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A autoridade simbólica do Supremo Tribunal Federal: elementos para compreender a supremacia judicial no Brasil

The symbolic authority of Brazilian Supreme Court: understanding judicial supremacy in Brazil

Clarissa Tassinari

Doutora e Mestre em Direito Público pelo PPG Direito UNISINOS, com bolsa CNPq em ambos os casos. Em estágio pós-doutoral (PPG Direito UNISINOS - bolsa CAPES PNPD). Docente do PPGD UNISINOS.
E-mail: [email protected]

Resumo

Nos últimos tempos, o exercício da jurisdição constitucional vem sendo associado com a ideia de supremacia judicial, argumento que assume papel de destaque no debate norte-americano. Uma leitura possível sobre o tema supremacia judicial no Brasil é a que compreende o Supremo Tribunal Federal exercendo três autoridades: interpretativa, política e simbólica. O presente artigo objetiva explorar os elementos para compreensão da supremacia judicial no Brasil, dando ênfase ao significado da autoridade simbólica concedida ao STF.

Palavras-chave: Jurisdição constitucional. Supremacia judicial. Autoridade simbólica.

Abstract

In recent times, the exercise of judicial review has been associated with the idea of judicial supremacy, an argument that plays a prominent role in the American debate. A possible reading about judicial supremacy in Brazil is that which comprises the Supreme Court exercising three authorities: interpretative, political and symbolic. This paper aims to explore the elements for understanding judicial supremacy in Brazil, emphasizing the meaning of the symbolic authority granted to the Supreme Court.

Keywords: Judicial review. Judicial supremacy. Symbolic authority.

1 Introdução

Nos últimos dez anos, a atuação do judiciário, que vem sendo compreendida a partir de dois fenômenos – judicialização da política e ativismo judicial1 –, passa a estar associada à ideia de supremacia judicial. Ou seja, começa a ser difundida no Brasil uma hipótese teórica que concebe a supremacia judicial como um conceito naturalizado, ou seja, algo inerente às prerrogativas funcionais do Supremo Tribunal Federal – um modo específico de compreender suas intervenções, que é extraído do argumento constitucional (daquilo que se afirma estar previsto pela constituição).

Isso pode ser considerado fruto de um contexto político específico, mas também algo que emerge, dentre outros aspectos, de uma incorporação teórica: da leitura que é feita sobre o papel do judiciário em duas tradições – do constitucionalismo norte-americano (em especial, da dimensão política da atuação da Suprema Corte dos Estados Unidos) e da experiência constitucional alemã (que atribui ao Tribunal Constitucional Federal o dever de concretização de direitos2). Mas em que consiste afirmar a existência de uma hipótese teórica que associa supremacia ao papel do judiciário no Brasil?

Através da conjugação desses dois perfis de jurisdição constitucional (norte-americana e alemã), a supremacia judicial no Brasil pode ser identificada com a concessão de três autoridades3 ao STF: interpretativa, política e simbólica. Por sua vez, como consequência, isso desperta no Tribunal o exercício de três papéis, vinculados à criação dos seguintes pressupostos: de que o Tribunal possui a última palavra na construção do direito (STF como o intérprete autorizado), de que sua atuação sobrepõe-se a das instâncias majoritárias (como o governante bem intencionado) e de que ele é o poder mais habilitado (capaz) de traduzir os anseios sociais (o poder mais admirado) 4.

Levando em consideração o contexto apresentado acima, este artigo propõe um estudo que aprofunda a hipótese teórica que visualiza o STF exercendo sua autoridade simbólica, isto é, atuando no papel de poder mais admirado, o grande oráculo para resolução dos impasses (políticos) da sociedade, afinal, este é o lugar onde as pessoas poderiam consultar as divindades sobre o futuro. A figura do oráculo aparece, assim, logo no início deste artigo, como provocação. É, aliás, a metáfora que José Reinaldo de Lima Lopes utiliza para tratar do papel do Conselho de Estado durante o Império, quando este órgão era o responsável para dar solução às controvérsias jurídicas (embora o Supremo Tribunal de Justiça já tivesse sido criado pela constituição de 1824, sua atuação era instrumentalizada pela política do poder moderador, o que colocava em ênfase as atribuições do Conselho)5. Também é como Rui Barbosa se refere à justiça americana: como o “oráculo da validade das leis”6.

