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Sobre o Poder

Cecília Pires

Possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (1969), mestrado em Filosofia
pela Universidade Federal de Santa Maria (1975), na área de Filosofia Contemporânea e doutorado em
Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988), na área de Filosofia Social. Foi Professora
na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Membro do GT/ANPOF Ética e Cidadania. Realizou
estágio de pós-doutorado, na área de Filosofia Política em Paris I - Sorbonne (2000-2001).

Resumo

Este artigo tem como foco intencional apresentar as compreensões contemporâneas de poder, baseadas nas análises de dois autores do Século XX, Hannah Arendt e Michel Foucault, que estiveram atentos às questões da sociedade. Trata-se de demarcar entendimentos diferenciados, a partir dos solos conceituais em que se sustentam as pesquisas dos pensadores. Enquanto, para Arendt, o poder tem uma apreciação positiva em si mesmo, ainda que possa sofrer destruições quando surge a violência, como resultado das ações dos sujeitos, e, portanto, o destrói, Foucault parte de uma perspectiva de poder em que o papel do indivíduo é quase inexistente, na medida em que o poder, não estando situado em lugar algum e funcionando como uma espécie de ligamento entre indivíduos e instituições, não traz em si mesmo a conotação de positividade ou negatividade, mas de funcionamento.

Palavras-chave: Poder. Liberdade. Condição humana. Governabilidade.

1 Encaminhando a questão: as interfaces do problema

A intenção que temos na escritura deste artigo é propor uma análise conceitual acerca do poder como centralizador das relações sociais e políticas, na forma como foi organizado, nas instituições políticas e na sociedade civil. Além disso, mostrar seus desdobramentos como experiência de convívio, viabilizada pela racionalidade dos sujeitos.

Partimos do pressuposto de que tudo se alinha, originariamente, na vontade dos sujeitos, cujas decisões estão presentes nos avanços e recuos da história humana. Se isto é assim, na análise da ideia de poder, é fundamental a constatação de que a governabilidade se materializa nas relações de poder, alicerçadas nos saberes como Direito, Ética e Justiça, marcos da regulação e da emancipação. Sabemos que essa tese não é consensual entre os estudiosos da Filosofia Política.

Esses marcos podem produzir novas condições para uma releitura da questão dos direitos fundamentais relacionados com a construção do espaço democrático. É imprescindível o empenho de todos os cidadãos para que se realize o ideário dos Direitos Humanos, não apenas aquele da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, do tempo da Revolução Francesa, mas todos os avanços e todas as conquistas que a humanidade já conseguiu e que hoje atingem o direito de viver num planeta cuidado, situado num projeto de sustentabilidade segura, como garantia da vida saudável. A carga negativa do fenômeno colonizador, que temos na nossa história, pesa ainda de forma intensa no imaginário social. Temos muitas dificuldades de pensar em saídas emancipatórias, que consigam superar a situação maniqueísta que se apresenta atualmente na sociedade civil em relação aos que têm ou não direito de participar da vida política.

Um traço característico da humanidade é o aparecimento do poder e o desejo ínsito de liberdade, nesta relação de poder. Nessa dinâmica, poder e os correlatos liberdade e igualdade, construiu-se o modo de vida dos humanos, desdobrando-se em várias dimensões, sendo uma delas a regulação.

Na construção dos saberes, muitos caminhos foram delineados pela mediação das relações de poder. O Direito surge como um desses saberes, a partir da absorção dos hábitos, costumes, formas de vida que os sujeitos escolheram para se organizarem socialmente. Dessas escolhas resultam limites ao desejo de liberdade, nesse convívio social. Um dos limites é a regulação que se evidencia pelos costumes, traduzidos sob o aparato das leis, cujo controle cabe à autoridade. Entramos no debate acerca das regras, como elementos criados pelos sujeitos para facilitar a regulação.

A estrutura da regulação pode limitar a emancipação. Isso permite a afirmação do Direito como um procedimento que viabiliza a Justiça, enquanto valor ético e democrático. No entanto, em algumas situações ainda que ocorra o ordenamento jurídico, não teremos a garantia da efetividade da justiça. Essas questões estão em consonância ou em dissonância nos caminhos que os humanos escolheram e construíram para realizar sua história. Assim, o poder exercido entre eles projeta limites no seu ímpeto de liberdade e no seu desejo de igualdade, o que pode ocasionar reações de contrariedade, chegando mesmo à ações violentas, as quais encontram nas leis o interdito sob a forma de regulação.

Desse modo, o que foi criado como uma condição humana, para que cessasse a “guerra de todos contra todos”, tornou-se, em algumas situações, um instrumento de dominação, no conjunto das práticas dos saberes. O poder carrega consigo esse potencial de regulação e emancipação que, conforme o procedimento, amparado nas leis, pode ou não viabilizar a justiça e, nessa tensão, se efetivar ou não o direito.

Então, a quem cabe a aplicação dessa materialidade das leis, na conformidade dos valores criados? Qual poder têm os sujeitos como referência, de modo que não afete sua liberdade, como condição própria de sua humanidade? Qual justiça é desejável no conjunto dos regramentos, que permita o convívio dos sujeitos, sem declinarem para a violência? Como os saberes, (poder, justiça e direito) podem viabilizar a vida humana, exercendo-se o controle da violência e possibilitando uma vida voltada para o bom e o justo? O projeto de liberdade se realizará tendo como foco uma vida ética desejável? Questões tais como as nominadas servirão de fundamento para a análise do poder na esfera do fazer político, como experiência democrática.

