo social na estigmatização das pessoas, que favorece a propagação e aceitação destas práticas. O descaso nos torna cúmplices e colaboradores da institucionalização desta “maldade”, gerando consequências que ultrapassa os muros escolares. Tem-se na memória o triste episódio do massacre ocorrido em 2011, no bairro do Realengo, Rio de Janeiro, que culminou na morte de 12 crianças3. O motivo foi expresso, na carta do atirador, que se dizia vítima de práticas de bullying.

É fundamental a sensibilização de pais, professores e funcionários da escola para o fenômeno da banalização da violência. O bullying não pode ser confundido com simples brincadeiras. O depoimento de alunos vítimas de bullying revela a omissão de professores e funcionários, o que agrava o quadro de sofrimento da vítima. A escola, como instituição formal de ensino, preocupada com a formação de cidadãos, precisa sensibilizar seus funcionários e, principalmente, os professores, tendo em vista mapear e solucionar situações deste tipo. Acredita-se que a omissão é conivente à prática de violência e injustiça social. A violência que ocorre entre os muros da escola, cedo ou tarde, acometerá a sociedade. Cabe à escola, com a cooperação mútua de professores, pais e funcionários, auxiliar as vítimas e trabalhar com o intuito de prevenir e esclarecer os mecanismos e condições objetivas do bullying (ZIMBARDO, 2012).

7 Fatores determinantes à conduta bullying: o coletivo e a influência da escola no comportamento de jovens e crianças

“Nascemos bons e somos depois corrompidos por uma sociedade ruim, ou nascemos maus e nos redimimos por uma sociedade boa?” (ZIMBARDO, 2012, p. 417). Zimbardo apresenta uma terceira alternativa sobre a velha discussão, propõe que se considere outra perspectiva, as circunstâncias, as situações sociais, como fatores determinantes para o comportamento humano. Neste item abordaremos, à luz da teoria de Zimbardo com contribuições de Theodor W. Adorno, a influência exercida pela escola e pelo coletivo no comportamento dos estudantes no contexto escolar observando especialmente as origens da conduta bullying. Para o autor “talvez sejam nossas circunstâncias sociais que determinam qual dos nossos muitos modelos, nossos potenciais, passaremos a desenvolver” (ZIMBARDO, 2012, p. 417). Zimbardo alega que as forças das circunstâncias e instituições sociais exercem influência no comportamento dos sujeitos, que denomina de maleabilidade da natureza humana. Para ele aquilo que somos é moldado pelos sistemas, pela economia, pelo momento histórico que governam a sociedade. Essas forças interagem com nossa biologia modelando nossa personalidade.

Zimbardo (2012) da o exemplo da conformidade do grupo, do coletivo e da obediência a autoridade como forças que podem dominar e subverter a iniciativa individual convergindo a uma heteronomia, contrário da autonomia. Adorno (1995) no livro “Educação e Emancipação”, especialmente no debate intitulado “Educação após Auschwitz”, chama atenção para a necessidade de identificar e compreender os mecanismos que tornam as pessoas capazes de realizarem atrocidades e colocar diante delas esses mecanismos que possuem inconscientemente.

Adorno (1995), neste debate, analisa as atrocidades cometidas na 2ª Guerra Mundial pelo nazismo. Quando diz que quer identificar os mecanismos que possibilitam as pessoas cometerem atrocidades, não fala somente dos mecanismos que possibilitaram Auschwitz, se reporta a toda forma de violência. No debate o filósofo diz referir-se à psicologia das pessoas que fazem coisas deste tipo, que é preciso buscar os mecanismos que tornam isso possível. Zimbardo com suas pesquisas ambicionava compreender a origem do mal “[...] compreender os processos de transformação vigentes quando pessoas boas ou comuns fazem coisas nocivas ou más”, a questão de fundo é “o que faz as pessoas procederem erradamente” (ZIMBARDO, 2012, p. 24). O ponto nuclear, comum das analises converge para a questão: o que torna as pessoas capazes de cometerem atrocidades jamais pensadas antes?

Ambas as teorias apontam que o sujeito é fortemente influenciado pelas situações que os circunda e buscam “[...] reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos [...] procurando impedir que se tornem novamente capazes de tais atos, na medida em que se desperta uma consciência geral acerca desses mecanismos” (ADORNO, 1995, p. 121). Zimbardo (2012) busca compreender a força da influência exercida pelos grupos, instituições e circunstancias sociais para a iniciativa individual. Adorno (1995) já apontava em seus estudos sobre Auschwitz esta problemática, referia-se à força da pressão do geral dominante e das instituições de destroçar o individual e o potencial de resistência.