Mais interessante ainda para esta abordagem: é também a expressão utilizada por Christopher Wolfe para fazer referência à projeção que alcançou a Suprema Corte nos Estados Unidos: “oráculo constitucional”; e isso foi extraído de uma obra coletiva destinada justamente a criar um espaço de debate sobre supremacia judicial7. Então, em que sentido o Supremo Tribunal Federal brasileiro pode ser considerado um oráculo? É o enfrentamento que pretende ser feito na sequência.

2 A supremacia judicial como modelo: o que isso significa?

Em estados democráticos, a maioria das autoridades do governo (legislativo e executivo) ganha legitimidade através de uma autorização política e de sua submissão ao povo através das eleições (ou responsabilidade perante os seus eleitores). Os juízes, no entanto, justificam sua legitimidade afirmando que eles são não políticos, independentes e servos neutros da lei. Ao contrário dos órgãos democráticos do aparato estatal, as cortes alcançam sua legitimidade alegando ser algo que elas não são8.

No trecho transcrito acima, extraído da obra de Martin Shapiro e Alec Sweet, os autores vão direto ao ponto da discussão que pretende ser desenvolvida agora – qual a imagem do judiciário perante a sociedade? Indo mais além, como o discurso de supremacia judicial ganha legitimidade? “Uma mentira contada mil vezes torna-se verdade”. A frase é atribuída a Joseph Goebbels, ministro da propaganda do partido nazista e um dos maiores incentivadores do holocausto. Basta usar o sistema de busca do Google que se consegue rápido acesso a essa informação. Talvez seja impossível, ainda muito cedo ou faltem elementos suficientes para compreender a naturalização do discurso de supremacia judicial, que aparece sedimentado sob bases constitucionais, uma mentira. Mas é preciso atentar para o que Neal Devins e Louis Fisher afirmam em seu livro, chamado “A Constituição Democrática”: “a supremacia judicial permanece como o modelo dominante ensinado [...], apesar dos esforços dos cientistas políticos e dos juristas em desafiá-lo”9.

Modelo indica algo que é simplesmente um padrão, um molde, uma forma específica que identifica algo. Assim, poderia ser afirmado, num primeiro momento, que o modo de visualizar a intervenção das cortes/tribunais constitucionais nas democracias ocidentais contemporâneas seria por supremacia judicial. Nesta primeira hipótese, modelo exprime apenas um formato, sem que haja produção de juízo de valor. Entretanto, a palavra modelo também pode implicar uma conotação que vai além disso: diz-se do aluno modelo aquele que conjuga boas qualidades, as que se esperam de um estudante comprometido. Voltando ao tema, então: afinal, supremacia judicial seria um predicado positivo da atividade jurisdicional?

Devins e Fisher provavelmente não estavam fazendo referência a esta segunda interpretação do vocábulo, pois sua obra possui um tom crítico relacionado à atuação da Suprema Corte nos Estados Unidos. Até mesmo da frase transcrita acima em tradução livre é possível perceber que se trata de uma leitura descritiva do que acontece contemporaneamente no cenário jurídico norte-americano, ainda que haja certa inclinação para demonstrar que existe resistência ao modelo de supremacia judicial, uma tentativa de “desafiá-lo”, que aparece como proposta no seu livro.

Partindo da declaração feita por Devins e Fisher, em reconhecimento ao desenho institucional existente para a articulação entre os poderes do estado, esta parte objetiva dar ênfase à segunda leitura que se extrai da palavra modelo: o judiciário, seja a Suprema Corte americana, o Supremo Tribunal Federal brasileiro ou, até mesmo, para o Brasil, os juízes e tribunais que compõem o sistema de justiça, muitas vezes é visualizado como a instituição modelo das democracias constitucionais, o exemplo de ator político – e disso decorreria sua supremacia. Como compreender este papel de destaque que é assumido pela jurisdição10?

