16-1874

O que o processo civil precisa aprender com a linguagem?

What does the civil process need to learn with the language?

Lenio Luiz Streck(1); Igor Raatz(2); William Galle Dietrich(3)

1 Doutor em Direito (UFSC); Pós-Doutor em Direito (FDUL). Professor Titular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS (RS) e Universidade Estácio de Sá – UNESA (RJ). Professor Visitante da Universidade Javeriana de Bogotá, Coimbra e Lisboa (PT). Coordenador do DASEIN – Núcleo de Estudos Hermenêuticos. Procurador de Justiça (RS) aposentado. Advogado.
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2 Pós-doutorando na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Doutor e mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Membro do DASEIN – Núcleo de Estudos Hermenêuticos. Professor do curso de graduação em Direito da Universidade FEEVALE (RS). Advogado.
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3 Mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, como bolsista CAPES/PROEX. Membro do DASEIN - Núcleo de Estudos Hermenêuticos.
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Resumo

O presente artigo visa a desvelar como o processo civil brasileiro ainda está amplamente comprometido com o paradigma filosófico racionalista, de René Descartes e de Wilhelm Leibniz, através daquilo que Ovídio Araújo Baptista da Silva denominou de ordinariedade. A ordinariedade nada mais é do que enxergar o processo como um método, vale dizer, um procedimento rígido, de caráter apriorístico e atemporal, que preza por provimentos vocacionados em produzir coisa julgada, com base no pressuposto da “busca pela verdade real”. Tendo a Crítica Hermenêutica do Direito como fio condutor do presente estudo, pretende-se desvelar como o pensamento cartesiano foi superado na (e pela) filosofia e, dessa forma, descortinar como a ruptura com a ordinariedade no processo não mais perpassa por uma ruptura legislativa, mas antes, por uma ruptura com o senso comum teórico dos juristas, que permanece comprometido com racionalismo cartesiano, ignorando o giro ontológico promovido por Heidegger e Gadamer.

Palavras-chave: Ordinariedade. Racionalismo Cartesiano. Filosofia Hermenêutica e Hermenêutica Filosófica.

Abstract

The present article aims to unveil how the Brazilian civil process is still widely compromised with the René Descartes and Wilhelm Leibniz’s rationalist philosophical paradigm, trough what Ovídio Araujo Baptista da Silva named as ordinariness. The ordinariness is nothing more than seeing the process as a method, worth saying, as a rigid proceeding with aprioristic and timeless character that prey at producing res judicata provisions, based on the “search for the real truth” presupposition. With the Hermeneutical Critics of Law as the conducting wire of the present study, it is intended to unveil how the Cartesian thought was surpassed in (and for) the philosophy and, in this way, uncover how the ordinariness rupture in the process does not runs through a legislative rupture, but by a rupture with the jurist’s theoretical common sense, that stands compromised with the Cartesian rationalism, ignoring the ontological turn promoted by Heidegger and Gadamer.

Keywords: Ordinariness. Cartesian Rationalism. Hermeneutic Philosophy and Philosophical Hermeneutics.

1 Introdução

Hans-Georg Gadamer publicou sua obra mais importante, Wahrheit und Methode, em 1960. Desde então muitas interpretações equivocadas foram atreladas ao título da referida obra, que deve(ria) ser lida como Verdade contra o Método ou Verdade não é Método (STEIN, 1996, p. 47). As críticas de Gadamer à questão do “método” parecem não ter sido muito bem compreendidas por significativa parcela da doutrina brasileira. O tema, portanto, pode ser explorado em diversas frentes, tendo-se optado, nas linhas que seguem, abordá-lo com o foco no Direito processual civil, tendo em vista a ideia presente no senso comum teórico dos juristas de que o processo é um método, capaz de lidar com todos os casos concretos.

Essa imposição de que qualquer litígio, não importando a espécie de direito material que esteja em discussão, perpasse por um mesmo procedimento de cognição plena e exauriente, com uma verdadeira aversão à cognição sumária, em que o provimento final seja eminentemente declaratório, foi o que Ovídio Araújo Baptista da Silva denominou como mito da ordinariedade. A ordinariedade é um fenômeno forjado no paradigma racionalista e, no presente estudo, é encarada como um mito a ser desvelado, no bojo de uma crítica ao modo de pensar o processo como algo apriorístico, universal e atemporal. Dito de outro modo, à luz do paradigma da ordinariedade o processo não é outra coisa senão condição de possibilidade para o desenvolvimento democrático da função jurisdicional, mas, sim, como um método, que, na melhor acepção cartesiana, acaba transformando o processo em um fenômeno incapaz de lidar com as peculiaridades do caso concreto. Nesse viés, é reforçada, ainda, a noção de um juiz preso ao paradigma da filosofia da consciência, tudo a partir de uma concepção meramente instrumental da linguagem.

