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Interpretação jurídica e percepção seletiva: a dimensão organizacional da produção de sentido no direito

Rafael Lazzarotto Simioni

Pós-Doutor em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade de Coimbra, Doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos),
Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), Professor do Programa de Mestrado em Direito da Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM),
pesquisador líder do Grupo de Pesquisa Margens do Direito (PPGD/FDSM).

Resumo

Esta pesquisa objetiva refletir sobre a interpretação jurídica como uma atitude construtiva do direito. Para tanto, pretende-se: a) propor uma concepção de interpretação jurídica menos metodológica e mais descritiva, utilizando o conceito de percepção seletiva da psicologia social para sinalizar algumas possibilidades de entendimento; b) observar os problemas da ilusão e da dupla contingência no âmbito da percepção seletiva que conduz a interpretação jurídica; c) identificar os meios tradicionais utilizados para assegurar as interpretações supostamente corretas do direito; e d) sinalizar três dimensões, dentre elas a dimensão organizacional-institucional, que conduz a percepção seletiva do intérprete do direito a horizontes de sentidos predefinidos. A análise dessas questões demonstra o quão ultrapassadas são as concepções metodológicas de interpretação jurídicas reproduzidas pela dogmática jurídica desde o Século XIX e a necessidade de uma compressão transdisciplinar das diversas dimensões que atuam sobre a prática interpretativa do direito.

Palavras-chave: Interpretação jurídica. Percepção seletiva. Organização. Decisão. Metodologia.

1 Introdução

Ninguém mais que Neil MacCormick chamou a atenção para o caráter institucional da interpretação e da argumentação jurídica1. Para além dos métodos científicos, teorias políticas, regras de interpretação e aplicação do direito, MacCormick já afirmava, desde a década de 1960, que a instituição exerce uma influência decisiva sobre o poder e a força de convicção dos argumentos jurídicos.

Mas a interpretação jurídica evoluiu bastante nas últimas décadas. Tanto que a dogmática jurídica sequer conseguiu acompanhar as novas dinâmicas interpretativas que a práxis do direito tem desenvolvido no âmbito dos Tribunais. Apesar de todos os avanços, transformações e mudanças de orientação no próprio objeto da interpretação jurídica, uma parte significativa da doutrina brasileira - e em especial os manuais e cursos de introdução ao estudo do direito - continuam ensinando aqueles velhos métodos gramatical, histórico, lógico, sistemático e teleológico da interpretação jurídica do século XIX.

Esses métodos, como sabemos, remontam a experiências jurídicas há muito tempo superadas. A própria ideia de método faz parte de uma pequena parte, dentre várias outras concepções não metódicas e anti-metódicas, da experiência interpretativa do direito. Como se explica então o fato - trágico - de que a literatura jurídica mais lida pelos estudantes de direito seja uma literatura ainda comprometida com os ideais do positivismo legalista da Escola da Exegese francesa ou da pandectista da Escola Histórica do Direito da Alemanha do século XIX?

Nossa hipótese é a de que a doutrina jurídica possui dificuldades em observar e entender o que realmente acontece na práxis interpretativa do direito. E isso porque falta à doutrina jurídica aquela liberdade descritiva que a sociologia e a filosofia do direito propiciam. Se observarmos com cuidado, a práxis jurídica está cheia de jargões do tipo: “uma coisa é a teoria, outra é a prática”; ou “na faculdade estudamos a teoria, mas na prática é tudo diferente”. Ora, teoria e prática só são distintas quando a teoria está afastada da realidade da prática ou quando a prática está abandonada à deriva pela teoria.

A diferença entre teoria e prática ilustra exatamente o distanciamento que a doutrina jurídica estabeleceu, de uns tempos para cá, entre as explicações científicas e aquilo que realmente acontece na prática interpretativa do direito.

Como reunir teoria e prática novamente? Como trazer de volta para a teoria uma explicação convincente do que realmente acontece na prática interpretativa do direito?

Esta pesquisa tem por objetivo geral refletir sobre a interpretação jurídica como uma atitude construtiva do direito. Negando uma tradição que remonta à filosofia grega, de interpretação como contemplação das coisas, esta pesquisa parte da convicção de que a interpretação não apenas descobre o direito: ela o constrói. Inventa-o, recria-o. E por isso a interpretação jurídica é uma atitude, uma ação, um compromisso assumido pelo jurista de realizar o direito.

Para tanto, este artigo perseguirá quatro objetivos específicos, quais sejam: a) propor uma concepção de interpretação jurídica menos metodológica e mais descritiva, utilizando o conceito de percepção seletiva da psicologia para sinalizar alguns processos mentais e sociais implicados nessa prática; b) observar os problemas da ilusão e da dupla contingência no âmbito da percepção seletiva que conduz a interpretação jurídica; c) identificar os meios tradicionais utilizados para assegurar as interpretações supostamente corretas do direito; e d) sinalizar três dimensões, dentre elas a dimensão institucional, que conduz a percepção seletiva do intérprete do direito a horizontes de sentidos predefinidos.

Naturalmente, essa escapada do nível de descrição e de entendimento da dogmática jurídica tradicional só é possível porque transitaremos, em termos de uma compreensão metodológica, por outros campos do conhecimento e por outros níveis de constituição de sentido. O método utilizado para tanto será o analítico, pois procuraremos estabelecer relações, explicitação de conceitos e tudo aquilo que um texto inteligível precisa ser. Mas não hesitaremos também em adotar uma atitude reconstrutiva do sentido da interpretação jurídica, de modo a aproximar, tanto quanto possível, a incrivelmente distante relação entre teoria e prática do direito.

Nessa ordem de ideias, precisaremos nos afastar inclusive da perspectiva institucionalista de MacCormick, pois a dimensão institucional da interpretação jurídica é apenas uma, dentre outras igualmente importantes, dimensões da produção de sentido do direito. E também precisaremos nos afastar das perspectivas metodológicas da interpretação jurídica, já que o método, igualmente, não esgota os motivos que levam a interpretação a constituir um - e não outro - sentido possível da prática jurídica. Mas não queremos apenas somar mais uma teoria da interpretação ao lado de tantas outras que já existem sob o nome de pós-positivismo jurídico. Longe disso. Esta pesquisa objetiva apenas desencadear algumas reflexões interdisciplinares utilizando outros pontos de vista possíveis da prática interpretativa do direito.