Adorno (1995) aponta para alguns indícios como condições objetivas de Auschwitz. Vale ressaltar que o autor, quando fala em Auschwitz, não se refere somente as atrocidades cometidas pelo nazismo, mas a qualquer forma de violência à condição humana. Para o filósofo, impedir que tudo se repita é contrapor-se ao poder cego dos coletivos, fortalecendo a resistência frente às instituições e circunstâncias sociais. Adorno associa o poder de influência do coletivo à falta de autonomia que culminaria na falsidade de “compromissos”, ou seja, compromisso ou ideais de vida assumidos sem serem refletidos e experimentados por si mesmo, que significa a própria heteronomia. Tornar-se dependente de normas que não são assumidas pela própria razão. Esses ideais são incorporados e passam a ser o passaporte de identificação destes sujeitos a um determinado grupo. É uma busca por auto-afirmação e reconhecimento. Ao serem assumidos, os ideais e as normas são convertidos em passaportes de identificação à cidadania confiável e aos grupos socialmente aceitos (ZIMBARDO, 2012).

Isso parece, em primeiro momento, algo muito abstrato, mas Adorno (1995) dá exemplos que trazem à memória lembranças de fatos onde a violência deixou marcas muito profundas. A respeito do poder do coletivo, o filósofo cita o exemplo do sofrimento infligido pelos coletivos quando se tenta filiar a eles. Segundo o filósofo, basta voltarmos às experiências dos primeiros dias na escola, chamando atenção à brutalidade dos trotes de qualquer ordem, que remetem à violência nas escolas, hoje sob o nome atual de conduta bullying, que está intimamente ligado à busca por reconhecimento, por autoafirmação (ZIMBARDO, 2012).

Bullying é um fenômeno muito presente nos grupos, nos coletivos, pois, a presença de um grupo de pessoas, legitima e incentiva atitudes características deste tipo de conduta. Por este aspecto o bullying é uma prática que encontra respaldo na coletividade. “[...] A disponibilidade em ficar do lado do poder, tomando exteriormente como norma curvar-se ao que é mais forte [por medo ou segurança], constitui aquela índole [...] que nunca deve ressurgir” (ADORNO, 1995, p. 124). O filósofo fala aqui das condições objetivas que tornaram possível Auschwitz, em que, formas de barbárie e violência continuarão persistindo se continuarem existindo as condições que as geram. A coletividade favorece o anonimato que provoca a potencialização das ações violentas e o ocultamento dos praticantes. A escola é um ambiente favorável porque a sala de aula é um local onde se desenvolvem relações intersubjetivas muito próximas. É por isso que é tão fundamental compreender o bullying e as condições que o geram.

Reportando-nos novamente à escola, mas agora observando a influência da economia e das regras do capitalismo no gerenciamento do processo de ensino-aprendizagem, não é novidade que muitas instituições de ensino são voltadas à geração de renda, de lucro em detrimento da formação. A abertura do campo educacional à iniciativa privada trouxe, para o âmbito educacional, problemas que até então não lhe pertenciam. A livre concorrência ou competição, principal característica do sistema capitalista tornou-se presente no gerenciamento das questões educacionais, a mesma competição que se apresenta com destaque nas relações interpessoais, que se vincula intimamente à postura de competição e prestígio social (ZIMBARDO, 2012).

A escola amplamente divulga a ideia de que precisa preparar para a sociedade, para o mercado, ambos extremamente competitivos. A postura competitiva do mercado contaminou o processo de ensino-aprendizagem e a ideia de formação. As escolas acabam priorizando a competição em suas práticas pedagógicas. Como exemplos podem citar a preferência na abertura de cursos que são mais interessantes naquele momento para o mercado criando uma expectativa nos estudantes que alimentam as indústrias de cursos preparatórios para vestibular. Verdadeiras indústrias que se alimentam de sonhos. Ou a prática de esportes e as formas de avaliação tanto do educando como da própria escola. Adorno (1995) chama atenção para a ambiguidade do esporte: por um lado, pode promover o respeito ao mais fraco, por outro, a agressão e a brutalidade. O autor propõe que se pense sistematicamente esta ambigüidade. Acredita-se que o estimulo à competição impensada pode gerar práticas de violência como o bullying.