Com efeito, ao mesmo tempo em que se objetiva formular uma crítica a esse modo de pensar o processo civil, buscar-se-á, no presente ensaio, assentar as condições de possibilidade para a sua superação a partir da filosofia hermenêutica e a hermenêutica filosófica. Reivindica-se, com isso, uma matriz teórica e filosófica ao Direito processual civil capaz de superar os dualismos próprios da metafísica clássica e moderna, intento que, por sua vez, poderia ser levado a efeito em quaisquer outras matérias do estudo do Direito. A opção de utilizar o Direito processual civil como objeto de exploração no presente ensaio prende-se, no entanto, a dois fatores: (i) a possibilidade de dar continuidade às críticas de Ovídio Araújo Baptista da Silva ao paradigma filosófico cartesiano/leibniziano sobre o qual está assentado o Direito processual, valendo-se, para tanto, da matriz hermenêutica e (ii) a existência de um grande número de escritos sobre o Direito processual civil, impulsionados pelo advento do atual Código de Processo Civil, sem uma necessária base filosófica. Pretende-se, desse modo, contribuir para que a filosofia, também no âmbito do Direito processual, deixe de ser visualizada como algo meramente ornamental, como se fosse possível cindir Direito e filosofia.

2 O racionalismo cartesiano/leibniziano como matriz filosófica da ordinariedade

O mito da ordinariedade - assim denominado por Ovídio Araújo Baptista da Silva1 -, é um fenômeno processual que em uma apertada síntese pode ser resumido pelas seguintes premissas: (i) há uma permanência, oculta no processo civil moderno, das noções de imperium e iurisdictio, fruto do processo formulário romano, a partir da qual a função jurisdicional resume-se a uma atividade meramente declaratória similar àquela praticada pelo iudex romano; (ii) todos os atos que não operam apenas no plano normativo não possuem natureza jurisdicional; (iii) juízos baseados nas circunstâncias sumárias da causa (sem exaurir o método/processo) não são compatíveis com a verdadeira função da jurisdição; e, por fim; (iv) o método (procedimento comum/ordinário) é universal e atemporal, vale dizer, somente através da passagem de todas as suas fases que haverá um provimento idôneo sobre o mérito da causa, confundindo-se mérito com definitividade do provimento jurisdicional. Em que pese as premissas convirjam para a formação da ordinariedade, é possível afirmar que as duas primeiras se identificam mais com a herança romana formulária, ao passo que as duas últimas estão mais identificadas com o racionalismo2. No presente tópico, se buscará demonstrar como o movimento filosófico capitaneado por René Descartes é de fundamental importância para a construção das últimas duas premissas.

René Descartes, em Discurso do Método (2010) introduz a questão do método, em que este passa a ser o supremo momento da subjetividade e da possibilidade da certeza. A partir da máxima do cogito ergo sum, toda a consciência acerca das coisas e do ente em sua totalidade acaba reportada à autoconsciência do sujeito humano, tido este como fundamento inabalável de toda a certeza. Assim, a via de acesso autêntica para o ente é o conhecer, a intellectio, no sentido do conhecimento físico-matemático, como bem descreve Heidegger (2013, p. 147). Com isso, a certeza da realidade é projetada como uma objetividade concebida pelo sujeito moderno, exatamente como aquilo que é lançado e mantido em oposição a ele. Numa palavra, a “realidade do real” é o ter-sido-representado pelo (e para) sujeito representador, e justamente por isso é que na Modernidade surge o paradigma da filosofia da consciência.

Descartes, assim, afirma que “as melhores almas são capazes dos maiores vícios”3 e, nesse momento, o método se coloca como a resposta à pergunta sobre “como encontrar o caminho seguro para a verdade”, derivado da segurança fixa da certeza do sujeito moderno que pensa. Este método não deve ser concebido unicamente sob a visão metodológica, ou seja, como modo de investigação e de pesquisa, mas na condição de um caminho que visa uma essencial determinação da verdade, passível de fundamentação por meio da simples capacidade racional-individual do homem (STRECK, 2017).

Embora sempre se pense imediatamente em René Descartes como grande arauto da filosofia racionalista, no Direito tal fenômeno passou necessariamente por Gottfried Wilhelm Leibniz. Com efeito, partindo de uma análise algébrica, Leibniz refuta o círculo vicioso que prospecta a ideia de que o saber depende de algo já dado e passa a entender que a linguagem – vista de maneira instrumental – não é somente um método para expor a descoberta, mas também um instrumento idôneo para que se pesquise o saber. Sob essa perspectiva geometrizada, sugere remédios que se poderiam aplicar contra as imperfeições e os abusos das palavras (LEIBNIZ, 1996, p. 345-349), e pensa que “somente através do simbolismo matemático seria possível elevar-se fundamentalmente acima da contingência das línguas históricas e da indeterminação de seus conceitos” (GADAMER, 2015, p. 537).

Adentrando na seara jurídica em específico, a arquitetura racional do Direito leibniziana busca a admissão de uma significação unívoca em que termos fundamentais têm correspondentes definições das quais se podem extrair consequências certas, seguindo um fio condutor lógico no pensar. Com efeito, essa é a razão pela qual Leibniz carrega a responsabilidade de tentar, nas palavras de Ovídio Baptista, “‘geometrizar’ as ciências do espírito” (BAPTISTA DA SILVA, 2004, p. 77), uma vez que sua filosofia procurou sedimentar a ideia de que as questões jurídicas poderiam ser resolvidas por mera dedução, sendo tão evidentes e exatas como um teorema matemático.

Nessa perspectiva, descortina-se um elemento basilar para a sedimentação do mito da ordinariedade no paradigma processual contemporâneo, qual seja, a tentativa leibniziana de um Direito more geométrico (CASTANHEIRA NEVES, 1971-72), aproximando as ciências do espírito da metodologia das ciências naturais. Tal esforço metodológico/filosófico de pensar o Direito termina com a construção deste mito no Direito processual civil, denominado de ordinariedade. Com efeito, a partir de tal paradigma o Direito processual civil e, mais precisamente, o processo passou a ser pensado como um método universal destinado a chegar a uma espécie de verdade matemática acerca dos fatos e da solução da causa, sendo indispensável, para tanto, que o juiz construísse o objeto do conhecimento através de uma cognição plena e exauriente e de uma linguagem matematicamente organizada.