2 Interpretação e percepção seletiva

Todos nós já nos deparamos com situações que nos chamam mais a atenção do que outras. Há épocas em que vivenciamos situações para as quais possuímos uma sensibilidade perceptiva muito aguçada. Enquanto que em outras, nossa sensibilidade aponta para coisas diversas. Só que é mais do que isso. Por exemplo, quando uma mulher da nossa família fica grávida começarmos a ver várias mulheres grávidas e bebês de colo pelas ruas da cidade. Ou quando pensamos em comprar um carro exótico, como uma Kombi da década de 1970, parece começar a brotar kombis na rua, na feira, na praça, até no estacionamento da faculdade.

Todos nós temos isso. E esse fenômeno, se é que podemos chamá-lo assim, influencia muito a nossa interpretação do mundo. Esse acontecimento psíquico pode ser observado em todas as pessoas. E nós queremos chamá-lo de percepção seletiva.2

Uma percepção seletiva acontece quando nós vemos coisas que nos chamam atenção e não vemos ou não percebemos outras coisas igualmente existentes, mas que não nos chamam atenção. No caminho de casa para o trabalho, nós passamos por muitas coisas, pessoas, situações, emoções. Mas apenas algumas chamam ou despertam a nossa atenção, a ponto de fazermos aquilo que Guimarães Rosa chamava de “bis-viu”.3 Há coisas que despertam tanto a nossa atenção que olhamos para elas e depois bis-vemo-as, vemo-as novamente. A gente olha e depois “bis-vê”. Outras coisas, que são igualmente existentes, parecem que nem existem para nós.

Essa percepção seletiva precisa ser alimentada. Precisa ser engordada. O jurista alimenta ou poderia alimentar suas bis-visões durante toda sua formação. É por isso que os estudantes de direito, no geral, podem enxergar muito mais situações de injustiça social do que a percepção de outras pessoas. A percepção seletiva é alimentada e ela concentra nossos interesses potencializando-os de modo muito natural.

Podemos supor então que um dentista vê muito mais bocas e dentes pelas ruas da cidade do que outras pessoas? E podemos supor que um cabeleireiro enxerga muito mais cabelos e penteados do que outras coisas? E, por fim, podemos supor que um jurista possui - ou deve alimentar - uma sensibilidade muito mais aguçada do que o normal para enxergar situações de injustiça social? A resposta a essas perguntas parece ser, no geral, positiva. Claro que nunca em termos absolutos. Isso é óbvio. Essas reflexões são apenas aproximações àquilo que acontece na nossa mente quando estabelecemos uma relação de interpretação com o mundo ao nosso redor.

Temos já uma hipótese importante para a nossa pesquisa: a interpretação jurídica, tal como a interpretação do mundo, sofre uma influência significativa da nossa percepção seletiva. E se isso for verdade, a interpretação jurídica possui uma dimensão psíquica, ou se assim quiserem: uma dimensão subjetiva que afeta diretamente a construção do sentido dessa realidade.

Afinal, percepção seletiva significa exatamente perceber algumas coisas e não perceber todo o restante. Significa que nós vemos muito mais aquilo que alimentamos em termos de percepção seletiva do que todo o restante da realidade. E isso significa, de imediato, dois riscos que a interpretação jurídica precisa lidar nesse primeiro nível psíquico-subjetivo da percepção, quais sejam: a) o risco de criar uma ilusão inflacionada da realidade; b) o risco de não perceber outras dimensões ou outros pontos de vista da problemática em questão, como a dimensão institucional da interpretação jurídica que veremos adiante.

3 Percepção seletiva e ilusão

Nós fomos treinados a pensar que o direito é um vetor objetivo de racionalidade: que possui um sentido unívoco. E qualquer distanciamento dessa objetividade jurídica racional pode ser considerado como um equívoco, um engano, uma interpretação leiga do direito. Algumas críticas à falta de cientificidade do direito chegam até mesmo a acreditar que o direito poderia ser constituído em cima de uma lógica puramente formal de certo e errado. Assim, qualquer interpretação que se afastasse do padrão lógico já seria, por definição, uma interpretação errada.

Hoje sabemos que a interpretação jurídica exige a tomada de decisões e a realização de escolhas interpretativas. Contrariando uma tradição que remonta à filosofia estoica da Grécia Antiga, hoje sabemos que a interpretação não é ato de contemplação. Não é um ato de descoberta de um sentido que já existia e que só precisava ser corretamente descoberto. Pelo contrário: a interpretação é uma atitude construtiva. É uma dação de sentido. É uma construção de sentido que exige escolhas, decisões, opções.

Se essa explicação parece difícil de ser concebida, podemos tentar exemplificar a existência inexorável da escolha no ato de interpretar o direito e o mundo. Podemos pegar o texto do art. 121 do Código Penal, que possui a seguinte redação: “matar alguém”. Duas palavras muito simples e bastante conhecidas na definição do tipo penal do homicídio. O “matar” é um verbo que significa retirar a vida. Já o “alguém” se refere a qualquer pessoa humana. Há no mínimo duas decisões históricas tomadas pelos juristas nessa interpretação conceitual do homicídio. Primeiro, em algum
momento da história foi decidido que matar alguém se refere apenas a pessoas humanas, já que existem também pessoas jurídicas, cuja morte nós chamamos de falência - e provocar falência não é crime, embora pudesse, sob certas condições, ser equiparável. Segundo, ainda no que se refere ao “alguém”, antigamente sabemos que os escravos não eram pessoas, eram coisas, eram bens objeto da propriedade de seus donos. E, por isso, matar alguém não poderia abranger quem não possuísse o status jurídico de pessoa. Em algum momento da história, portanto, ocorreu a decisão por incluir os escravos - não pessoas - na categoria de “alguém”. E se essa decisão interpretativa foi possível, por que não podemos supor que, futuramente, a natureza, os animais e outros seres vivos que, de fato - não ainda de direito -, já possuirão o status equiparável ao de pessoa em muitos aspectos, também não poderão ser decididos a participar do conceito de pessoa? Como já acontece, em certa medida, em países vizinhos da América Latina.