Ingeborg Maus é uma autora alemã que ficou conhecida no Brasil pela publicação de um artigo cujo título é instigante: “Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na ‘sociedade órfã’”11. Seu texto apresenta uma leitura crítica ao comportamento do Tribunal Constitucional Federal alemão, em especial no que diz respeito à doutrina da jurisprudência dos valores, que foi por ele elaborada no segundo pós-guerra. Há dois componentes que podem ser considerados importantes para esta reflexão: a ideia de “judiciário como superego” e a de “sociedade órfã”.

Superego é um conceito da psicanálise que corresponde à parte moral do aparelho psíquico. Está ligado ao que Sigmund Freud chama de complexo de Édipo12 e à retenção exercida pelo pai, sendo, por isso, aquilo que provoca “a dominação do ego sob a forma de consciência (conscience) ou, talvez, de um sentimento inconsciente de culpa”13. Trata-se de uma instância de controle aos impulsos. Como isso se relaciona com supremacia judicial? Ingeborg Maus afirma que é possível perceber uma mudança na forma de “construção da consciência individual”: a figura paterna perde sua influência, configurando-se, assim, uma “sociedade órfã”. Nesse contexto, com o esvaziamento dos mecanismos de castração nas relações pessoais, o papel das “diretrizes sociais” começa a ganhar mais importância, tendo como maior exemplo a transferência de “todas as características tradicionais da imagem do pai” para uma única instituição – ao judiciário.

O judiciário como superego da sociedade implica, portanto, a “centralização da consciência social” na atividade jurisprudencial, fazendo com que as discussões, tensões e antagonismos provenientes dos conflitos de interesses políticos sejam dirimidos a partir de uma “função controladora da Justiça”. Mas o que isso representa para a sociedade? O conforto de, em certa medida, conviver harmonicamente como espectadores de sua própria história, que passa a ser construída e contada a partir de definições judiciais14. É por isso que a imagem que se cria para o judiciário é a de instituição responsável por, diante de um contexto de heterogeneidade, possibilitar a “síntese social”. Este processo de deslocamento de expectativas à jurisdição começa a ficar tão intenso que a autora chega a questionar em seu artigo: “Não será a Justiça em sua atual conformação, além de substituta do imperador, o próprio monarca substituto?” 15.

A proposta deste item não é ir tão longe, tal como o salto crítico empreendido por Ingeborg Maus ao fazer essa indagação. Mas é importante perceber que esse crédito exagerado que é depositado nas cortes ou nos tribunais constitucionais transforma-se em autoconfiança. Em outras palavras, conceber o Tribunal Constitucional Federal alemão ou o Supremo Tribunal Federal como uma “instância moral” que se manifesta pela “permanência de certa confiança popular”, uma “veneração da Justiça”, gera um duplo movimento: a concessão de supremacia judicial a este poder e, como consequência disso, uma alteração no próprio comportamento desta instância judicial, que passa a se expressar por atos de supremacia. O resultado disso é o que a autora alemã chama de “infantilismo da crença na Justiça” 16.

É claro que, diante do descompasso entre o que a constituição garante e o que o Estado não efetiva, a sociedade necessita de respostas constitucionais, sendo que, na maioria das vezes, as perguntas são direcionadas ao órgão responsável por fazer jurisdição constitucional, o Supremo Tribunal Federal. O grande ponto é que há uma confusão entre a legitimidade que o STF possui para realizar o controle de constitucionalidade (que, invariavelmente, irá passar por temas que possuem certa conotação política) e supremacia judicial. Nesse sentido, é preciso perceber que, para certos assuntos (e, geralmente, naqueles que possuem grande repercussão), a construção do horizonte de sentido deve ser criado não apenas pela teoria constitucional, mas, fundamentalmente, por uma teoria política.