Nas linhas seguintes, procurar-se-á desvelar como o racionalismo – e consequentemente a ordinariedade - apresenta-se como um paradigma metafísico ontoteológico e instrumentalista da linguagem para, num segundo momento, reivindicar a sua superação a partir da ruptura linguístico-existencial e hermenêutico-filosófica que se dá com a invasão da filosofia pela linguagem.

3 O que isto - a metafísica ontoteológica?

A visão instrumentalista da linguagem é um dos fatores basilares para o paradigma racionalista e para a metafísica moderna. É necessário, portanto, que se explicite o que é a metafísica e qual sua relação com o mito da ordinariedade para que, após, seja desvelada sua incompatibilidade com a filosofia posterior ao giro ontológico-linguístico. Ainda, uma ressalva prévia: sempre que o presente ensaio abordar ou se referir à metafísica, se estará abordando a metafísica de contornos ontoteológicos, compromissada com o esquema sujeito-objeto, e não a metafísica com as características especulativas aristotélicas, da ciência procurada4.

Parte-se, assim, de Martin Heidegger, filósofo tão caro à Crítica Hermenêutica do Direito. Heidegger lançou Sein und Zeit, por muitos considerado o livro mais importante do século XX e, em 1929, proferiu uma aula inaugural em Freiburg, diante de todo corpo docente e discente da Universidade. O título da aula foi “Que é Metafísica?” e serviu de base para uma série de mal entendidos, chegando ao ponto de Heidegger ser taxado de niilista, “da filosofia do sentimento da angústia e da covardia, do irracionalismo que combatia a validez da lógica” (STEIN, 1989, p. 27).

Heidegger começa sua preleção com a seguinte afirmação: “‘Que é metafísica?’ – A pergunta nos dá esperanças de que se falará sobre a metafísica. Não o faremos” (HEIDEGGER, 1989, p. 35). Essa parece ser a questão fundamental da fala do filósofo. Tendo como elemento a situação específica, qual seja, a reunião de acadêmicos, realiza uma analítica da existência científica e a partir dela procura responder o que é a metafísica. Contudo, Heidegger não define a metafísica. Com isso, as confusões se propagaram, razão pela qual o filósofo “acrescentou à quarta edição de 1943 um posfácio que respondia às objeções e elucidava aspectos da preleção que suscitavam dúvidas e mal-entendidos” (STEIN, 1989, p. 28). Ainda não satisfeito, em 1949 o Professor de Freiburg elabora a introdução ao texto, partindo do fato de que “quem pergunta “Que é Metafísica?” problematiza a própria metafísica”, uma vez que “para compreender o que é metafísica, é preciso voltar aos seus fundamentos” (STEIN, 1989, p. 30). Daí porque Heidegger inicia a introdução questionando “em que solo encontram as raízes da árvore da filosofia seu apoio?” (HEIDEGGER, 1989, p. 55).

Nesses três textos do Filósofo da Floresta Negra é possível que se desvele, em suma, que a metafísica é o pensamento do ente enquanto ente. O pensamento metafísico ontoteológico é, assim, uma pergunta pelas origens ônticas, permanecendo junto ao ente, e não se voltando para o ser enquanto ser. Dito de outra maneira, a metafísica é o pensar com esteio em um sentido primordial-imutável. Parafraseando Stein, é o sentido atribuído a partir de algo fossilizado, anquilosado ou absoluto (algo como um “fundamento último” que paradoxalmente opera como “fundamento primeiro”). Assim, compreende-se a entificação do ser como promovedora do fundamento primordial, que também serve como fundamento último. A história da metafísica é, pois, a história do encobrimento do ser. Nessa perspectiva, é possível afirmar que pensar metafisicamente é pensar que a essência está em algum local e a linguagem serve como mero instrumento de acesso a esta essência. Para a metafísica, a linguagem não é condição de possibilidade. Então, qual é o problema central em se admitir tal papel secundário-instrumental – e, portanto, metafísico - à linguagem?

O problema central é que, em suma, as palavras perdem o sentido haja vista que a linguagem não traz sua carga pré-ontológica. A ontologia não é fundamental, uma vez que se pensa o ser veladamente a partir dos princípios epocais. Os exemplos concretos ocorrem diariamente, entretanto o senso comum obnubila esse dar-se-conta. Com efeito, Ovídio Baptista traz interessante exemplo sobre o fenômeno. O processualista gaúcho comenta a guerra do Golfo, que teria ocorrido pelo fato de que um ditador de um país inexpressivo seria possuidor de armas de destruição em massa. Algum tempo depois da guerra, um dos chefes militares que comandara a invasão do país declarou, para a grande imprensa americana, que os órgãos de contra-espionagem simplesmente estavam errados. Qual foi o resultado da declaração? Nenhum, pois a obliteração do sentido das palavras (que Ovídio, a partir de Jacques Rancière, denomina como “lógica da amnésia”) fez “que os leitores de jornal e os frequentadores da mídia eletrônica recebam a cínica admissão de que a guerra tivera outras razões, ‘como quem comenta o tempo’” (BAPTISTA DA SILVA, 2004, p. 19). A pergunta que fica é: uma guerra pode ser qualquer coisa? Não haveria um sentido mínimo para uma guerra, ou, na concepção gadameriana, uma tradição?