A competição estimulada sem esclarecimentos acaba priorizando-se com validade em si mesmo. Seu incentivo desmedido é o estimulante certo para o que hoje se entende como eficiência. Para o sistema são eficientes aqueles com mais alto grau de competitividade, que conseguem ser melhores, que se adaptam mais rapidamente às mudanças do mercado, apresentam melhor rendimento em determinadas tarefas e disciplinas, que são mais criativos em funções que hoje sabemos que são transitórias. Este estímulo irrefletido é excludente e determinista, pois premia apenas os considerados mais eficientes, ao mesmo tempo em que não esclarece os verdadeiros motivos da competição. Os vencedores tornam-se especiais, exemplos aos demais. Os outros são os que compõem aquela parcela da população que não se esforçou o suficiente, mas que poderão chegar ao lugar almejado com um pouco mais de dedicação, basta que continuem fazendo tudo certo.

A violência escolar, entre outras formas de violência na e da escola, o fenômeno bullying, se relaciona intimamente à postura social assumida pela escola. O educando é estimulado a sempre ser o melhor, obter as melhores notas, entrar nas melhores universidades que são ranqueadas para, no final do processo de ensino, ter uma boa colocação no mercado de trabalho garantindo postura social e status. Não é ensinado que é preciso ser ético nas relações pessoais e sociais. O sujeito torna-se incapaz de compreender a si, os outros e o mundo. Não desenvolve a percepção clara do sentido de sua própria profissão. A postura competitiva e passiva diante de práticas de violência contaminou a escola e sociedade gerando uma ideologia de conquista pela derrota. Não se educa para se viver de maneira colaborativa, para o respeito às diferenças. A competição se mostra claramente nas relações entre crianças e adolescentes e extrapola os muros escolares. Contemporaneamente também é representada pela potencialidade de consumo.

O jovem que não consegue consumir no mesmo ritmo que seus amigos, não fará parte do grupo social aceito dentro da escola e também fora dela. Este adolescente não sofrerá agressão ou violência direta, mas se sentirá inferiorizado, pois é incapaz de possuir as condições que o levariam ao reconhecimento e a autoafirmação, o que não deixa de ser uma prática do bullying, porém mais velada e difícil de ser identificada.

A escola, valorizando e estimulando excessivamente a competição, corrobora com práticas de violência e, quanto mais acirrada a competição, mais dispostas à crueldade as pessoas se tornam. Como considera Zimbardo (2012), as forças situacionais e as instituições exercem influência determinante na iniciativa individual. Se a escola e a sociedade incentivam a competição, a conduta dos jovens educandos será fortemente influenciada pela competitividade. Soma-se a isso a força do coletivo, que impulsiona comportamentos não refletivos.

O bullying é uma prática de violência que encontra condições objetivas nas instituições de educação formal e não formal. O sujeito, para se sentir reconhecido e valorizado, muitas vezes realiza práticas de violências com colegas de escola e com o grupo de amigos. No esporte as pessoas que não se destacam são frequentemente hostilizadas, não são chamadas para competir nos jogos entre séries, não são chamados nem para fazer parte dos times da própria sala de aula.

A força do coletivo intimida, fazendo com que o sujeito tenha medo de impor-se perante ele ou se condiciona a ele completamente. Nas fases que se encontram crianças e adolescentes é natural que busquem por reconhecimento e auto-afirmação em grupos sociais, porém é preciso considerar que o enquadramento cego aos coletivos culmina da dissolução da autodeterminação. O sujeito aceita irrefletidamente normas, condutas e ideais que não são seus e que também não foram refletidos. Submetem-se a práticas coletivas de filiação que promovem a identificação a grupos, a coletivos que praticam violência a grupos minoritários e dentre as práticas destacamos o bullying.

8 Considerações finais

Este artigo pretendeu suscitar e tornar claro os mecanismos e as condições objetivas da maldade, da violência de qualquer tipo à condição humana, apoiando-se na teoria de Philip Zimbardo. O autor propõe uma nova perspectiva ao antigo debate sobre a origem da maldade. Propõe que se considere a influência das circunstâncias e situações sociais como fatores determinantes à conduta dos seres humanos. Para comprovar sua teoria o autor desenvolve uma série de experimentos que recriam condições sociais vivenciadas no dia a dia que enredam o sujeito e que transformam seu comportamento levando-o a conduzir ações impensadas até então.