Entendemos as questões trazidas pelo imaginário social e acatadas pelo ideário dos Direitos Humanos como questões éticas, que buscam demarcar todas as formas de violência pública e privada, com a pretensão de superá-las. Os quatro cantos da terra experimentaram diversas ações violentas, como a violência do Estado sobre o sujeito e atitudes de dominação, próprias dos fundamentalismos de diferentes origens, em que o soberano tinha o poder de vida e morte sobre seus súditos. A luta em defesa da vida, contra a violência, se traduziu, portanto, num processo continuado de preservação de pessoas, ao qual se agregou a defesa da vida dos demais seres da natureza.

Essas questões são pontuais na análise das relações de poder, especialmente na perspectiva da filosofia política, que discute os princípios da república e as teorias da democracia. Se entendemos a possibilidade democrática como uma possibilidade real a ser experimentada e uma relação sadia entre os sujeitos sociais, não subjugados às formas simbólicas e reais de poder, temos que aceitar o desafio ético de pensar essas relações, para que possamos aclarar o que entendemos por vida política.

Sabemos que a aparição do poder é um fenômeno que acontece entre os humanos como uma ideia social, que se expressa em termos de organização, necessidade e racionalidade, na medida em que essas dimensões se referem ao sujeito que eclode do meio familiar, social, econômico, político, cultural, educacional e religioso. As diferenças dos conteúdos dessas diversas dimensões atravessam os saberes das subjetividades e podem resultar em enfrentamentos, não apenas simbólicos, mas materiais, entre os indivíduos e seus grupos de pertencimento.

As falas dos indivíduos, ao expressarem suas intenções, desejos e projetos, são falas de poder que chegam às instituições desde as mais simples até as mais complexas como o Estado. O Estado aparece como a fala maior do saber e do poder e se faz ouvir representando as subjetividades que ele domina jurídica e politicamente.

Ao buscarmos autores que tratam da questão do poder, após as experiências de extermínio que marcaram o século XX, especialmente nos países europeus, interessa-nos mostrar as sutilezas dessas compreensões, estando ambos, Arendt e Foucault, interessados em elucidar o que ocorreu e ocorre com a espécie humana, na forma como foi tratada e se deixou tratar dentro das configurações da condição humana.

O poder é esse fenômeno que só aconteceu e acontece entre os humanos, tornando-se uma questão que diz respeito à humanidade. Sobre o poder são feitos muitos pronunciamentos e os discursos se ordenam, obviamente, a partir da cosmovisão de cada um.

2 Arendt: Os aparecimentos do poder na sua forma violenta

Como pensar a pluralidade? É possível que estivesse presente no pensamento de Hannah Arendt, especialmente na obra A Condição Humana (1981), a necessidade de afirmação da cidadania, na vertente crítica da modernidade, que construiu e afirmou o individualismo nas ações e nos discursos. No entanto, ela assinala a pluralidade humana como um marco para que se reflita mais do que a esfera particular e menos do que as intenções coletivas. Observa-se que Arendt entende essas duas situações como criadoras de dominação, que podem conduzir a distorções na organização social. Enfatiza, todavia, o espaço dos sujeitos em ação.

Essa pluralidade deve buscar uma atitude persuasiva, uma vez que o discurso e a ação necessitam de argumentos, de testemunhas, mais do que fortes presenças hierárquicas e parciais. Mesmo nas relações de poder, há que se destacar a compreensão da ação como aquilo que unifica a humanidade e a partir da qual ela desenha seus projetos, ainda que nem todos possam ser viáveis. Assinala a autora a imprevisibilidade das ações humanas que podem levar a descaminhos republicanos, chegando mesmo àquilo que ela chamou a invenção totalitária.

Isto pode por em questão as manifestações de poder, enquanto legitimidade, e, consequentemente, a perda de sentido da política. A preocupação maior reside no que a autora entende como desaparecimento do mundo, o estágio em que as relações políticas entre os homens se tornam frágeis, podendo a política desaparecer. Se isto ocorrer, desaparecendo a política, homem e mundo estão ameaçados, por configurações violentas, totalitárias. Essas configurações se desenham em torno da categoria da ação, como o lugar público em que se manifestam a pluralidade dos homens e as diferenças entre os mesmos. É quase um aprendizado o querer político e o fazer político, que poderão ter êxito, na medida em que os preconceitos forem superados. O convívio no mundo implica em muitas mediações. Envolve o trabalho de gerações e transcende o tempo de vida dos sujeitos singulares.

A pluralidade, que permite o nascimento político1, ondula entre a igualdade e a diferença. Se não houvesse essa dimensão da igualdade, seria difícil a compreensão e o planejamento de um futuro comum para a humanidade. Afinal, todos querem sobreviver. E se a diferença for esquecida, o discurso e a ação poderiam ficar diluídos no entendimento entre os humanos. Os sons e sinais deixariam de ter um sentido e teriam a mesma função que ocorre entre os demais seres da natureza. Esta é a singularidade do humano, que deve ser acolhida no movimento da ação, que permite a pluralidade2. Esse nascimento político ocorre na esfera pública, que é um lugar cultural em que a transparência acontece. Requer a escuta de várias falas, uma vez que esse lugar, esfera pública, é um lugar diferente da esfera privada que está restrita às configurações individuais.

A vita activa, espaço da pluralidade, tem exatamente essa característica de evidenciar as significações que os humanos construíram para a vida comum, em que a ação se expressa como a atividade própria de todos os que vivem na Terra e habitam o mundo3.