No exemplo de Ovídio Baptista é bem clara a incidência da metafísica moderna. Ou seja, o sujeito moderno “pré-da” o objeto de forma totalmente solipsista. No campo jurídico os exemplos são intermináveis. Súmulas, enunciados, etc., que apropriam-se dos sentidos. No tema que interessa ao presente artigo, é de fácil constatação a razão pela qual a ordinariedade também é um esquecimento de qualquer sentido do próprio processo e sua relação com o direito material. O processo está, pois, comprometido com Descartes e assujeitado pelo método construído sob o paradigma da filosofia da consciência.

A ordinariedade é, assim, um fenômeno metafísico, na medida em que Descartes, como já se disse, acreditava ter construído um método hábil para extrair a verdade das coisas. Trata-se do sujeito cognoscente alcançando, através de um método, a verdade. Tem-se no ponto o fundamentum absolutum inconcussum veritatis. Pode-se afirmar que o fundamento primordial é, ao mesmo tempo, o fundamento último: o método do sujeito cognoscente, que, no final das contas, acaba sempre sendo o que a consciência desse sujeito pensa sobre o método.

4 Invasão da filosofia pela linguagem em Martin Heidegger

Conforme tópico pretérito, no paradigma metafísico a linguagem era considerada um instrumento de acesso às essências, ora utilizada para extrair tal essência do objeto que assujeita o sujeito (objetivismo filosófico); ora para nomear o objeto conforme a consciência do sujeito assujeitador do objeto (subjetivismo filosófico). Tratam-se, na essência, de pensamentos metafísicos ontoteológicos. Aquele denominado de clássico, este de moderno. Impregnado no processo civil, o racionalismo está superado na filosofia. Imperioso mostrar-se tal superação.

Nesse passo, há a necessidade de se explicitar quando ocorre a inversão do quadro e como a linguagem deixa de ser mero instrumento para passar a ser condição de possibilidade para o conhecimento. Todo esse movimento em que a linguagem passou a ocupar a posição cimeira nas preocupações filosóficas foi denominado de giro ontológico-linguístico, para que seja diferenciado das pretensões analíticas (STRECK, 2015). Tal movimento floresce com maior ênfase na segunda metade do século XX, sendo muito difícil apontar com precisão uma data ou um autor em específico como protagonista desta passagem da filosofia da consciência para a filosofia da linguagem, valendo lembrar que – em que pese sejam os maiores expoentes – tal movimento se inicia antes mesmo de Heidegger e do Wittgenstein das Investigações Filosóficas (GADAMER, 2015).

Thomas Hobbes afirma que a linguagem tem semelhanças com as teias de aranha: “os espíritos fracos e delicados ficam presos às palavras e nelas se emaranham; mas os fortes as rompem” (HOBBES, 1839, p. 32). É bem verdade que Hobbes passa ao largo de ser um filósofo relevante para o linguistic turn, entretanto tal frase foi utilizada por Heidegger para desvelar que o pensamento metafísico era insuficiente: a linguagem deve ser rompida porque já “antes dela funciona no ter-que-ser do ser-aí” (STEIN, 2014, p. 40). Tem-se, no ponto, uma ideia propedêutica sobre a postura pragmática-existencial heideggeriana.

Com efeito, supera-se a pretensão metafísica de uma verdade absoluta e sua permanente tentativa de negação da finitude, uma vez que é na “linguagem que se dá a ação; é na linguagem que se dá o sentido” (STRECK, 2015, p. 14). De pronto, é possível o desvelamento do que se pretende com as bases já lançadas somadas ao presente tópico: como se deu a superação do racionalismo cartesiano na filosofia (que, reitera-se, permanece amplamente instaurado no processo civil), ou, como ocorreu a morte do sujeito cartesiano e “todas as formas de ‘eu’ puro, desindexado de cadeias significantes” (STRECK, 2013a, p. 255).

Ser e tempo, embora inacabado, radicaliza com o método fenomenológico de Husserl, que pagava tributo às teorias da consciência. Heidegger direcionou, assim, todo o seu esforço filosófico em mostrar outro paradigma do pensamento. Atribui-se à Heidegger a pragmática existencial uma vez que para a filosofia heideggeriana o ser do Dasein fundamentalmente existência (OLIVEIRA, 2006, p. 205). O Professor de Freiburg vai se preocupar com o sentido de ser – que a metafísica mantivera velado – partindo de uma analítica existencial hermenêutica (filosofia hermenêutica) que é combativa às teorias tradicionais da consciência e do conhecimento. Com efeito, em Heidegger aparece de forma primeira “o adjetivo ‘hermenêutico’, como descrição de algo profundamente diferente na compreensão da filosofia” (STEIN, 2015, p. 11), razão pela qual seu projeto é tão inovador.

O primeiro aspecto que se deve ter em mente é que Ser e tempo rompe com toda a questão teológica da filosofia, assim como todas as hipóteses de conhecimento absoluto proporcionados pelos princípios epocais. É por essa razão que Ernildo Stein vai afirmar que o encurtamento hermenêutico de ST é responsável pela “descoberta da entrada de Deus pela porta dos fundos na filosofia e sua consequente expulsão por Heidegger” (STEIN, 2014a, p. 43). Superando, pois, a metafísica ontoteológica e as concepções objetivantes da linguagem, Heidegger afirma que todo o pensar se movimenta em um espaço que é mediado pela linguagem, vale dizer, a linguagem é o meio de acesso ao mundo na filosofia hermenêutica proposta. Por isso que a linguagem passa a ser condição de possibilidade para o modo-de-ser do Dasein.