A interpretação é uma escolha definida em cada época. O sentido que nós atribuímos aos conceitos e institutos jurídicos é resultado de uma escolha, uma decisão conceitual histórica, uma decisão arquivada no nível mais arqueológico do direito.4

Ainda no nosso exemplo anterior, poderíamos pegar também o verbo “matar” e perguntar (após a definição constitucional do conceito de vida digna) se reduzir a dignidade da vida - condenar alguém a uma vida vegetativa - não seria tão nefasto quanto suprimi-la com a morte completa? Será que o verbo matar continuará a significar a retirada total da vida? Ou podemos supor que haverá, em breve, razões de ordem bioética que exigirão de nós uma nova decisão conceitual: matar é retirar totalmente a vida ou pode ser também por fim a uma vida já indigna ou ainda apenas reduzir a vida em sua dignidade e plenitude? Essas questões podem parecer disparatadas hoje. Mas elas ilustram o fato de que a interpretação de apenas duas palavras muito simples – “matar alguém” - exigiu, exige e exigirá decisões interpretativas importantes.

Se isso acontece com a interpretação de textos - no estilo do positivismo jurídico -, imagine-se a quantidade de escolhas interpretativas que somos convocados a fazer quando interpretamos costumes históricos, objetivos políticos, valores éticos, princípios morais e tudo aquilo que é possível articular argumentativamente na prática jurídica. A quantidade de decisões conceituais é enorme. E nós seguimos fazendo essas escolhas interpretativas dizendo simplesmente: “eu entendo que...”.

Por isso que toda interpretação é, também, uma atitude política.5 Na medida em que a atitude interpretativa exige uma escolha, a opção que o intérprete do direito faz por um ou outro sentido é uma opção política, uma escolha realizada no âmbito de uma disputa conceitual, de uma luta, de uma batalha política por sentidos.

A doutrina jurídica ou dogmática jurídica é a principal responsável pela consolidação dessas escolhas interpretativas do direito.6 A doutrina confirma e condensa as decisões interpretativas apresentando-as como se fossem deduções lógicas dos textos jurídicos. Desse modo, a doutrina presta uma importante função para a prática jurídica: ela cria uma ilusão de segurança e de cientificidade no direito que impõe - doutrina! - limites. Nem tudo pode ser constantemente requestionado no direito, pois há conceitos e institutos jurídicos cuja interpretação já foi decidida pela doutrina jurídica. A doutrina realiza as decisões interpretativas e as comunica como verdades científicas. Com isso, apesar de ser uma ilusão de segurança e de neutralidade científica, a doutrina presta uma importante contribuição: ela reduz o grau de dissenso que poderia existir na prática do direito. Ela ajuda também a reproduzir o direito como uma prática profissional.

No entanto, ela também gera ilusões. Reproduz ideologias. Decide interpretações e percepções seletivas e comunica essas decisões como se fossem verdades absolutas. Podemos ver isso quando a doutrina começa a explicar um conceito ou instituto jurídico recorrendo à “natureza jurídica”. Ora, nada mais vazio de sentido do que uma “natureza jurídica”. Primeiro porque o direito não tem nada de natural: é criação humana. Segundo porque o direito não tem nada de perfeição ou de vontade de Deus para conectá-lo àqueles ideais platônicos ou teológicos sobre a natureza das coisas. O uso argumentativo do conceito de natureza jurídica ilustra exatamente o simulacro decisório-interpretativo que a doutrina jurídica faz. Há uma decisão conceitual a ser realizada. E a doutrina a faz escondendo-a sob um conceito sobrenatural de natureza jurídica.

Assim, do mesmo modo que nossa percepção seletiva pode produzir a ilusão de que existem muito mais situações perceptivas do que realmente existem, também a doutrina jurídica condensa percepções seletivas criando ilusões na realidade do direito. Do mesmo modo que nós, com fome, enxergamos muito mais comida existente no mundo, também a doutrina, insegura, enxerga muito mais certeza e objetividade na interpretação do direito. Do mesmo modo que nós, – comprometidos com uma leitura constitucional da realidade, vemos muito mais violações a direitos fundamentais do que políticos de carreira –, também a doutrina jurídica, comprometida com a reprodução segura e correta dos conceitos necessários à prática jurídica enxerga muito mais os problemas conceituais exigidos pela prática forense e pelos concursos públicos (e atualmente também com as taxas de aprovação nos cursinhos preparatórios para concursos públicos) do que a sociologia jurídica, a teoria do direito e a filosofia política.

A realidade do direito, contudo, não é só a realidade da prática forense. Tampouco é a realidade dos concursos públicos. Mas a leitura dos manuais, dos cursos, dos resumos e tudo aquilo que se apresenta hoje na categoria da doutrina jurídica cria a ilusão de que o direito é apenas isto: prática forense e concursos. Uma ilusão perceptiva. Uma construção simbólico-discursiva da realidade pelo direcionamento das percepções seletivas.

Esse direcionamento pode ser entendido também como uma questão de ideologia. Mas o fato é que ele acontece tanto no nível perceptivo do sujeito - na relação entre sujeito e mundo - quanto no nível da comunicação jurídica, mais precisamente: na relação que Niklas Luhmann denominou de autodescrições, isto é, na relação de construção imaginária de uma unidade entre estrutura social e semântica.7 Quer dizer, além do risco de ilusões perceptivas na interpretação, inflacionando alguns pontos de vista da realidade e deflacionando outros, há também o risco da dupla contingência na interpretação: o risco da minha interpretação não ser igual a de outrem.

E agora veremos que esse duplo risco, da ilusão perceptiva e da dupla contingência, existe não apenas no nível da percepção individual e privada do sujeito, mas também no nível da doutrina jurídica, da prática forense e de tudo aquilo que produz a comunicação jurídica.

4 Percepção seletiva e dupla contingência

As ciências cognitivas desenvolveram diversos conceitos importantes para explicar o processo mental com o qual nós interpretamos o mundo. O conceito de percepção seletiva é um deles. E, como visto anteriormente, ele designa esse estranho acontecimento de enxergarmos mais aquilo que é de nosso interesse pessoal do que o restante da realidade.