Hannah Arendt sublinha que a liberdade se consolida na esfera pública, na comunidade política em que há condições para a manifestação do poder, não da violência. É no espaço da polis que se configura a autoridade política. Indica que o âmbito da necessidade se restringe ao espaço privado, é ainda um momento pré-político, a organização privada da família4. Nesse espaço da necessidade, pode ser que ocorram situações de força e de violência, como meios de vencer a necessidade e alcançar a liberdade no mundo, no espaço público. Toma o exemplo da polis grega, quando o cidadão se destacava pela ação e pelo discurso, numa relação de igualdade. Esse era o modo de inserção social.

A esfera pública torna-se, portanto, um lugar de transparência das ações, onde os homens realizam sua plenitude de maioridade cidadã. Público, para a autora, tem a conotação de mundano, aquilo que não é natureza, é mundo da cultura, é a mediação que ocorre, considerando as diferenças culturais e a igualdade própria da condição humana. É o lugar da ação, em que o viver a pluralidade, permite a vida política.

É por essa razão que a esfera pública apresenta-se posterior à esfera privada, uma vez que esta precisa atender as necessidades mais urgentes da sobrevida humana, para que haja possibilidade da vida pública, onde a liberdade acontece, fora do oikos.

A pergunta pela questão da liberdade é uma tarefa difícil, afirma H. Arendt, pois entra-se em dilemas de impossibilidade lógica, de tal modo que fica difícil a concepção da ideia de liberdade, se forem entendidos tais dilemas entre a consciência que se sabe livre e os requintes da causalidade, que funcionam como interditos para a vivência prática da liberdade.

Dimensiona sua análise na retomada dos gregos, no acontecimento da liberdade na polis, nas relações entre liberdade e política. Sua hipótese é de que a liberdade é o sustento da política, pois ela se torna auto-evidente nas práticas políticas.

Assevera Arendt:

O campo em que a liberdade sempre foi conhecida, não como um problema, é claro, mas como um fato da vida cotidiana, é o âmbito da política. [...] devemos ter sempre em mente, ao falarmos do problema da liberdade, o problema da política e o fato de o homem ser dotado com o dom da ação; pois ação e política, entre todas as capacidades e potencialidades da vida humana, são as únicas coisas que não poderíamos sequer conceber sem ao menos admitir a existência da liberdade, e é difícil tocar em um problema político particular sem, implícita ou explicitamente, tocar em um problema da liberdade humana5.

Mostra que houve uma intenção dos filósofos medievais de separarem a liberdade da política, tratando a liberdade no âmbito da interioridade, embora houvesse escravidão exterior. A autora critica o conceito de uma liberdade interior, talvez, por ter um viés religioso. Entende H. Arendt que o homem nada saberia dessa liberdade interior se não tivesse experimentado a condição concreta da liberdade, que é constatável no mundo.

E reitera:

Tomamos inicialmente consciência da liberdade ou do seu contrário em nosso relacionamento com outros, e não no relacionamento com nós mesmos. Antes que se tornasse um atributo do pensamento ou uma qualidade da vontade, a liberdade era entendida como o estado do homem livre, que o capacitava a se mover, a se afastar de casa, a sair para o mundo, e a se encontrar com outras pessoas em palavras e ações. Essa liberdade é claro, era precedida da liberação: para ser livre o homem deve ter-se libertado das necessidades da vida. 6

Não significa, todavia, que as ações humanas se orientem, apenas, para uma ideia de bem. Nem sempre podemos pensar de modo promissor as experiências políticas realizadas pela humanidade, pois há registros históricos das ações de aniquilamento e dominação. E esse é o paradoxo, pois se o sentido da política é a liberdade, ao ocorrerem atos que colocam em jogo a continuidade da vida, está se retirando o sentido próprio da política ao serem criadas situações de violência. E o desaparecimento da política, adverte Arendt, decorre no desaparecimento da humanidade. Esse é o risco.

Pode-se afirmar, tendo em vista a expressão da própria Hannah Arendt, que os acontecimentos totalitários do século XX surpreenderam sua visão e expectativa a respeito da humanidade. A dimensão desumana do regime nazista, expressa no genocídio dos judeus, levou-a a pensar de modo sistemático acerca da política, a partir da análise filosófica.

A autora analisa a corrida armamentista dos anos 60 do século passado como uma corrida entre os que se temem e se vigiam, para não serem derrotados. Chama de “jogo de xadrez ‘apocalíptico’ [..] entre aqueles que manobram no mais alto plano de nossa civilização”7. Credita à forma como a violência aparece regida pela categoria meio-fim o arrefecimento das ações políticas no sentido emancipatório e a consequente arbitrariedade como resultado das ações dos sujeitos.

Na fala de Arendt, Sobre a Violência, lemos:

A própria substância da ação violenta é regida pela categoria meio-fim, cuja principal característica, quando aplicada nos negócios humanos, foi sempre a de que o fim corre o perigo de ser suplantado pelos meios que ele justifica e que são necessários para alcançá-lo. Visto que o fim da ação humana, distintamente dos produtos finais da fabricação, nunca pode ser previsto de maneira confiável, os meios utilizados para alcançar os objetivos políticos são muito frequentemente de maior relevância para o mundo futuro do que os objetivos pretendidos8.