Nesse ponto estão as duas maiores contribuições de Heidegger que interessam ao presente estudo, quais sejam, a elevação da linguagem à condição de possibilidade do conhecimento e a descoberta da “ideia da compreensão do ser-no-mundo, já sempre jogado no mundo e historicamente determinado” dentro da boa circularidade (STEIN, 2014a, p. 32). A estrutura prévia da compreensão deriva do próprio movimento circular da compreensão partindo da temporalidade do ser-aí, permitindo que o falar não ocorra abandonando a linguagem, mas, sim, que se dê a partir dela. Essa é a razão pela qual “a linguagem, então, é totalidade” (STRECK, 2013a, p. 288).

É importante referir que a linguagem como totalidade é produzida no círculo da compreensão radicalizado por Heidegger. Sabe-se que o círculo é que exprimirá a estrutura prévia existencial do Dasein, atingindo a situação hermenêutica, ou seja, o conjunto das três instâncias da estrutura prévia: Vorhabe, Vorsicht e Vorgriff (HEIDEGGER, 2013). Tais instâncias “mostraram-se como ‘pressupostos’, operando na analítica provisória e revelando-se em seu resultado [...] no momento em que foi atingida a totalidade do estar-aí (sentido do ser do estar-aí) no sentido do cuidado” (STEIN, 2014a, p. 68). Por isso que a ideia de estrutura prévia está vinculada à boa circularidade e, pela mesma razão, Gadamer dirá que “a reflexão hermenêutica de Heidegger tem o seu ponto alto não no fato de demonstrar que aqui prejaz um círculo, mas que este círculo tem um sentido ontológico positivo” (GADAMER, 2015, p. 355).

Nesse passo, tal estrutura prévia positiva é fundamental para que se afaste o método cartesiano, enfim, a subjetividade assujeitadora. Ora, se existe uma estrutura prévia da linguagem, com um caráter pré-ontológico positivo, pode-se dizer que o conhecimento é uma articulação de uma pré-compreensão (Vorverständnis). Mais do que isso, pode-se dizer que o fio condutor do conhecimento são pré-juízos que nos guiam na descoberta do mundo. Tais pré-juízos notadamente “nada tem daquele ‘sujeito’ do cogito da filosofia moderna”, uma vez que o conhecimento advém da “elaboração da constitutiva e originária relação com o mundo que a constitui” (STRECK, 2013a, p. 284).

As descobertas da estrutura prévia da linguagem e da pré-compreensão que se dá na circularidade começam a promoção da queda do sujeito cartesiano. Com a descoberta heideggeriana de ser-no-mundo desde sempre jogado na historicidade, percebeu-se que a relação com o mundo através da consciência e da representação sempre chega atrasada, vale dizer, “como elemento interpretativo, o método sempre chega tarde” (STRECK, 2013b, p. 215). Nessa linha, percebe-se que o método cartesiano e a concepção instrumentalista/metafísica da linguagem não mais se sustentam.

Com efeito, é por isso que o método já está desde sempre atrasado (e sempre estará) e nada mais é do que o momento supremo da subjetividade sendo, portanto, o velador da diferença ontológica. Só compreende-se esse a priori pelo fato de que ele opera desde-já-sempre. Por isso que não partimos de um marco zero de sentido (Bodenlosigkeit) para, após a incidência do método, atingirmos os sentidos (STRECK, 2017). Assim, em 1927 Heidegger apontou precisamente o problema do método. Contemporaneamente, no processo civil, continua-se comprometido com a filosofia de Descartes. Essa problemática assume foros de dramaticidade se examinarmos o modo como esse assujeitamento do objeto pelo sujeito – no âmbito do Direito – acabou por incentivar e sustentar as práticas judiciárias que passaram a apostar no instrumentalismo do processo e no privilégio Cognitivo do Juiz. Claro: se a linguagem, no paradigma da intersubjetividade, é condição de possibilidade, o processo, traduzido pela linguagem, não pode ser uma terceira coisa que esteja à disposição do juiz. Processo não é ornamento.

5 O derruir do método cartesiano

Verificou-se no tópico pretéritos que, mesmo antes de Hans-Georg Gadamer, já haviam boas razões para que se abandonasse a adoção do método forjado na concepção metafísica-cartesiana como modo de conhecer. Contudo Gadamer, em sua obra mais importante – Wahrheit und Methode - veio para desferir o golpe final o método cartesiano, conforme se passará a explicitar.

Inicialmente, interessa saber que a hermenêutica gadameriana eleva a linguagem ao mais alto patamar, pois parte da premissa heideggeriana de que a linguagem não é um instrumento, vale dizer, uma terceira coisa que serve de meio para que o sujeito acesse o objeto. Sob essa perspectiva, é possível afirmar que Gadamer faz tal elevação “em uma ontologia hermenêutica, entendendo, a partir disto, que é a linguagem que determina a compreensão e o próprio objeto hermenêutico” (STRECK, 2013a, p. 296). Daí fica fácil de compreender a conhecida afirmação do filósofo de que “O ser que pode ser compreendido é linguagem” (GADAMER, 2015, p. 612). A linguagem, para Gadamer, manifesta o mundo sem que, contudo, o mundo se torne objeto da linguagem.