Poderíamos supor que a percepção seletiva é determinada apenas por nossa vontade individual? Apenas por nossos interesses? Obviamente não. Claro que não podemos excluir um componente psíquico, antropológico, histórico e cultural na formação desses interesses que vão guiar, condensar, concentrar e determinar nossa percepção seletiva. Contudo, nossos interesses também são influenciados pelas ideologias de cada época, pelos hábitos de vida, por gostos pessoais, por necessidades e interesses materiais. Enfim. Há uma infinidade de motivos tanto para alimentar, quanto para esquecer nossas percepções seletivas.

Isso demonstra como nossas percepções seletivas podem ser provisórias. E demonstra também como elas podem mudar de uma pessoa para outra.

Aquilo que mais chama nossa atenção, hoje, podem ser situações de violência contra crianças, situações de miséria, de saúde, de transporte, de trabalho ou ainda os problemas ambientais e urbanísticos da nossa cidade. Mas amanhã nossa percepção seletiva poderá “bis- ver” outras coisas, outras situações, outras emoções. Nossa percepção seletiva depende do que alimentamos: miséria, violência contra crianças, problemas ambientais? Um bom ponto de partida para escolhermos nosso futuro trabalho é tomar consciência das nossas percepções seletivas. Mas tendo consciência também de que elas são sempre provisórias. Elas podem mudar com o tempo. Pois, se elas sofrem a influência da ideologia de cada época, é natural que com o tempo passemos a ver as coisas sob pontos de vistas diferentes. E isso vai desencadeando novas percepções, novas seleções perceptivas.

Do mesmo modo que nossas percepções seletivas podem mudar com o tempo, precisamos ter consciência também de que elas mudam de pessoa para pessoa, pois ninguém é igual a ninguém. E nenhum ordenamento jurídico, por mais completo e suficiente que seja, poderá prever e controlar todo esse universo da subjetividade psíquica do ser humano. Cada pessoa possui seus próprios interesses, suas próprias convicções, sua história e suas percepções das coisas. Cada pessoa alimenta mais umas e menos outras questões da vida cotidiana. Cada pessoa é um universo não só para os demais, como também para si mesmo. E os processos psíquicos que comandam isso sequer são conhecidos. Por isso, nada melhor que considerar esses seis bilhões de universos mentais atualmente viventes no mundo como sujeitos dotados de costumes, hábitos, modos de vida, interesses e percepções seletivas sempre diferentes.

As percepções seletivas, portanto, não apenas podem ser diferentes de uma pessoa para outra, como também podem mudar com o passar do tempo.

Mas será que nós temos essa liberdade toda na seleção das nossas percepções? Será que nossa percepção seletiva é fruto de uma escolha que nós mesmos fazemos em alimentar mais a sensibilidade para ver e sentir algumas situações e não outras? Ou será que a hipótese verdadeira nos diz que a nossa percepção seletiva precisa de certo nível de correspondência com a realidade da sociedade em cada época?

Com efeito, se cada um de nós pudesse eleger e alimentar a percepção seletiva que quisesse, sem prestar contas disso para a sociedade, a interpretação seria no mínimo impossível de ser experienciada intersubjetivamente. Quer dizer: se cada um pudesse ver apenas o que quisesse ver, a interpretação seria apenas um ato privado de constituição do sentido do mundo, sem nenhuma garantia de correspondência objetiva com as demais interpretações do mesmo mundo.

Niklas Luhmann usou uma expressão para se referir a esse problema. Ele chamou o problema da falta de correspondência entre a minha interpretação do mundo e a interpretação do mesmo mundo pelos outros de “contingência”.8 A contingência significa a falta de correspondência objetiva entre as diversas interpretações possíveis do mundo. E como nós podemos sempre perguntar sobre a interpretação que alguém faz da nossa interpretação, a contingência, na verdade, é sempre uma dupla contingência.

Em outras palavras, nós não temos nenhuma garantia de objetividade, segurança e certeza na interpretação verdadeira do mundo. Isso porque, como já salientado, nossa percepção do mundo é seletiva, ela enxerga algumas coisas e não enxerga todo o restante da realidade. Ela enxerga um mendigo em situação de extrema injustiça social, mas não enxerga a solidariedade dos grupos, pastorais e organizações sociais que procuram ajudá-los com políticas de inclusão sem fazer nenhuma propaganda disso. A realidade sempre é muito maior do que podemos ver e isso acontece porque nossa percepção é seletiva.

Agora bem: se há essa seletividade na nossa, quem garante que nossa interpretação será igual a de outrem? Quem garante que nossa percepção do mundo será a mesma que a de outra pessoa? Quem garante que o mundo, assim percebido e seletivamente interpretado por todos nós, terá o mesmo sentido para todos? Nenhuma instância subjetiva pode garantir isso.

E mais: como nós somos seres inteligentes, podemos também perguntar se a nossa interpretação corresponde à interpretação dos outros. E mais ainda: nós podemos questionar se a nossa interpretação do mundo foi corretamente interpretada pelos outros. Essa é, precisamente, a dupla contingência. A contingência da contingência. A incerteza não só na falta de correspondência entre duas ou mais interpretações do mundo, mas também a incerteza na falta de correspondência entre a interpretação que eu faço da interpretação dos outros.

Se essa questão pareceu difícil, pensemos em um exemplo para tentar ilustrá-la. Imagine-se a interpretação jurídica de um precedente jurisprudencial. Quando os intérpretes do direito estão lendo e interpretando o texto de um precedente jurisprudencial, a percepção seletiva do intérprete já está atuando ali. Então, já existe ali um risco do intérprete construir uma visão diferente do texto do precedente jurisprudencial. Essa é a contingência que existe na interpretação. Mas não é só: o jurista que interpreta o texto do precedente pode querer também interpretar a interpretação dos juristas que escreveram o precedente. Quer dizer, a interpretação pode ter por objeto outra interpretação, multiplicando assim os riscos da contingência. Dobrando a contingência, duplicando a contingência na constituição do sentido do direito.