Para Arendt, o assustador é o fato de que os cérebros que pensam a guerra são frios em sua calculabilidade e assessoram o governo com essa mentalidade científica de frieza. Para ela, além de que eles podem “pensar o impensável”, o problema é que eles não pensem este impensável. Daí decorrem os desastres dos mais variados tipos, sempre caracterizados pelo aniquilamento. Reage a autora diante do trato secundário da questão da violência, como se isso não definisse o futuro da humanidade. É o momento em que o poder se torna diáfano e tende a desaparecer. A experiência totalitária do século XX mostrou isso, que a violência destruiu o poder.

Na questão da violência isso ocorre porque ela sempre foi desconsiderada como objeto de estudo e análise, por sempre ter integrado o cotidiano e a história. Este é o problema maior, pois a perda de sentido da violência se registra, quando ela se torna uma estratégia de ação.

Quem quer que tenha procurado alguma forma de sentido nos registros do passado viu-se quase que obrigado a enxergar a violência como um fenômeno marginal. Não importa se se trata de Clausewitz denominando a guerra como “a continuação da política por outros meios”, seja Engels definindo a violência como o acelerador do desenvolvimento econômico, a ênfase recai sobre a continuidade política ou econômica sobre a continuidade de um processo que permanece determinado por aquilo que precedeu a ação violenta9.

Hannah Arendt reitera que o laço com a tradição possui uma debilidade – o esquecimento – e que isso pode permitir um não direcionamento do presente, pelo fato do passado não estar recomposto na memória, ficando assim inviável a perspectiva do futuro. A compreensão sobre os fatos nos leva a uma reconciliação com o mundo, para não perdermos o significado dos acontecimentos. Por isso compreender não é necessariamente perdoar. “ao compreendermos o totalitarismo não estaremos perdoando coisa alguma, mas, antes, reconciliando-nos com um mundo em que tais coisas são definitivamente possíveis”10. Na verdade, o que a autora escolhe como alvo de análise é o fato de que o esquecimento desvincula a realidade da reflexão. Perdoar é um ato definitivo, compreender é interminável, dura a vida toda.

Os acontecimentos podem se repetir e vitimarem a humanidade, novamente, e a ausência de uma compreensão sistêmica do passado, a crítica não realizada a respeito daquilo que foi legado como herança, pode levar a um novo aniquilamento. A memória trai a história e afasta a humanidade das possíveis compreensões acerca do que ocorreu. Há uma inútil condenação à razão, que foi cúmplice de um holocausto, mas que não consegue tornar a realidade translúcida para ser entendida.

O esquecimento das vítimas é o mais trágico, pois além de dificultar a reflexão sobre o fato, ainda permite um tratamento de desigualdade, quando os registros da história destacam os componentes heroicos ou a narrativa vencedora em detrimento de um relato das vítimas. Parece pertencer aos tribunais a ausculta dos vencidos.

Desse modo, o propósito da política era produzir condições de possibilidade para a liberdade acontecer. Mas o totalitarismo não acredita nessa relação e cria um fosso entre o ser livre e o fazer político, de tal forma que a liberdade funciona como uma liberação da política. Esse divórcio não é aceito pela filósofa que defende a ideia de que a liberdade é a raison d’être da política.

Liberdade é entendida como participação na polis, ou seja, inserção no espaço público, representada no discurso e na ação. Aqui a importância da pluralidade e da ousadia, pois a autora entende que em política a coragem é necessária. “A coragem libera os homens de sua preocupação com a vida para a liberdade do mundo. A coragem é indispensável porque, em política, não a vida, mas sim o mundo está em jogo”.11 É necessário estar preparado para esse jogo da cidadania, que permite uma igualdade efetiva nos acordos do poder.

A pergunta pela questão da liberdade é uma tarefa difícil, afirma H. Arendt, pois se entra em dilemas de impossibilidade lógica, de tal modo que fica difícil a concepção de tal ideia, se forem entendidos tais dilemas entre a consciência que se sabe livre e os requintes da causalidade, que funcionam como interditos para a vivência prática da liberdade.

Se os “homens devem agir em concerto”12 como pensa Arendt, a violência não pode ser um princípio de ação, para que o espaço público não se torne opaco nas suas manifestações de poder. Neste aspecto, a violência deve ser pensada como um fenômeno histórico importante, na medida em que contribui para a dissolução do poder, destruindo a soberania e a igualdade entre os cidadãos. O dramático é que os objetivos das ações humanas nem sempre podem ser previstos de maneira confiável13.

3 A análise de Foucault: o poder como dominação e biopolítica

Há uma diferença substancial na forma como Arendt analisa o poder e o modo como Foucault conceitua poder. Enquanto para Arendt, o poder tem uma conotação de gerenciamento e limites da governabilidade, dentro das dinâmicas da racionalidade, e que só se dilui face à violência, para Foucault, o poder não se situa em um lugar determinado por leis ou autoridades, mas se revela como verdades, as quais funcionam como um regime, que sujeita saberes, domina os sujeitos. Essas nuances, que aparecem nas significações dos autores referidos, denotam a forma heurística da análise de cada um, uma vez que, os fundamentos de ambos são diferentes. De uma forma ou outra, o poder é uma questão humana, por excelência, ainda que para Foucault, a modernidade ao exaltar a razão cognitiva, matou uma ideia de sujeito e colocou em seu lugar a instituição.

O que se pode deduzir é que Foucault não pretendeu construir uma teoria acerca do poder. Seus estudos anteriores História da Loucura (1961) e Nascimento da Clínica (1963) investigaram sobre o conhecimento da loucura, os saberes a respeito dos comportamentos e tratamentos clínicos, para entendimento das diversas formas discursivas, clássicas e modernas.