Os pensamentos de Gadamer e Heidegger são muito próximos, uma vez que “para Gadamer, a analítica temporal do ser humano em Heidegger demonstrou convincentemente que a compreensão não é um modo de comportamento do sujeito, mas uma maneira de ser do eis-aí-ser” (OLIVEIRA, 2006, p. 225). Em que pese tal encontro, a hermenêutica filosófica gadameriana produz “um cenário muito diferente daquele que aparece em Heidegger” (STEIN, 2015, p. 11-12), pois libertando-se da hermenêutica nas ciências, submete a filosofia à hermenêutica.

Conforme se demonstrou, o Professor de Freiburg dedicou sua obra a questão do ser, que se mantivera velado pela história da metafísica. Assim, deslocou o ser ao campo da fenomenologia e da analítica existencial. Nesse passo, com a concepção do Dasein, introduziu um terceiro nível de um ente que desde-já-sempre compreende o seu ser (hermenêutica da faticidade) com o fito de “preparar uma nova compreensão do ser, a partir do conceito de tempo repensado a partir da temporalidade e da historicidade” (STEIN, 2015, p. 13-14). É diferente o pensamento do Professor de Heidelberg: Gadamer acaba isolando o conceito de faticidade e liga-o a historicidade da compreensão (STRECK, 2013a).

Isso significa admitir que a filosofia heideggeriana, partindo da hermenêutica da faticidade, pretende introduzir um novo conceito de finitude com força filosófica e amparo no modo-de-ser, ao passo que a filosofia gadameriana pretende, de forma fundamental, fazer desse conceito a base de sua elaboração da finitude da compreensão. Com efeito, partindo da virada heideggeriana, Gadamer vai tratar do problema dos pré-conceitos, cobrando uma constante verificação dos pressupostos que utilizamos em nossas análises. Por isso afirmará o filósofo que “São os preconceitos não percebidos os que, com o seu domínio, nos tornam surdos para a coisa que nos fala a tradição” (GADAMER, 2015, p. 359).

Conforme Gadamer, a interpretação não interessa apenas para textos e à tradição oral, “mas a tudo que nos é transmitido pela história” (GADAMER, 2003, p. 19), razão pela qual o projeto gadameriano de VM contém como fator de originalidade o fato de ter iniciado a descrição da compreensão da experiência, através da historicidade na qual já se está inserido de há muito. E como o hermeneuta de Heidelberg operou tal descrição? Fora, justamente, com o desvelamento da problemática inerente aos pré-conceitos.

Em Verdade e Método, Gadamer analisa a questão do descrédito sofrido pelo preconceito por conta da Aufklärung. Passou-se, com o Iluminismo, a estabelecer-se um cariz negativo aos pré-conceitos. Com isso, a Aufklärung passou a analisar tudo diante do juízo da razão, uma vez que sua tendência era de “não deixar valer autoridade alguma” (GADAMER, 2015, p. 362). Constatando esse problema, Gadamer visa a reabilitar a autoridade de tais pré-conceitos, partindo da argumentação de que estes podem ser legítimos. Com suporte na historicidade, o filósofo perguntará: “qual é a base que fundamenta a legitimidade de preconceitos?” (GADAMER, 2015, p. 368).

Assim, de forma sucinta, o projeto Gadameriano pode ser considerado como uma metateoria, vale dizer, uma “hermenêutica da hermenêutica” (STEIN, 2015, p. 23), pois sabe-se que as interpretações não podem ser tomadas como questões isoladas devendo sempre fazer parte da historicidade que já é antecessora. Com base nessa historicidade, o Hermeneuta de Heidelberg afirmará que a compreensão só alcança sua possibilidade no momento em que as opiniões prévias forem legítimas quando à sua origem e validez.

Com tais bases, compreendem-se duas questões desenvolvidas pelo filósofo que interessam sobremaneira ao presente trabalho, quais sejam (i) a noção de que os sentidos não são reproduzidos (Auslegung), mas sim produzidos (Sinngebung) e; (ii) a applicatio como superação das fases da hermenêutica clássica (STRECK, 2015). Sob tais concepções, o método cartesiano que se visa a desvelar com o presente artigo enfrenta a obliteração.

Segundo Gadamer, os sentidos não podem jamais ser reproduzidos, mas, sim, produzidos, uma vez que o intérprete sempre produzirá algum sentido no acontecer da interpretação. No espaço que o filósofo reservou ao estudo do Direito, sempre rechaçou a equivocada ideia de que se busque a “vontade da lei” ou de que o Direito seja aplicado por meras deduções. Para a filosofia gadameriana, há sempre uma “complementação produtiva” (GADAMER, 2015, p. 432) na tarefa da aplicação.

Com efeito, por óbvio essa produção de sentidos não pode ser arbitrária. Nessa linha, a produção de sentidos não pode ser algo sempre imprevisível e novo pelo fato de que a fusão de horizontes parte da continuidade na tradição, obrigando sempre um confronto dialogado com a própria tradição, vale dizer, “só há valor histórico quando o passado é entendido em sua continuidade com o presente” (STRECK, 2013a, p. 307). Por isso a célebre frase do filósofo: “quem quer compreender um texto deve estar disposto a deixar que este lhe diga alguma coisa” (GADAMER, 2015, p. 358).