E essa situação é muito comum quando os advogados selecionam os precedentes jurisprudenciais que confirmam as suas alegações e a sua proposta de interpretação do direito em questão. Muito embora, para outro cliente, o advogado possa selecionar outros precedentes.

A percepção, portanto, é seletiva. E essa seletividade afeta diretamente a interpretação. E como nós não vivemos sozinhos no mundo, cada pessoa enfrenta esse mesmo problema da seletividade na própria interpretação. Então, isso significa que é muito difícil garantir uma correspondência objetiva entre a nossa interpretação e a dos outros. E muito mais difícil ainda garantir que a nossa interpretação seja interpretada pelos outros corretamente, como também que a nossa interpretação a respeito da interpretação dos outros tenha alguma garantia de realidade ou de verdade.

5 Os meios tradicionais para assegurar nterpretações corretas do direito

Mas se isso é realmente assim, como é possível a interpretação jurídica? Bem, antes de respondermos a essa questão, precisamos entender primeiro os meios tradicionais que os juristas acreditaram para assegurar interpretações corretas, objetivas e seguras do direito.

A experiência jurídica no Direito Romano colocava esse problema sob o manto da prudentia. Os romanos exigiam prudência, isto é, cautela, cuidado na interpretação jurídica. Pois o direito era coisa séria. E um precedente mal interpretado poderia provocar consequências desastrosas. Por outro lado, os gregos acreditavam em uma prática jurídica de interpretação baseada na phronesis, que significa, também, prudência, cuidado. Só que a phronesis do mundo grego estava muito mais ligada à concepção platônico-aristotélica de justiça, enquanto a prudentia dos gregos estava mais ligada à concepção prático-concreta da aeqvitas, da equidade como justiça no caso concreto.

Passados quase dois mil anos, com períodos de alta e baixa Idade Média e também altos e baixos nas concepções jusnaturalistas de interpretação daquela imagem de direito natural universal, imutável, perfeito, divino, chegamos à modernidade da interpretação jurídica, com a Escola da Exegese, recomendando uma metodologia rigorosamente racional de análise sintática dos textos jurídicos - que no caso eram apenas os textos do Código Civil de Napoleão.

Os juristas dessa época (século XIX) acreditavam que, com base no texto legal, a interpretação jurídica poderia ser controlada, poderia ser objetiva, certeira. Se o texto é claro, a regra não se discute. Apenas se aplica. E, partindo de uma análise sintática dos textos, a operação lógica era a de subsunção da premissa menor (o caso concreto) à premissa maior (o texto da lei) para ver se havia ou não perfeita subsunção.9 Até hoje alguns juristas acreditam que essa operação lógico-formal garante a objetividade e a segurança na interpretação jurídica. Mas sabemos já, desde Hans Kelsen, que com base nos textos jurídicos (leis, precedentes, doutrinas etc.) a interpretação sempre poderá atuar criativamente10. Por essa razão, Kelsen definiu o direito não como texto legal, mas como norma jurídica, ou seja, como o resultado da interpretação lógica de textos jurídicos.

Antes de Kelsen ainda, os juristas tinham a obsessão por métodos de interpretação. Para além do método de análise sintática dos textos jurídicos da Escola da Exegese, a Escola Histórica do Direito acrescentou também o método histórico, o teleológico, o sistemático e o lógico. Tratam-se de métodos do século XIX, que, no entanto, aparecem ensinados nos manuais e cursos de introdução ao estudo do direito ainda nos dias de hoje. São esses métodos que nossos alunos aprendem como técnicas para interpretar corretamente o direito.

Insatisfeitos com os resultados desses métodos na prática interpretativa do direito, os juristas procuraram desenvolver outras concepções, igualmente metodológicas, de interpretação jurídica. O Movimento do Direito Livre foi o menos metodológico de todos, mas caiu em um subjetivismo parecido com aquele “decido conforme minha consciência” do jusracionalismo do fim da Idade Média. A Jurisprudência dos Interesses talvez tenha sido a concepção mais sofisticada de interpretação da sua época, em especial pelo recurso a concepções históricas, filosóficas e sociológicas para construir e recomendar métodos de interpretação dos “interesses legítimos”. No entanto, foi com o neopositivismo lógico de Hans Kelsen que a interpretação jurídica conquistou o seu mais alto grau de consciência da sua própria impossibilidade.

Hans Kelsen – tão criticado quanto mal compreendido no Brasil – foi um dos primeiros juristas a afirmar que o direito é norma jurídica. E como tal, o direito é resultado de uma interpretação construtiva de textos jurídicos. Como interpretação, o direito sempre traz em si uma escolha, uma decisão. Uma decisão realizada de modo discricionário,11 que escolhe um dentre os vários sentidos linguísticos possíveis pela linguagem do direito. Kelsen chamou isso de moldura interpretativa do direito.12 A moldura é como um quadro de possibilidades de interpretação igualmente válidas, igualmente corretas. A escolha da alternativa que vai prevalecer no caso só pode, então, ser uma escolha mais ou menos arbitrária de quem possui a competência normativa para interpretar o direito de modo vinculante (ele chama isso de interpretação autêntica). E para fazer essa escolha, o jurista usa outros valores (políticos, morais, religiosos etc.) que são exteriores à pureza científica do direito.

A rigor, Hans Kelsen joga um balde de água gelada sobre a pretensão dos juristas de conquistar, via metodologia, a tão sonhada segurança do direito. Ele desmonta a esperança de se garantir a certeza e a previsibilidade da interpretação jurídica. Tão mal compreendido quanto pouco estudado, os déficits na interpretação do pensamento de Hans Kelsen ilustram bem o quanto é possível se enganar na interpretação baseada em textos.

Após Kelsen, a ansiedade cartesiana por métodos de interpretação infalíveis continuou acirrada, especialmente sob as criações geniais de pensadores como Vernengo, Alexy, Betti, Austim, dentre outros. Outras concepções mais filosóficas, menos metodológicas, também foram surgindo, como as de Dworkin, Castanheira Neves, Müller, dentre outros. No Brasil, é importante lembrar a contribuição de Lenio Streck, que é original, importante, criativa e não se limita a importar uma concepção estrangeira para simplesmente aplicá-la, como ele mesmo diz, em terrae brasilis.13

Atualmente existem outras concepções que não são nem puramente metódicas, tampouco puramente filosóficas, como é o caso do pragmatismo de Posner, o institucionalismo de MacCormick, o comunitarismo de MacIntyre, o pragmatismo sistêmico de Luhmann e seus seguidores, o pragmatismo formal de Habermas e seus seguidores, a reconstrução estruturalista da tópica e da retórica grega nos seguidores de Perelman, além dos movimentos direito & literatura, direito & artes em geral e tantos outros.