O entendimento do que ele chamou saberes sujeitados permite propor uma analítica do poder, a partir das manifestações de discursos e conhecer uma forma moderna de saber, que não reside mais num conceito abstrato de doença, mas numa compreensão moderna do indivíduo como corpo doente.

Em As Palavras e as Coisas (1966) aprofundará essas investigações, situando os novos saberes e abrindo o leque discursivo das ciências humanas, na abrangência do sujeito como dado do conhecimento. Há como que um nascimento do homem, enquanto sujeito do conhecimento. A arqueologia como método e a genealogia como tática, segundo o autor, permitem que seja feita a crítica ao poder que advém do saber formal. Trata-se da insurreição dos saberes14. É uma revolta contra uma manifestação de poder vinculado ao discurso formal da ciência, que se entendia quase infalível. Uma recusa a esses efeitos que o poder discursivo do saber produz numa forma de hegemonia.

Na análise de Foucault, interessa menos o poder como registro de um controle estatal do que o poder na forma de redes e ocupação de todos os espaços por onde circulam as subjetividades. A ideia da microfísica do poder atenta explicitamente para essa questão do exercício e das relações de poder. Um poder que funciona como os elos de uma corrente, em cadeia.

Essa é sua convicção:

O poder funciona. O poder se exerce em rede e, nessa rede, não só os indivíduos circulam, mas estão sempre em posição de ser submetidos a esse poder e também de exercê-lo. Jamais eles são o alvo inerte ou consentidor do poder, são sempre seus intermediários. Em outras palavras, o poder transita pelos indivíduos, não se aplica a eles15.

Foucault trata o poder sem uma localização efetiva. Não entende o poder situado no âmbito do Estado, especificamente, ou na esfera da sociedade. O poder circula pelas instituições que produzem regulações e processos de sujeição. Entende que os indivíduos funcionam nas redes de poder, sendo um efeito dentro de uma corrente de transmissão do poder. Esse entendimento de Foucault caracteriza o poder como uma descentralização de lugar. Seus mecanismos se situam entre as regras do direito e os regimes de verdade, limites esses que fazem o poder funcionar, ser exercido. O poder passa pelos indivíduos16.

Compõe-se, portanto, uma nova mecânica do poder, que se distancia da ideia de soberania politica, e, segundo Foucault, foi “uma das grandes invenções da sociedade burguesa”17. Essa nova forma de poder que o autor denomina poder disciplinar, responde pelo domínio dos corpos. Coexistem dois discursos, o da disciplina e o da lei, mas alheios, uma vez que o disciplinamento não se orienta pela regra jurídica, fundamentada na soberania, mas se conduz pela regra natural, pela normalização, em torno da qual se organizam as ciências humanas, a partir de um saber clínico, diferente do saber jurídico.

Não quer identificar poder com um conceito fechado e situado em lugares determinados. Acentua ainda:

O poder não existe. Quero dizer o seguinte: a ideia de que existe, em um determinado lugar, ou emanando de um determinado ponto, algo que é um poder, me parece baseada em uma análise enganosa e que, em todo caso, não dá conta de um número considerável de fenômenos. Na realidade, o poder é um feixe de relações mais ou menos coordenado18.

A intenção do autor é demonstrar que os mecanismos do poder são heterogêneos e que não podem ser agrupados numa concepção orgânica de lei jurídica e de seu substrato, a soberania. Esta, busca construir relações entre os sujeitos, envolvendo direitos e capacidades, na tentativa de compor uma unidade de poder em torno da figura do Soberano ou do Estado. No entanto, é necessário pensar o poder como resultante das relações de dominação, em que não comparecem nem o sujeito, nem a unidade da lei, mas as relações e os operadores da dominação. São essas relações que fabricam os sujeitos; nesse sentido, é sua afirmação de que os sujeitos são efeitos do poder e não o seu fundamento.

E é contundente:

Em vez da tríplice preliminar da lei, da unidade e do sujeito – que faz da soberania a fonte do poder e o fundamento das instituições –, eu acho que temos de adotar o ponto de vista tríplice das técnicas, da heterogeneidade das técnicas e de seus efeitos de sujeição, que fazem dos procedimentos de dominação a trama efetiva das relações de poder e dos grandes aparelhos de poder. A fabricação dos sujeitos muito mais do que a gênese do soberano: aí está o tema geral19

Se o poder está ai estabelecendo relações de força, próprias de uma sociedade de controle, será legítimo afirmar que não há propriedade nessas relações, ou seja, ninguém é dono do poder. Não estando efetivamente em nenhum lugar, mas transitando por todos os lugares nessa teia de relações, o poder se apresenta como exterioridade e quebra a forma unitária de um discurso, na medida em que não há posse dos saberes. Os regimes são deixados de lado e os paradigmas fechados em suas ortodoxias são abandonados. A construção de verdades decorre dessa dinâmica das relações e práticas do poder, que envolve a todos numa estrutura microfísica, mas que não pode estabelecer situações definitivas como a estrutura do Estado, por exemplo.

Os diversos micro-poderes podem estar ou não integrados à estrutura do macropoder, mas não perdem sua autonomia pela capilaridade que os dinamiza, de modo que nem sempre o que ocorre no âmbito do Estado pode atingi-los. “É preciso estudar o poder colocando-se fora do modelo do Leviatã, fora do campo delimitado pela soberania jurídica e pela instituição estatal. É preciso estudá-lo a partir das técnicas e táticas de dominação”20.