Apoiados na teoria de Zimbardo, com contribuições de Theodor W. Adorno, conceitualizamos o fenômeno bullying no contexto escolar, analisando que a escola, como instituição de formação, preocupada com o desenvolvimento de crianças, jovens e adultos, influencia, diretamente, o comportamento dos seus estudantes. Juntamos a isso, a influência do sistema capitalista e do mercado econômico na concepção de formação, que orienta a prática pedagógica das instituições formais de ensino, pois estas influenciarão decisivamente o entendimento de jovens, crianças e adultos na sua percepção de mundo e na ideia que terão de si mesmos.

Concluímos que o bullying é uma forma de violência que precisa ter seus mecanismos e condições objetivas esclarecidas como a melhor maneira de prevenção. Para isso atribuímos papel fundamental aos professores, funcionários, alunos e a escola como um todo, pois o bullying deve ser compreendido como uma prática de violência, não deve ser confundida com simples brincadeiras, mas ser entendido como um fenômeno muito sério e com consequências desastrosas para as vítimas, principalmente quando não há um entendimento e ajuda correta a respeito.

As experiências realizadas por Zimbardo demonstraram, ainda, o quanto estamos vulneráveis à maldade. As pesquisas que investigaram os processos de desindividuação, desumanização e apatia, mal da inação do “expectador”, buscaram compreender porque os indivíduos “bons e comuns”, podem, às vezes, cometer maldades para além dos padrões comportamentais aceitáveis infringindo regras violando padrões de moralidade universais. Assim, a reflexão teórica eminentemente estruturante da temática aqui problematizada, demonstra que as circunstancias sociais influenciam nossos comportamentos e que mesmo que os indivíduos sejam flexíveis em relação a seus valores e crenças tendem a adaptar-se socialmente podendo habitualmente mudar seus padrões de respostas considerando o mais adequado ao meio e ao contexto social que se encontram.

A compreensão de que todos somos vulneráveis e que precisamos estar atentos aos acontecimentos da realidade da qual estamos inseridos, identificando contradições entre discursos e atos (o que as pessoas dizem e o que elas fazem), aprendendo a questionar atitudes antiéticas e injustas, bem como, parando de buscar justificativas para decisões equivocadas poderá constituir-se em uma forma de resistência a maldade. Necessitamos do exercício permanente da autocrítica para nos manter atentos ao que pensamos, sentimos e fazemos como um possível caminho para a superação da vulnerabilidade humana para a maldade.

Os processos educativos nesta perspectiva de superação da vulnerabilidade precisam pensar uma educação para além do lucro e do mercado de trabalho. É imprescindível pensar e repensar o papel da educação na sociedade atual e nas suas complexidades, de forma que o ser humano seja o elemento central do processo formativo: um indivíduo que se reconheça e que reconheça o outro enquanto pessoa, ambos inseridos em contextos transformação e que constituem-se como indivíduos autorreflexivos e críticos para além das expectativas materiais e de competitividade com mercado e com o outro. Se por um lado, a educação atende demandas de exigências tecnológicas, de conhecimento e a lógica do mercado, de outro contribui para a reflexão do contexto social e de seus aspectos ideológico de dominação, culturais e simbólicos possibilitando a percepção das contradições presentes na sociedade e desfiando-nos para a sua superação.

Referências

ADORNO, T. W. Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 1995.

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LEÃO, L. G. R. O fenômeno do bullyng no ambiente escolar. Facevv, n. 4, p. 119-135, 2010. Disponível em: <http://www.facevv.edu.br/Revista/04>. Acesso em: 04 fev. 2014.

SALDANHA, A. Bullyng a origem do mal. Editora Online Corujito, 2012. Disponível em: <http://pt.slideshare.net/nilfernandes1/e-book-bullying-a-origem-do-mal-by-alexandre-saldanha>. Acesso em: 04 fev. 2014.

SALGADO, G. M. O bullying como prática de desrespeito social: um estudo sobre a dificuldade lidar com o bullying escolar no contexto do Direito. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8172>. Acesso em: 09 fev. 2014.

ZIMBARDO, P. Investigando a dinâmica social: desindividuação, desumanização e o mal da inação. In: ZIMBARDO, P. O efeito Lúcifer: como pessoas boas se tornam más. Rio de Janeiro: Record, 2012. p. 416-453.

Revista Brasileira de Ensino Superior, Passo Fundo, vol. 3, n. 3, p. 23-41, Jul.-Set. 2017 - ISSN 2447-3944

[Recebido: Ago. 28, 2017; Aceito: Dez. 04, 2017]

DOI: https://doi.org/10.18256/2447-3944.2017.v3i3.2108

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