A associação do judiciário com a figura paterna é apenas um dos meios que deixa visível o exercício de uma autoridade que dá sustento ao discurso de supremacia. Por outro lado, a receptividade dessa ideia e o modo naturalizado como ela atravessa o imaginário social não ficam restritos à leitura psicanalítica apresentada, mas abrangem também um aspecto relacionado à capacidade (ou à habilidade) técnica que, intrinsicamente, possuem os órgãos judiciais. É a partir disso que se origina a tese de que há um discurso de especialidade do judiciário para resolver as controvérsias políticas (em detrimento das demais esferas de poder, as representativas): do pressuposto de que esta é a instituição que possui uma natural e admirável aptidão para retirar a sociedade de seus impasses, por ser “um terceiro neutro”, que decide por meio de “uma decisão objetiva, imparcial e, portanto, justa”17.

3 Supremacia judicial e a confiança depositada no judiciário

Neste momento, pode ser aberto um parênteses sobre a questão da objetividade e da imparcialidade das decisões judiciais, buscando entender como esses elementos fazem parte do horizonte de construção da supremacia judicial. Acima foi referido que o judiciário ganha supremacia na medida em que a sociedade passa a confiar cada vez mais em seus julgamentos. Confiança é uma palavra que, traduzida para a linguagem do direito, pode significar segurança jurídica, que, por sua vez, era uma preocupação do século XIX18. Assim, seja no Brasil ou na Europa continental (mas não na tradição da common law), é possível perceber as influências do pensamento jurídico existente nesse período para o reforço da supremacia na contemporaneidade, pois, a partir da distinção entre público e privado, visualizava nas metodologias interpretativas criadas pelo direito privado a garantia de que o judiciário assumisse um perfil técnico.

Mas como isso acontecia? Com Rafael Tomaz de Oliveira, é possível observar como a diferenciação entre público e privado, que distanciava estado e sociedade, acaba encontrando correspondência em questões relacionadas a métodos interpretativos. No continente europeu, o direito público se desenvolveu sendo equivalente a direito administrativo – uma disciplina eminentemente burocrática e regulatória do poder público. O direito privado, então, que era o palco das disputas sociais, dos conflitos entre os indivíduos, forjou o desenvolvimento de metodologias de interpretação para a decisão judicial. Com a forte influência do sistema de regras, propôs, ilusoriamente, “uma técnica conceitual asséptica”, fazendo com que a regra e sua aplicação por subsunção fosse “um modo de o jurista entregar-se a uma espécie de apoliticidade do direito”. Naquele contexto, técnico pretendia significar, portanto, não político.

Esse cenário só começou a mudar a partir do fortalecimento do movimento constitucional no continente (aspecto que está presente nos Estados Unidos desde sua fundação, por isso, a inexistência da dicotomia público/privado na América – o direito público sempre foi direito constitucional, não direito administrativo). Assim, “o constitucionalismo será [...] o ponto de estofo entre o privado e o público”19. Apesar disso, as metodologias interpretativas produzidas pelo direito privado trouxeram – e ainda trazem – muitas influências para fenômeno jurídico contemporâneo, especialmente no Brasil. Talvez por isso possa ser dito que a ideia de técnica acaba se conjugando com a caracterização de um poder esclarecido, porque, em uma radicalização do argumento, é capaz de gerar segurança jurídica para a sociedade, isto é, confiança de que “[...] as regras que organizam as instituições políticas são gerais e previsíveis” 20.

Foucault já dizia que todo poder pressupõe uma relação com o saber (e vice-versa)21. Em resumo, saber é poder. Então, o que sabem as cortes/tribunais constitucionais? Ora, eles sabem como melhor aplicar as leis; sabem como decidir adequadamente. Afinal, essas instituições agem por justiça – sempre vão apresentar a solução mais justa para a controvérsia. É essa uma das possíveis imagens que pode ter sido criada para os órgãos judiciais, especialmente para os que decidem por último, e é isso que de certo modo pode ter fomentado o discurso de supremacia. Esse é apenas um dos elementos que desperta na sociedade a confiança de que, deslocando a responsabilidade das decisões fundamentais da comunidade política para o judiciário, será produzido uma definição à melhor luz: à luz de um saber técnico (jurídico).