Nessas circunstâncias, os desdobramentos da ideia de poder se situam além da relação de força na perspectiva de uma guerra silenciosa, chegando à guerra continuada, pela solução das armas. A relação de força se assenta na concepção de repressão. “O poder é essencialmente o que reprime”21 dirá Foucault, para alertar os mecanismos de repressão sobre a natureza, os instintos, os indivíduos, a classe e se servindo de autoridades como Hegel, Freud e Reich que em suas análises evidenciavam a repressão como pertencente à ideia de controle social.

Na continuidade desse argumento repressivo face ao poder, Foucault acena com a hipótese de que o poder “é a guerra continuada por outros meios”22 embora inverta a proposição de Clausewitz, definindo “que a política é a guerra continuada por outros meios”23. Desse modo, a guerra se fará de forma silenciosa, nas formas de convívio social, nas instituições, nas desigualdades, no domínio dos corpos ou acontecerá de modo efetivo, “numa prova de força, em que as armas, finalmente, deverão ser juízes”24.

O aparato legal dessas relações se presentifica de modo a produzir experiências paradoxais na vida dos sujeitos.

Lemos no texto Em defesa da sociedade:

A lei não nasce da natureza, junto das fontes frequentadas pelos primeiros pastores; a lei nasce das batalhas reais, das vitórias, dos massacres, das conquistas que têm sua data e seus heróis de horror; a lei nasce das cidades incendiadas, das terras devastadas; ela nasce com os famosos inocentes que agonizam no dia que está amanhecendo. Mas isto não quer dizer que a sociedade, a lei e o Estado sejam como que o armistício nessas guerras, ou a sanção definitiva das vitórias. A lei não é pacificação, pois, sob a lei, a guerra continua a fazer estragos no interior de todos os mecanismos de poder, mesmo os mais regulares. A guerra é que é o motor das instituições e da ordem: a paz, na menor de suas engrenagens, faz surdamente a guerra. Em outras palavras, cumpre decifrar a guerra sob a paz: a guerra é a cifra mesma da paz.25.

A regulação de todas essas manifestações está presente em dois grandes sistemas, segundo o autor. Um primeiro, fundamentado nos teóricos do século XVIII, que pensaram o poder como direito natural, com base na ideia de soberania e circunscrito ao poder político, na esfera da governabilidade. Um poder, cujo limite é o contrato, o “poder-contrato”, cuja ruptura daria lugar ao segundo, denominado “contrato-opressão”. Ao ultrapassar os termos do contrato, pode se tornar um poder repressor, que levaria a uma relação de dominação. A relação de força, neste caso, seria permanente. De fato, o que aparece, na compreensão do filósofo, é que o esquema jurídico do primeiro modelo seria solapado pela força do segundo modelo, em que as condições dadas estariam entre luta e submissão, em maior evidência. Em todo caso, adverte para que se pense nos mecanismos de poder como repressivos e que, afinal, sobre o poder político reside uma relação belicosa, ainda que o conceito de repressão seja insuficiente para dar conta da complexidade dos mecanismos e efeitos do poder.

A contundência maior de sua análise prende-se ao fato de que esse poder, quer se expressar como saber e produzir verdades, as quais funcionam como normalização para os indivíduos desde o domínio de seus corpos até outras formas de disciplinamento.

O poder não para de nos interrogar, de indagar, registrar e institucionalizar a busca da verdade, profissionaliza-a e a recompensa. No fundo, temos que produzir a verdade como temos que produzir riquezas, ou melhor, temos que produzir a verdade para poder produzir riquezas. Por outro lado, estamos submetidos à verdade também no sentido em que ela é lei e produz o discurso verdadeiro que decide, transmite e reproduz, ao menos em parte, efeitos de poder26.

Essa submissão a uma verdade que se apresenta rigidamente como lei é o que provoca a “rebelião dos saberes”, como uma espécie de anticiência. A importância da genealogia já referida, anteriormente, contribui para aclarar esse ordenamento dos saberes sujeitados a uma verdade determinada. São saberes julgados como desqualificados, face a uma matriz teórica que se apresenta com um discurso universalizante. Esses saberes marginais, buscados na genealogia, permitiram a crítica da ciência.

A presença nietzschiana no pensamento de Foucault pode ter sido responsável pela construção de sua ideia de poder, como uma vontade instituinte, sem estar limitada às configurações das leis, afastando com isso a ideia de poder da ideia de direito. A “vontade de potência” de Nietzsche produz, no seu leitor francês, o motivo para pensar o poder como produtor de verdade, na intenção de desconstruir as pretensões racionalistas que desejavam fundar saberes seguros, cujos fundamentos não deveriam ser postos em dúvida.

Nesses cruzamentos diagonais, Foucault irá trazer o conceito de biopolítica na caracterização de um poder que se efetua não apenas sobre o domínio dos corpos, mas busca controlar a vida e a morte dos indivíduos. Aqui surge forte a figura do Estado que se propõe a docilizar a vida da população, em geral. A ação das instituições como hospital, clínicas, prisão, exército, escola, que funcionam com disciplinadoras, oferecem condições para a atuação do Estado, no seu papel normalizador, na vida dos indivíduos. Ocorre “o que se poderia chamar de estatização do biológico”27.