Os discursos metodológicos sobre a interpretação jurídica se pulverizaram. Até podemos reuni-los sob o nome de pós-positivismo, desde que tenhamos consciência de que se trata de uma constelação de discursos metodológicos e filosóficos sobre a interpretação jurídica, sem nenhuma perspectiva de conciliação e sem sequer uma unidade.

De todos esses desenvolvimentos históricos da interpretação jurídica, os meios tradicionais para assegurar interpretações corretas são os textos jurídicos e os métodos para análise do sentido dos textos jurídicos. No século XX, após os anos 1950, os princípios passaram a ser cada vez mais invocados como guias para se descobrir o “verdadeiro” sentido dos textos jurídicos. E, por fim, somou-se aos textos, aos métodos e aos princípios a ideia da instituição ou organização, que também possui regras profissionais atuantes sobre a interpretação jurídica.

Claro que existem outras ideias, algumas bem exóticas diga-se de passagem, para assegurar metodologicamente interpretações corretas do direito. Uma que aparece muito nos discursos jurídicos brasileiros contemporâneos é o escalonamento de princípios fundamentais como se houvesse uma hierarquia entre eles. Como se os princípios fundamentais pudessem ser gradualizados com vistas a uma aplicação otimizada no estilo da ponderação de Alexy.14

Como se uns princípios fossem mais principiológicos dos que outros. Como se existissem regras, princípios e axiomas, isto é, “princípios dos princípios”, e assim infinitamente. Poderíamos mesmo chamar tais princípios mais principiológicos de axiomas, como acontece na ciência matemática. Mas não precisamos insistir em uma ideia que apenas perpetua a equivocada ansiedade cartesiana pela segurança linguístico-interpretativa do direito.

À pergunta: como é possível a interpretação jurídica nesse cenário de percepções seletivas e de dupla contingência?, respondemos: não é mais apenas com métodos científicos objetivos. Os métodos foram a crença ingênua das tradições jurídicas dos séculos XIX e XX.

Mas hoje sabemos, desde Heidegger e Gadamer, que os métodos científicos apenas criam uma ilusão de objetividade, uma ilusão de certeza e uma ilusão de segurança interpretativa do direito. No lugar da segurança epistemológica dos métodos de interpretação jurídica, podemos trabalhar agora, no início deste século XXI, com três dimensões da experiência interpretativa do direito. Três dimensões que guiam, conduzem e influenciam diretamente as escolhas contingentes da interpretação jurídica, são elas: a dimensão subjetiva, a dimensão organizacional (ou institucional) e a dimensão social.

6 Três dimensões da interpretação jurídica

Nós podemos identificar e sistematizar pelo menos três grandes dimensões que influenciam diretamente a interpretação jurídica, quais sejam: a dimensão subjetiva, a dimensão organizacional e a dimensão social. A dimensão subjetiva é o espaço de atuação da nossa psique. A dimensão organizacional (ou institucional) é na qual acontecem e atuam as estruturas motivacionais e a lógica das organizações profissionais (empresas, universidades, instituições do Estado). E a dimensão social é aquela na qual atuam as estruturas comunicativas dos sistemas sociais (direito, política, economia, ciência, religião, arte etc.).

Essas três dimensões atuam simultaneamente sobre a interpretação jurídica, contribuindo, de modo dinâmico, para a formação das nossas percepções seletivas. As três dimensões juntas constituem aquilo que podemos chamar de cultura e também de ideologia. Tal diferença entre cultura e ideologia não é assim tão formosa quanto se poderia pensar até a década de 1970.

Na dimensão subjetiva, a história de vida, a experiência, as convicções, as visões prévias, os preconceitos, enfim, o nosso mundo vivido constitui um horizonte de sentidos prévios que guiam a nossa interpretação. Esse mundo vivido atua como uma força gravitacional que atrai nossa interpretação para certos sentidos e repele a interpretação de outros sentidos igualmente possíveis.

Esse conjunto de todas as nossas vivências, experiências, convicções, que aqui chamamos de mundo vivido seguindo uma tradição da filosofia Husserl, não condiciona a nossa interpretação para um ou outro sentido. A relação entre interpretação, percepção seletiva e mundo vivido é muito mais complexa. Melhor entendê-la como um jogo de forças gravitacionais que estimulam a escolha por certos sentidos e não por outros. Uma experiência atua no intérprete como um juízo de valor já formado, podendo estabelecer condições mais favoráveis para escolher por um sentido e não outro. No entanto, jamais pode estabelecer uma condição determinante, uma condição sine qua non do sentido.

Sabemos também que não só a experiência e as vivências prévias do intérprete, mas também as suas convicções políticas, religiosas, morais etc., também influenciam com muita força a interpretação. Afinal, uma convicção política exerce uma força gravitacional que atrai a interpretação jurídica para o posicionamento político do qual o intérprete faz parte. É normal que um intérprete, que se encontra em oposição política ao governo, interprete o direito na perspectiva oposta a esse. E também não causa surpresa quando um intérprete do governo decide pelo sentido aberto no horizonte interpretativo do governo, não da oposição.

Cada pessoa, cada sujeito, cada ser humano possui suas experiências, vivências, convicções, preconceitos e modos de vida. Sem dúvida esse mundo vivido influencia sobremaneira as escolhas interpretativas que o interprete é constantemente chamado a realizar, mas essa é apenas uma dimensão subjetiva da interpretação jurídica. Ela exerce influência sim na interpretação jurídica. Mas não é só isso que importa na interpretação. A subjetividade do intérprete não constitui toda a realidade da interpretação e todos os endereços dos problemas da interpretação jurídica.