Aqui, vem à lembrança novamente Michel Foucault, que, em um diálogo que discutia a possibilidade de criar uma justiça popular para julgar a polícia, elabora, através de um tom anedótico, uma tríplice estrutura para pensar como se manifesta um tribunal: um elemento terceiro; uma regra universal de justiça e uma decisão com poder executório22. Talvez o argumento de Foucault permita melhor enxergar como se desenvolve a ideia de imparcialidade – por afastamento emocional da situação (o tribunal é um terceiro isento, distanciado), por universalidade (acredita-se que ele estaria agindo, com repercussão para todos, como seria feito em qualquer situação análoga, independente dos envolvidos) e por autoridade (não importa o resultado, o tribunal tem a prerrogativa de definir e de exigir o cumprimento de sua decisão). Só que essa é apenas uma versão da história.

Como mesmo lembra Ingeborg Maus, o “aumento do poder da interpretação”, a “constante disposição para litigar” e a “consolidação do controle jurisdicional sobre o legislador”, consequências do paradigma constitucional que resultou do pós-Segunda Guerra Mundial, repercutiram numa “veneração religiosa” ao judiciário23. Teoricamente, essa profissão de fé de que fala a autora foi incentivada pelo movimento neoconstitucionalista24, que favoreceu a formação de uma cultura jurídica na qual as cortes/tribunais eram considerados protagonistas da democracia, não apenas em seu sentido simbólico, mas também pela inclusão do elemento discricionariedade judicial como inerente à interpretação constitucional25. Assim acontece a transição da concessão (seja pela própria sociedade ou pela teoria do direito) para a sensação de supremacia, que começa a ser experimentada por estas instâncias de jurisdição e que, portanto, passam a vivenciar o gozo de estar em supremacia, de ser o poder supremo (exercer monopólio). E, com isso, desaparece a figura da instituição técnica, composta por agentes que decidirão através de critérios de impessoalidade. É o que leva Lenio Streck a perguntar, em tom crítico à atuação dos juízes e tribunais: o que é isto – decido conforme minha consciência26?

4 Supremo Tribunal Federal e a imersão no mito da supremacia como discurso naturalizado

Contemplando o que foi construído acima para demonstrar como o discurso de supremacia judicial se naturaliza, é desse modo que o Supremo Tribunal Federal aparece como uma figura mitológicaum oráculo, elemento que aparece na introdução. Mas o que é um mito? Há incontáveis abordagens que podem responder a essa questão. Contudo, interessa agora compreender como isso importa ao fenômeno jurídico, mais especificamente, ao discurso naturalizado de supremacia judicial e ao STF como figura mitológica.

O mito “faz compreender e impõe”, “esvazia o real e pacifica consciências”, provoca “a conciliação das contradições”, “permite que o significante e o significado adquiram uma relação natural” – é o que afirma Luis Alberto Warat quando escreve sua crítica (que, à época, estava direcionada ao senso comum legalista-positivista)27. Essas são as frases que devem brotar no pensamento quando se lê naturalização do discurso de supremacia judicial, afinal, sendo a democracia um regime de tensões, contradições e incertezas, nada melhor do que acomodá-las no conforto dos braços de uma figura mitológica com poderes supremos (impossível não lembrar também aqui da imagem do pai, trazida por Ingeborg Maus). O STF exercendo supremacia é isso: um discurso que ajuda a compreender os descompassos institucionais e, ao mesmo tempo, impõe um modelo, seja porque considerado uma fatalidade inevitável (uma tendência natural de um cenário político em crise, fragilizado, simultaneamente, pela apatia das instâncias majoritárias, mas também pelo descrédito de seus eleitores), seja porque desejado (numa espécie de confiança social atribuída).

A supremacia judicial aparece como discurso pois está imersa no mito de que a constituição lhe fornece as condições para seu surgimento (seja como tese ou como prática jurisdicional) ou, então, porque seria o caminho inevitável de desenvolvimento (ou progresso?) da cultura jurídica contemporânea. Isto é, seu discurso parte de uma “simplificação da realidade”, que, em verdade, aparece deformada. Entretanto, o fato de que a supremacia judicial existe apenas “no objeto imaginário”, como algo criado, não é aparente. Pelo contrário, este é um componente que está alienado (ou que se funda por alienação), não sendo perceptível. Portanto, no emprego do discurso, ignora-se o fato de que existe um emissor da mensagem de que supremacia judicial é a forma de manifestação do ato judiciário.