Com essa concepção de produção de sentidos, chega-se a noção da applicatio gadameriana, que nada mais é do que rechaçar a ideia de interpretação como um método em três fases distintas, conforme preconizava a hermenêutica clássica (GADAMER, 2015, p. 406). Ou seja, partindo do projeto heideggeriano de estrutura prévia da compreensão, não mais se sustenta a cisão entre subtilitas intelligendi, subtilitas explicandi e subtilitas applicandi, uma vez que esses três momentos ocorrem de uma vez só.

Gadamer nos dirá que a aplicação não ocorre de forma posterior, compreendido em si mesmo de forma autônoma e depois aplicado a um caso concreto, uma vez que o sentido desta aplicação já está na totalidade da compreensão (GADAMER, 2015, p. 446-447). E nesse contexto o método leva seu golpe fulminante, na medida em que o intérprete contatou com o objeto já ocorreu a applicatio. Por isso que o método chega tarde. Quando o método for aplicado, o intérprete já se pronunciou de há muito, razão pela qual não há como sustentar essa cisão metódica interpretação/aplicação.

A applicatio, como elemento constitutivo do compreender, encontra sua base na historicidade, e não de uma “aplicação” posterior de algo que já seria por si. Por isso que ela não autoriza arbitrariedades. Com efeito, as duas construções gadamerianas se interligam sendo possível, assim, afirmar que a verdade não advém do método. O método de Descartes, portanto, sofre em Gadamer sua completa superação.

6 Processo e método: entre a ordinariedade e a filosofia da consciência (ou, de como a filosofia importa em tempos de “Novo Código de Processo Civil”)

Nos itens precedentes, tentamos mostrar como o mito da ordinariedade, tantas vezes combatidos por Ovídio A. Baptista da Silva em sua obra, sustenta-se em paradigmas filosóficos que, há muito, vêm sendo combatidos pela Crítica Hermenêutica do Direito. Embora a crítica de Ovídio fosse direcionada ao produto desses paradigmas filosóficos no Direito processual – que ele chamou de mito da ordinariedade – não há como negar que lidamos com um inimigo comum, que se manifesta de diversas maneira no Direito brasileiro, sendo o Direito processual um notável exemplo disso.

No aspecto formal, pode-se dizer que a estrutura do procedimento ordinário decorre da sua vocação para atingir a certeza nos mesmos moldes das ciências da natureza. Para tanto, ele é dividido em quatro fases bem demarcadas. Ainda na perspectiva formal do procedimento, é inexorável aos pressupostos da ordinariedade que ele seja rígido e, portanto, previsível. Um procedimento que permite adequações de acordo com as peculiaridades do caso concreto não se afeiçoaria ao paradigma racionalista, fundado na busca de segurança jurídica através da utilização da metodologia das ciências da natureza ou matemática. A geometrização do Direito fez com que o processo abandonasse o caso concreto para se valer de generalidades e sistematizações, incapazes de lidar com as diferenças das imprevisíveis situações vindouras (BAPTISTA DA SILVA, 2004, p. 36-38). A rigidez procedimental apresenta-se, pois, como mais uma faceta da ordinariedade, que prima, desse modo, por uma concepção de processo neutra e indiferente às necessidades do direito material.

Para dar cabo a esse projeto de processo neutro e indiferente ao direito material, o procedimento ordinário assenta-se, igualmente, na plenariedade da cognição e no mito da “ampla defesa”, o que, na gênese do Código Buzaid, trazia consigo a exclusão de todas as formas de contraditório que não fosse o contraditório prévio. Com isso, transformavam-se em ordinárias todas as demais formas de contraditório, “pois sem liminares de mérito todas elas tornam-se ordinárias, dada a relação essencial entre ‘contraditório prévio e ordinariedade” (BAPTISTA DA SILVA, 2004, p. 112). Desse modo, independente da realidade do direito material, somente seriam concebíveis decisões de mérito que descessem às minucias do caso concreto após a formalização do contraditório, numa espécie de universalização do procedimento ordinário, concebido “como a única forma de tutela processual compatível com os valores e padrões culturais da civilização moderna” (BAPTISTA DA SILVA, 2005, p. 103).

É bem verdade que o atual Código de Processo Civil consagra uma série de institutos tendentes à superar o que Ovídio denominou de mito da ordinariedade. Pode-se dizer, nessa perspectiva, que a estrutura rígida e universalizante do procedimento ordinário não se afeiçoa à necessidade de que a função jurisdicional seja adequada ao direito material. Dito de outro modo, o processo – no seu aspecto procedimental – deve ser estruturado de modo a permitir que o debate acerca do direito material se dê do melhor modo possível e que o exercício da função jurisdicional – da qual o processo é condição de possibilidade – se dê em conformidade com a natureza do direito material posto em causa (RAATZ, 2016, p. 196).

O problema, aqui, vai além da simples mudança legislativa. Ainda em 2009, quando sequer pensávamos em um novo Código de Processo Civil, Ovídio dizia que de nada adiantaria substituir o motorista diante de um “veículo” nascido do direito privado romano e aperfeiçoado pelo iluminismo europeu, já ultrapassado pela história, veículo este que corresponderia ao sistema processual então vigente (BAPTISTA DA SILVA, 2009, p. 99). Devemos convir que o cenário atual é o oposto daquele narrado por Ovídio: apesar de seus defeitos pontuais, o atual Código de Processo Civil brasileiro permite superarmos tanto a ordinariedade duramente criticada por Ovídio, quanto expungirmos do Direito processual os paradigmas filosóficos que sustenta(va)m a ordinariedade. Eis o busílis: os avanços transformarem-se em retrocesso!