Claro que desde o Movimento do Direito Livre sabemos que a consciência subjetiva do justo é um valor importante na interpretação jurídica. Mas acreditar que a interpretação é só isso foi um grande equívoco e uma grande ingenuidade até hoje ainda acreditada e criticada. Como se o intérprete pudesse se desfazer da sua subjetividade tal qual alguém se desfaz de suas roupas para tomar banho. Como se o intérprete pudesse substituir a sua subjetividade pela objetividade daqueles velhos métodos científicos. E como se a subjetividade fosse sempre algo ruim que devesse ser afastado por sua insegurança, emotividade, irracionalidade, incontrolabilidade e imprevisibilidade. E só para dar o tom desta discussão, diante da tragédia na relação subjetividade/objetividade, tampouco a saída está em uma mediação agora “intersubjetiva”,15 pois o “inter” na subjetividade ainda é pouco para uma interpretação que, na realidade, é muito mais do que um mero acordo provisório, de convicções negociáveis, baseado em um consenso sob condições ideais de discussão. Isso porque, além da dimensão subjetiva, há também uma dimensão organizacional que influencia a interpretação jurídica.

Tanto quanto o mundo vivido do sujeito, a organização na qual o intérprete se encontra submetido também produz fortíssimas forças gravitacionais. Isso acontece porque as organizações possuem regras de comportamento e de conduta que interferem na produção do sentido das normas jurídicas.16

Fazer parte de uma organização ou instituição, como o Poder Judiciário Brasileiro, o Ministério Público ou a advocacia, significa desde já assumir um determinado tipo de comportamento e de posicionamento interpretativo bem determinado. Isso explica um pouco como é possível que sujeitos com convicções políticas bem definidas são eleitos presidentes da república e, de uma hora para outra, parecem fazer exatamente o contrário do que sempre pregaram em outras organizações. Isso explica também, um pouco, as mudanças de comportamento e da própria interpretação de sujeitos que, de membros da advocacia, tornaram-se Ministros de Tribunais Superiores. A organização não é apenas uma instituição no sentido tradicional, ela é também um núcleo de irradiação de sentidos prévios dos problemas práticos do mundo. Ela disponibiliza um arquivo de experiências, de ideologias e visões de mundo que conduzem a interpretação jurídica para um horizonte bem definido de produção de sentido normativo.

Ser um membro da advocacia – ser membro da “organização” ou instituição advocacia –, por exemplo, significa já a necessidade de assumir uma postura interpretativa do direito que não permite muito espaço para convicções morais ou éticas pessoais do advogado. Afinal, espera-se que os advogados não julguem seus clientes, mas sim que os defendam do melhor modo, para que eles recebam a melhor justiça possível. Por outro lado, ser um membro do Ministério Público – da instituição-organização Ministério Público – significa assumir outra postura interpretativa do direito: não aquela da advocacia de defender os clientes, mas a de procurar defender os interesses da lei e do Estado. E, com isso, a perspectiva interpretativa do direito se modifica bastante comparada com a da advocacia, pois é outro horizonte de sentido que se abre sobre os olhos de quem faz parte da organização-instituição Ministério Público.

Igualmente no Judiciário: a perspectiva de um membro da magistratura não é a de procurar afirmar os interesses do cliente, tampouco da lei ou do Estado, mas a de prestar a jurisdição do melhor modo possível. Sob a pressão do non liquet, a “organização-instituição” Magistratura precisa responder às demandas interpretando o direito da posição de quem ocupa um lugar nessa, e não outra, perspectiva interpretativa do direito.17

No entanto, além das dimensões psíquico-subjetivas e organizacional-institucional, também há uma dimensão genuinamente social que mexe na força gravitacional da interpretação-construção do sentido normativo do direito: a dimensão dos sistemas sociais e suas diversas formas de comunicação política, econômica, religiosa, científica etc. Em cada um desses sistemas, a comunicação da sociedade apresenta exigências específicas de constituição de sentido, as quais são, não raro, contingencialmente incompatíveis entre si.

7 Considerações finais

Por muito tempo se pensou que o problema da interpretação jurídica estaria em uma questão de método, mais especificamente de controle metodológico da subjetividade do intérprete. Há pouco tempo, a sociologia do direito chamou a atenção para outra dimensão da interpretação jurídica, que é a dimensão dos sistemas sociais ou dos diversos contextos comunicativos da sociedade, que apresentam exigências de racionalidade específicas e que interferem direta e indiretamente na interpretação jurídica. Estudos interdisciplinares com a psicologia e com a filosofia da mente abrem agora mais uma frente de trabalho, sob o conceito de percepção seletiva, que demonstra existir também uma zona de sensibilidade perceptiva muito importante ligada à dimensão organizacional, a qual define um horizonte de sentido especial para conduzir a interpretação jurídica para determinadas possibilidades de constituição de sentido do direito.

Para o problema da subjetividade na interpretação, as soluções clássicas foram a construção de sempre novos e mais sofisticados métodos de interpretação “objetiva”, hoje se prefere: “racional”, do direito. Para o problema das exigências intersistêmicas ou sociais da interpretação, as soluções indicadas vão desde mais democracia até mais compromisso com os direitos fundamentais, com as consequências práticas da decisão ou com convicções de moralidade política da comunidade. Mas e para o problema das regras, do “arquivo” ou da ideologia da organização? Como lidar com uma instituição que sempre possui uma história e que, à medida que nos tornamos membros dela, submetemo-nos automaticamente às suas exigências ideológicas e funcionais previamente delimitadas pela própria rede histórica de experiências da instituição?

É possível encontrar nos modernos sistemas de gestão, em especial nos modelos de governança corporativa, algum encaminhamento possível para essa dimensão institucional da interpretação jurídica? E mais: até que ponto a imagem que a instituição constrói de si mesma não deixa de ser um sistema de discursividade fortemente “arquivado” sob o índex de um conjunto de experiências históricas que, por uma simples questão de integridade e coerência dworkinianas18, precisam ser consideradas para as próximas interpretações?