Este posicionar-se alheio à supremacia judicial como discurso inventado é provocado e incentivado pela sensação causada por seus efeitos, suas repercussões no imaginário da sociedade: “pacifica consciências” e gera “[...] politicamente a conciliação das contradições”. É por isso, por essa impressão de conforto que é pressuposta ao mito, que o discurso se naturaliza, gerando aceitação, “veneração às formas de poder que o criam”, através do estabelecimento artificial de “relações necessárias e esquemas ideais”. Assim, o discurso de supremacia judicial “opera como lei universal”, o que ganha ainda mais peso quando a instituição para a qual se destina este discurso começa a consolidá-lo satisfatoriamente como prática. Por fim, é preciso reconhecer: é muito melhor, porém não menos complexo, escrever dois parágrafos à quatro mãos: Warat falou o tempo inteiro, através do uso de aspas.

De tudo o que foi mencionado, é possível concluir que há outra via pela qual o discurso de supremacia judicial se naturaliza no Brasil: através do exercício de uma autoridade simbólica. O Supremo Tribunal Federal como o poder mais admirado é fruto disso – da percepção de que há um modo de tornar natural sua supremacia que não está diretamente vinculado a um discurso que se extrai da previsão do controle de constitucionalidade, como é o caso do entendimento de que o STF possui a última palavra na construção do direito e o de que ele controla a política em sentido amplo (governa). Ao contrário de autoridades que se fundam a partir de um elo com funções constitucionais que se acredita que já tenham sido instituídas (e, portanto, alcançariam sua legitimidade pelo texto da constituição), trata-se de um papel que é construído pelo imaginário da sociedade – o de protagonista das relações sociais, e que acaba sendo assimilado de modo cada vez mais naturalizado.

5 A autoridade simbólica do Supremo Tribunal Federal

O parágrafo acima provoca, no mínimo, três questionamentos fundamentais que sustentam o desenvolvimento da proposta: a. o que significa autoridade simbólica?; b. como justificar o uso da expressão o poder mais admirado?; e c. como se relacionam ou interagem esses dois elementos em relação ao tema? Para começar, há diversos posicionamentos que tratam da dimensão simbólica e de sua relação com o direito, com as instituições ou com a sociedade. Pierre Bourdieu dizia que “o poder simbólico é um poder construtor da realidade”; ele compreendia os símbolos como instrumento de “integração social”28. Para Cornelius Castoriadis, é o simbólico que dá condições para a existência do imaginário, que é algo criado, inventado29. Marcelo Neves, por sua vez, após escrever um longo capítulo para tratar das diferentes perspectivas teóricas sobre símbolo, conclui que a “constitucionalização simbólica [...] responde a exigências e objetivos políticos concretos”30 e que a função simbólica da lei (ou da constituição) diz respeito a finalidades que não estão diretamente relacionadas com normatividade, mas com fins políticos31.

Todos esses autores contribuem muito à primeira questão. Contudo, sua abordagem não está relacionada à problematização sobre supremacia judicial. Então, o que mais deve ser dito? Luis Alberto Warat, em sua crítica ao senso comum legalista, já deixava bem claro: são as “práticas, mitos e teorias refinadas” que produzem a “ordem simbólica da sociedade”32. Símbolo é uma representação de algo. Neste caso, simbólico está qualificando a palavra autoridade. Assim, quando se refere que a atuação do STF é acompanhada de uma autoridade simbólica, o que se pretende afirmar é que existe um imaginário social no qual o Tribunal exerce um papel (o de poder mais admirado) através de uma autoridade inventada: a da instituição dotada de supremacia, capaz de retirar a sociedade da angústia da indefinição política que paira sobre certas matérias, aquelas mais sensíveis aos interesses da comunidade.