A biopolítica surge como uma nova tecnologia do poder, ao lidar com o coletivo e o faz tratando seu objeto, não apenas como uma questão política, mas como um problema biológico. Os fenômenos passam a ser coletivos, de corpo múltiplo. Enquanto a teoria do direito lidava apenas com a tensão relacional indivíduo e sociedade, nas regras do contrato, ocorria um tipo de controle, com seus mecanismos próprios, disciplinares. Nessa nova tecnologia, em que surge a biopolítica, como exercício do biopoder, o entendimento será de um corpo múltiplo, a população. Nesse caso, há um movimento do particular ao coletivo, os limites temporais se alongam e as aparições dos fenômenos coletivos são em série. Os mecanismos de controle tornam-se reguladores para poder atingir a população global, fixar equilíbrios e compreender os processos biológicos da espécie humana.

Indica Foucault esse empreendimento com os seres humanos, enquanto espécie:

Eu lhes assinalo aqui, simplesmente, alguns dos pontos a partir dos quais se constitui essa biopolítica, algumas de suas práticas e as primeiras das suas áreas de intervenção, de saber e de poder ao mesmo tempo: é da natalidade, da morbidade, das incapacidades biológicas diversas, dos efeitos do meio, é disso tudo que a biopolítica vai extrair seu saber e definir o campo de intervenção de seu poder28.

Essa espécie humana que precisa ser entendida em suas nuances biológicas requer uma tecnologia de análise mais abrangente, de modo que possa identificar num momento efervescente da industrialização uma espécie do que fazer com a velhice, com as enfermidades, com as diferentes anomalias que atingem a espécie humana. Há uma sutileza na biopolítica, onde entra a economia com a pretensão de prestar assistência, que, por longo tempo, foi realizada pela Igreja. Até mesmo seguros, poupanças, atividades econômicas voltadas para um certo bem-estar da população
movimentam os mecanismos da biopolítica, cujo foco é a regulação. “A biopolítica vai se dirigir, em suma, aos acontecimentos aleatórios que ocorrem numa população considerada em sua duração”29.

Em Nascimento da Biopolítica (2008), Foucault se deterá em analisar as circunstâncias pelas quais a arte liberal de governar se ateve aos interesses de mercado, de preço justo, de movimentos do capital, tudo isso relacionado às experiências europeias de controle, organização e poder no nível da governamentalidade30. Aparecem com destaque as relações entre as formas jurídicas e prática governamental, a partir das quais se estabeleceu a regulação, como a ideia de soberania e limites da governabilidade. O problema não será mais a punição aos soberanos, como nos protocolos contratualistas, mas a necessidade de limitar o excesso de governo. “Toda a questão da razão governamental crítica vai girar em torno de como não governar demais”31. Daí a importância dos limites internos que a racionalidade governamental irá impor para sua prática, considerando a vontade dos indivíduos. É evidente que essas questões estão envolvidas pela economia politica, cujas relações de mercado dão o tom da autolimitação da razão de governo.

4 Os conteúdos discursivos

Os discursos e as análises sobre o poder sempre se situarão no movimento das ações humanas que permitem, aqui e acolá, decifrarmos as manifestações do poder, estando essas localizadas num lugar político específico, como o Estado, ou dispersas como grânulos nas diversas variações de domínio, que possam acontecer no mundo humano.

Arendt, em seu pensamento, apresenta uma avaliação positiva acerca do poder, de tal modo que sendo o poder uma âncora que sustenta a vida política, ao correr riscos ou se destruir, ameaça também a política que acontece entre os humanos. Sendo a política a experiência da liberdade, seu desaparecimento pela violência ou pelo medo pode afetar a própria humanidade.

Atribui-se a Foucault uma postura anti-humanista, quando ele afirma ser o homem uma invenção recente. “Pode-se estar seguro de que o homem é aí uma invenção recente”32. Essa referência ao surgimento do sujeito denota uma economia no tempo, de tal modo que parece que esse sujeito estaria prestes a desaparecer, tal como surgiu33. Sua fala percorre os caminhos anteriores ao século XVIII na etapa da modernidade, em que a presença do sujeito estava minimizada pelos discursos da ordem ou da religião. Nessa condição, entende Foucault, o homem é uma conquista nova, o homem é uma ideia resultante da industrialização. É menos protagonista do poder e mais efeito proveniente do poder que acontece como feixe de relações.

Quando a Ciência moderna evoca o potencial racionalista de um sujeito pensante, surgem as teorias acerca da consciência e das subjetividades, centrando no homem o protagonismo das ações. A modernidade aparece como um corpo de representações, cuja sistematização deságua em várias vertentes desde a ciência até a construção do pacto político, gerador da figura do Estado Moderno. O momento epistemológico da racionalidade incorporada na Filosofia Política Moderna coincide com a superação e o esfacelamento da escolástica esgotada no teocentrismo. Tratava-se de reivindicar outro papel para a razão, não mais a de investigadora de um cosmos já predestinado, mas preocupada com o rigor conceitual, traduzido nos caminhos que conduzem à verificação do papel preponderante do homem, na natureza e na história. Talvez, por isso, Foucault identifica o homem como algo recente, datado há pouco tempo, tendo em vista a milenar presença do pensamento no mundo.

Arendt (1906), nascida 20 anos antes de Foucault (1926), reúne em seus textos uma crítica contundente às experiências violentas que acabaram com o poder e ordem republicana. Por certo, presenciou na Europa, da qual se evadiu, um cenário político mais desolador do que Foucault que encontra já uma geração perplexa com as destruições e as dominações ocorridas34. A ele cabe descrever, quase próximo a uma lógica estruturalista e funcionalista, a forma como o poder se expressou, sem um lugar referencial.