Desse modo, é necessário termos muito cuidado para que as regras de adaptação procedimental criadas pelo Código não se transformem em meros expedientes técnicos capazes de permitir ao juiz, como sujeito (assujeitador) da modernidade, predar o processo. Sem perceber, a doutrina processual, embora retire do processo o caráter de método, na medida em que combate a rigidez procedimental, confere ao juiz instrumentos para que ele possa assenhorar-se do processo. No final das contas, não há nenhuma mudança substancial, e o processo, ao invés de ser condição de possibilidade e garantia conferida às partes para que a função jurisdição seja exercida de forma legítima e democrática, transforma-se em instrumento da jurisdição, em ferramenta para que o Estado-juiz realize seus objetivos jurídicos, políticos e sociais, numa repristinação do velho e resistente instrumentalismo processual.

Os diversos mecanismos previstos no Código de Processo Civil tendentes a romper com o artificialismo processo-direito material devem ser lidos a partir de um perfil democrático de processo. É necessário um linguist turn no processo. Nem a linguagem, nem o processo possuem caráter instrumental. Insistimos: Assim com a linguagem não é uma terceira coisa que se interpõe entre o sujeito e o objeto como técnica que serve ao homem para exercer o seu domínio sobre os entes, também o processo não é mera técnica à disposição do juiz. Enquanto isso não ficar bem claro, teremos problemas graves com os mecanismos de adaptação procedimental previstos no atual CPC. O inciso IV do art. 139 do CPC é um bom exemplo disso. Basta pensarmos nas diversas decisões em que o juiz, diante dos limites da própria execução patrimonial (que são impostos pela Constituição e pelo próprio Código, na medida em que institui regras de impenhorabilidade), vêm cassando passaporte, CNH, cartões de crédito, etc.5.

Então, a despeito dos diversas regras que permitem uma elasticidade procedimental, superando-se, com elas, o caráter rígido e universalizante da ordinariedade – como é o caso do próprio art. 139, IV, do calendário processual (art. 191, CPC), da tutela provisória, do saneamento e organização do processo (art. 357, CPC), dentre outros expedientes – não podemos esquecer que o mesmo Código reforçou o dever de fundamentação judicial e o direito ao contraditório como direito de influência e proibição de decisão supressa. Processo é, sim, “uma construção compartilhada que se dá a partir da principiologia constitucional, em que o contraditório, a ampla defesa, a igualdade e o respeito à integridade do Direito estejam presentes em todo o iter processual e aferido desde o dever fundamental de justificar as decisões, ao modo de uma accountabillity hermenêutica” (STRECK, 2013a, p. 355). Logo, tem razão Paolo Biavati quando diz que elasticidade procedimental “não é discricionariedade, nem mero capricho que dobra a regra à situação” (BIAVATI, 2011).

7 Considerações finais

Em tempos de mudança na legislação processual civil brasileira é indispensável que se abandone o paradigma racionalista que forjou as construções processuais modernas e se passe a compreender o Direito processual a partir de uma matriz hermenêutico-filosófica. Somente assim será possível expungir do Direito processual alguns mitos como a verdade real, o livre convencimento judicial e, ao que interessa no presente ensaio, a ordinariedade.

Com efeito, é tempo de abandoar a ordinariedade e deixar de pensar o processo como um método. Processo não é método, mas, sim, condição de possibilidade para que efetivação de direitos a partir de um perfil democrático-constitucional, em que às partes são conferidos direitos fundamentais capazes de salvaguardá-las de arbitrariedades. Com isso, busca-se superar uma ideia meramente quantitativa de jurisdição para que se dê o florescer do caso concreto e que, com isso, o caminho procedimental ínsito ao processo seja construído no caso e de acordo com o caso concreto. Dito de outro modo, não há um método prévio e imutável para se chegar à solução da causa. Por isso, é importante que se supere a noção instrumental de processo e de linguagem, ambas ancoradas no mesmo paradigma filosófico já superado.

Daí que os mecanismos de flexibilização procedimental presentes na legislação processual para tornar o processo adaptável ao caso concreto (como é o caso da antecipação da tutela, dos negócios jurídicos processuais, da fase de saneamento e organização do processo, etc.) devem ser compreendidos distantes do paradigma filosófico que alicerçou o mito da ordinariedade. Somente a partir de um novo olhar, que tem como pressuposto a filosofia no Direito, é que será possível inaugurar um sistema de justiça civil consentâneo com o Estado Democrático de Direito, no qual, nem o Direito, nem o processo civil, sejam encarados com caráter meramente instrumental. Embora o presente ensaio tenha buscado mostrar como a filosofia hermenêutica e a hermenêutica filosófica são capazes de contribuir para a superação do mito da ordinariedade no Direito processual civil, não há dúvida de que uma série de outros temas do próprio Direito processual civil também podem ser revistos e reconstruídos sob essa mesma perspectiva, de modo que se espera, com este artigo, contribuir para que tal proposta de trabalho tenha seguimento na doutrina processual civil brasileira.

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Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, vol. 13, n. 2, p. 317-335, Mai.-Ago. 2017 - ISSN 2238-0604

[Recebido: Abr. 19, 2017; Aprovado: Ago. 01, 2017]

DOI: http://dx.doi.org/10.18256/2238-0604/revistadedireito.v13n2p317-335

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