Mas por que ele pode ser considerado o poder mais admirado? Rui Barbosa afirmava que os americanos olhavam para a Suprema Corte “com uma admiração sem reservas”, uma instituição que promove a paz, a prosperidade e a dignidade da nação33. Exatamente isso, paira no ar essa ideia de que o STF é a única instituição que corresponde às expectativas sociais. E, nesse aspecto, é possível que muitas vezes nem seja tão relevante o conteúdo da decisão judicial, pois só o ato simbólico de colocar a controvérsia sob discussão já cria nos cidadãos a sensação de reciprocidade em relação a esta instância jurisdicional. A admiração fica ainda maior se for pensado que essa resposta política esperada pela sociedade é obtida por meio de uma definição jurídica, o que dá ainda mais prestígio ao Tribunal, considerando o imaginário que visualiza o STF como o poder esclarecido, especializado, aquele que possui condições técnicas de analisar as matérias.

Como foi dito, o resultado do julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal até pode não importar, no sentido de que disso não depende sua autoridade simbólica, vinculada tão somente ao fato desta ser a instituição que será provocada a responder as expectativas democráticas, seja por confiança ou porque não existem mecanismos institucionais imediatos para chamar o poder político à responsabilidade (aqui poderia ser considerado o processo eleitoral, que, todavia, possui prazo determinado para ocorrer). Contudo, os recentes posicionamentos deste Tribunal revelam a sua preocupação em confortar os anseios da sociedade em suas demandas, decidindo não por critérios de juridicidade, mas sinalizando positivamente ao clamor social, agindo, portanto, em oposição à imagem técnica que lhe foi atribuída. Talvez o exemplo mais claro disso seja a polêmica gerada, em dois tempos, em torno da presunção da inocência, prevista na constituição federal brasileira nos seguintes termos: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5o, LVII).

Em duas situações jurídicas distintas, o STF decidiu pela relativização da exigência do trânsito em julgado para que sentenças penais condenatórias passassem a gerar efeitos: primeiro, no julgamento conjunto das Ações Diretas de Constitucionalidade n. 29 e n. 30 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4578, que analisavam a lei complementar n. 135/2010 (chamada lei da ficha limpa) no que dizia respeito à inelegibilidade dos candidatos que tivessem condenações penais no segundo grau de jurisdição; e, recentemente, no julgamento do Habeas Corpus n. 126.29234. Como o objetivo não é fazer uma análise desses casos, mas apenas ilustrar o que foi afirmado acima, o que interessa para o momento é perceber que essas decisões fazem parte de um contexto no qual o Brasil vivenciou uma forte onda de corrupção.

Diante dos diversos escândalos veiculados pela mídia, criou-se um cenário que, em certa medida, alçou o judiciário e, com ele, o direito penal, ao papel de correção dos excessos do poder político a todo custo: inclusive, às custas de uma garantia constitucional (como a presunção de inocência). Em meio à tensão que provocava radicalizações polarizadas, criou-se um ambiente no qual o instinto da sociedade exigia punição, até mesmo com certa intolerância às garantias que regem o andamento do processo penal. As notícias veiculadas incentivavam um clima de insegurança.

Não era exigível dos cidadãos que, convivendo com o temor da impunidade, não pretendessem barrar a candidatura de políticos que pudessem estar envolvidos com práticas corruptivas (mesmo que isso não tivesse sido judicialmente confirmado). Não era espantoso que desejassem a prisão dos indiciados em tempo ágil ou, ainda, que tivessem conhecimento de que alguns aspectos da morosidade do trâmite da justiça fazem parte do rol de conquistas constitucionais. Entretanto, era isso que se esperava do STF: que não temesse a indisposição popular (que só afeta exclusivamente sua imagem, por que seus ministros não possuem mantado) e decidisse de acordo com o que garante a legislação processual penal e a constituição35.