Como se vê, finalizamos esta pesquisa com mais perguntas do que respostas. Mas, longe disso ser lamentável, vislumbramos uma possibilidade de novos desenvolvimentos interessantes no campo das pesquisas empírico-descritivas sobre a interpretação jurídica contemporânea. Afinal, como sinalizado no início desta reflexão, a interpretação não apenas descobre um direito previamente existente em algum lugar do mundo jurídico: ela o constrói, inventa-o, recria-o. E, por isso, vale a pena repetir: a interpretação jurídica é uma atitude, uma ação, um compromisso assumido pelo jurista de realizar o direito, ainda que a definição do sentido normativo desse direito seja fruto de uma operação altamente complexa, duplamente contingente e inevitavelmente submetida ao risco de muitas autoilusões que envolve, pelo menos, três dimensões simultaneamente: uma dimensão psíquico-subjetiva, outra dimensão organizacional-institucional e outra dimensão sistêmico-social.

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Legal Interpretation and Perceptive Selection: an Organizational-Institutional Dimension In The Legal Meaning

Abstract

This research analyzes the legal interpretation as a constructive attitude of law. Thus, it is intended: a) propose a conception of legal interpretation less methodological and more descriptive, using the concept of selective perception of social psychology; b) observe the problems of illusion and double contingency within the selective perception leading to legal interpretation; c) identify the traditional means used to supposedly correct interpretations of law; d) analyze three dimensions, especially the organizational-institutional dimension, which leads to selective perception of the right to predefined directions. The analysis of these issues shows how outdated are the methodological conceptions of legal interpretation played by the legal doctrine since the nineteenth century and the need for a transdisciplinary compression interpretative law practice.

Keywords: Legal interpretation. Selective perception. Organization. Decision. Methodology.

Recebido em: agosto de 2015.

Aprovado em: agosto de 2015.

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1 MacCORMICK, Neil. Institutions of law: an essay in legal theory. New York: Oxford University Press, 2008a, p. 21; ______. Legal reazoning and legal theory. Oxford: Clarendon Press, 1994, p. 226; e. Pratical reazong in Law and morality. New York: Oxford University Press, 2008b, p. 171.

2 A expressão percepção seletiva” tem origem na psicologia. Ver-se especialmente: PRONIN, Emily. Perception and misperception of bias in human judgment. Trends in cognitive sciences. v. 11. Issue 1. 2007. p. 37-43.

3 ROSA, João Guimarães. As margens da alegria”. In: ______. Primeiras Estórias. 14. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 13.

4 Estamos utilizando a expressão arquivo e arqueologia” no sentido de Michel Foucault. Ver-se: FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 6. ed. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. p. 146; e ______. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8. ed. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. XIII. Sobre a noção de arquivo, compare-se também com DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001. p. 42.

5 Hans Kelsen já sinalizava o fato de que a interpretação jurídica é um ato de poder, In: Teoria pura do direito. 6. ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 391; Ver-se também: KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Trad. José Florentino Duarte. Porto Alegre: Safe, 1986. p. 306.

6 Cf. LUHMANN, Niklas. Sistema giuridico e dogmatica giuridica. Trad. Alberto Febbrajo. Bologna: Il Mulino, 1978. p. 41.

7 No caso do sistema jurídico, ver-se especialmente: LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1993. p. 496.

8 O conceito de contingência carrega uma pesada tradição que vem de Aristóteles, passando por Tomás de Aquino, Leibniz, até chegar ao conceito de dupla contingência de Talcott Parsons. Contingência se opõe à necessidade. Algo é contingente quando não é necesrio, nem impossível (LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales: lineamientos para una teoría general. Trad. Silvia Pappe y Brunhilde Erker; Coord. Javier Torres Nafarrate. Barcelona: Anthropos; México: Universidad Iberoamericana, 1998, p. 115). A contingência então designa a existência de outras possibilidades para um mundo dado. Um conceito da fase funcional-estruturalista de Luhmann é este: por contingência entendemos o fato de que as possibilidades apontadas para as demais experiências poderiam ser diferentes das esperadas” (LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. p. 45). Ver-se também: SPENCER-BROWN, George. Laws of form. New York: Dutton, 1979. p. 1. Ver-se também: ESPÓSITO, Elena. Loperazione di osservazione: costruttivismo e teoria dei sistemi sociali. Milano: Franco Angeli, 1992. p. 89; CLAM, Jean. Questões fundamentais de uma teoria da sociedade: contingência, paradoxo, só-efetuação. Trad. lio Schneider. São Leopoldo: Unisinos, 2006. p. 21; e também CLAM, Jean. Droit et société chez Niklas Luhmann: la contingence des normes. Paris: Press Universitaires de France, 1997. p. 117.

9 Existem várias referências dessa época, dentre as quais destacamos, pelo sucesso entre os estudantes de graduação, o livro de BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus, 1980, especialmente os parágrafos IV e V.

10 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 391; Ver-se também: KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Trad. José Florentino Duarte. Porto Alegre: Safe, 1986. p. 306.

11 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 388.

12 Ibidem.

13 Ver-se especialmente: STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. passim.

14 Especialmente: ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993. p. 112.

15 Fazemos referência à aposta intersubjetivo-discursiva de Habermas e seus seguidores: HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1998, passim. Para um aprofundamento crítico nessa discussão, ver-se: SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Direito e racionalidade comunicativa: a teoria discursiva do direito no pensamento de Jürgen Habermas. Curitiba: Juruá, 2007, p. 307.

16 Cf. SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Direito processual e sociologia do processo: aproximações entre estrutura social e sentica do direito processual na perspectiva da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Curitiba: Juruá, 2011. p. 127. Ver-se também a pesquisa de ROCHA, Leonel Severo; AZEVEDO, Guilherme de. Notas para uma teoria da organizão da decisão jurídica autopoiética. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD). v. 4. n. 2, julho-dezembro 2012. p. 193-213.

17 Cf. SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Direito processual e sociologia do processo: aproximações entre estrutura social e sentica do direito processual na perspectiva da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Curitiba: Juruá, 2011. p. 127. Ver-se também a pesquisa de ROCHA, Leonel Severo; AZEVEDO, Guilherme de. Notas para uma teoria da organizão da decisão jurídica autopoiética. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD). v. 4. n. 2, julho-dezembro 2012. p. 193-213.

18 Referimo-nos à noção de virtue of political integrity de: DWORKIN, Ronald. Laws empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986. p. 165-166.

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