Mas não foi o que aconteceu. E, no primeiro caso referido (o da ficha limpa), houve até ministro que se fez de boneco, deixando seu ventríloquo – o povo – falar nos autos: “[...] não cabe a este Tribunal desconsiderar a existência de um descompasso entre a jurisprudência e a hoje fortíssima opinião popular a respeito do tema ‘ficha limpa’”; “[...] ou bem se realinha a interpretação da presunção de inocência, ao menos em termos de Direito Eleitoral, com o estado espiritual do povo brasileiro, ou se desacredita a Constituição”36. Corrupção é um tema simpático para comemorar este tipo de decisão. E, então, como não se sentir representado por uma instituição que resolve em nome da democracia falar? Como não visualizar um ato de supremacia no julgamento que decide o texto da constituição alterar? Esse tipo de julgamento gera um duplo efeito: a descrença nas instituições majoritárias e, consequentemente, a aposta no judiciário, como o órgão capaz de sanar as mazelas da sociedade.

6 Considerações finais

Lá no começo, foi trazido o posicionamento de Neal Devins e Louis Fisher sobre o tema: a supremacia judicial aparece como “o modelo ensinado”. O uso da palavra modelo gerou desdobramentos reflexivos, a proposta de duas concepções. Diante disso, foi afirmado que, para este momento, interessava a leitura que possibilita a associação do termo com predicados positivos, juízos de valor que exprimem qualidades. Claro, o objetivo era demonstrar como elevar o Supremo Tribunal Federal ao papel de poder mais admirado pode fomentar o discurso de supremacia, e, nesse sentido, a ideia de admiração casa muito bem com a de bons atributos.

Mas não é bem assim. Pensando melhor agora, talvez o ápice do argumento seja quando, a partir da caracterização de uma autoridade simbólica, esta dualidade sugerida passa a ser visualizada em sua união: se modelo significa padrão, mas também conduta exemplar, o que seria a supremacia judicial senão o discurso que naturaliza o comportamento admirado/legitimado como algo regular? Supremacia judicial pode ser modelo por admiração a uma instituição que detém o saber para os impasses da sociedade resolver; e supremacia judicial pode ser modelo por dar identidade a este poder. Só que a autoridade simbólica do STF não nasce apenas se a junção dessas duas partes ocorrer? É isso; e o resultado seria a aceitação de um perfil jurisdicional específico – o STF como o melhor ator político, o que possui conhecimento especializado para dar definições sobre assuntos controversos – compreendido como modelo jurisdicional.

Assim, sob esta perspectiva, é possível dizer que, no Brasil, tem-se uma supremacia judicial atribuída, que surge por consentimento. Especificamente em relação ao que foi abordado neste texto, é quando o STF assume uma autoridade simbólica, que decorre da confiança que nele é depositada, numa transferência das expectativas democráticas em direção ao Judiciário. Assim, a este Tribunal é conferido (simbolicamente) o monopólio de dizer o direito, por sua capacidade técnica, como se fosse a única instituição capaz/apta de traduzir os anseios populares.

“Uma mentira contada mil vezes torna-se verdade”. Esse é o problema. Quando algo fixa no imaginário social fica muito difícil de desconstruir. Um mentira bem contada por um bom tempo é capaz de esconder a verdade por completo, sem deixar rastros, até fazê-la desaparecer, e o que acaba sobrando é apenas a narrativa que foi construída ou arquitetada para encobri-la. Quanto mais elaborado o discurso que afasta a verdade, maior o risco de que a mentira seja descoberta, mas, por outro lado, crescem também as possibilidades de que seja considerada crível, até mesmo para seu emissor, o bom contador de mentiras.

Assim acontece com a naturalização do discurso de supremacia judicial no Brasil: exercendo uma autoridade simbólica, isto é, no papel de poder mais admirado, o Supremo Tribunal Federal ganha legitimidade, para lembrar de Martin Shapiro e de Alec Sweet, sendo aquilo que ele não é – a única e a instituição mais apta a dar respostas à sociedade diante de seus impasses políticos. Em outras palavras, ocorre neste caso o mesmo que se observa em relação à frase “uma mentira contada mil vezes torna-se verdade”: todo mundo afirma que foi dita por Joseph Goebbels, mas não há nenhum registro que confirme sua autoria. Mas assim fica sendo dele.

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[Recebido: Março 17, 2018; Aceito: Julho 30, 2018]

DOI: https://doi.org/10.18256/2238-0604.2018.v14i2.2547

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