Sobre o poder, os conteúdos discursivos são diferenciados e fundamentados de acordo com o que interessa esclarecer. Se de um lado, pode ser afirmada uma positividade na ideia de poder, por ser algo que tem a perspectiva de organização da sociedade dos homens, por outro lado, é possível registrar as formas pelas quais o poder se apresenta sem solidez de lugar algum, portanto, isento de afirmações valorativas, de bem ou de mal.

De nossa parte, cabe ressaltar que os sujeitos estão mergulhados em ambientes histórico-políticos, de modo que realizam seus pronunciamentos na tentativa de anunciar ou denunciar o que foi experimentado, tanto na vida privada, quanto na vida pública. As mudanças situacionais de povos, países e culturas demandam restrições não apenas no âmbito da economia política, como na esfera das estratégias de defesa de fronteiras, onde ainda cabe a menção à ideia de soberania.

O entrelaçamento de interesses econômicos e políticos conduzem o modo como se estabelecem as relações de poder, no nível da igualdade ou da subalternidade. Ipso factum, isto é constatável, efetivamente, nesta etapa atual do capitalismo, no século XXI. As circunstâncias atuais, cujas estratégias de ação envolvem povos e países em operações bélicas, denotam a fragilidade compreensiva do papel do sujeito como um evento ético, na construção de relações intersubjetivas.

Os acontecimentos que atingiram e atingem a humanidade, produzidos por ela mesma, podem ser entendidos, numa primeira indicação, como resultado da imprevisibilidade das ações humanas. Numa segunda indicação, como essa entrada recente do sujeito na história, cujo estranhamento com seu próprio mundo produz perplexidade.

No entanto, é permitido dizermos que, se lidamos com saberes como direito, ética e justiça não nos cabe, apenas, o registro formal da violência ou a descrição genealógica das submissões, nas configurações do poder. É preciso fomentar a dinâmica da solidariedade, de modo que o elo social não se rompa, definitivamente, e possamos continuar vivendo a humanidade no respeito aos direitos já conquistados, fazendo que a ética funcione como um motor da história, para que a justiça se realize.

Referências

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______. Entre o Passado e o Futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2003.

______. Sobre a Violência. Trad. André de Macedo Duarte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

DELACAMPAGNE, Christian. História da Filosofia no Século XX. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. Uma arqueologia das Ciências Humanas. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Matins Fontes, 2007.

______. Em Defesa da Sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

______. Microfísica do Poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

______. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

LOCCHI, Maria Chiara.Brief reflections on legal pluralism as a key paradigm of contemporary law in highly differentiated western societies. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, v. 10, n. 2, p. 74-84, fev. 2014. ISSN 2238-0604. Disponível em: https://seer.imed.edu.br/index.php/revistadedireito/article/view/635. Acesso em: 15 abr. 2015.

About Power

Abstract

This article intends to present some contemporary understandings of power, based on the analysis of two authors of the twentieth century, Hannah Arendt and Michel Foucault, who were focused on important issues of society. It points different understandings, from the conceptual basis that support the research of those philosophers. While for Arendt , power has a positive assessment in itself , although it may suffer destruction when there is violence as a result of the actions of individuals, and thus destroys, Foucault thinks from a power perspective, which the role of the individual is almost nonexistent; power has not being situated anywhere and functioning as a kind of connection between individuals and institutions. Power does not provide, itself, neither a positive nor a negative connotation, but operation.

Keywords: Power. Freedom. Human condition. Governance.

Recebido em: junho/2015.

Aprovado em: julho/2015.

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1 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. São Paulo: Forense-Universitária, 1981. p. 191.

2 ARENDT. A Condição Humana, p. 191: “Se a ação, como início, corresponde ao fato do nascimento, se é a efetivação da condição humana da natalidade, o discurso corresponde ao fato da distinção e é a efetivação da condição humana da pluralidade, isto é, do viver como ser distinto e singular entre iguais”.

3 ARENDT. A Condição Humana, p. 15.

4 AMIEL, Anne. Hannah Arendt. Política e Acontecimento. Lisboa: Piaget, 1997. p. 74: “A família engloba o que é da ordem da necessidade, da associação social que encontramos também no meio dos animais, precisamente porque está ligada ao vital. A polis, o quadro político, porque apoia a violência pré-política, só quer conhecer o mundo comum, a relação livre que rejeita a desigualdade e a hierarquia, isto é, que rejeita qualquer relação de mandamento e de obediência”.

5 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 191-192.

6 ARENDT. Entre o passado e o futuro, p. 194. A autora segue o raciocínio dos gregos. As necessidades pertencem ao âmbito privado. Só estando livre delas, sera possível participar da vida política.

7 ARENDT, Hannah. Sobre a Violência, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 17.

8 ARENDT, Sobre a Violência, p. 18.

9 ARENDT, Sobre a Violência, p. 23.

10 ARENDT, Hannah. A dignidade da política. Ensaios e conferências. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993, p. 39.

11 ARENDT. Entre o passado e o futuro, p. 203.

12 ARENDT. Sobre a violência, p. 11.

13 ARENDT. Sobre a violência, p. 18.

14 FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 14.

15 FOUCAULT, Em Defesa da Sociedade, p. 35.

16 A metodologia assumida por Foucault recusa o modelo hobbesiano do Leviatã, onde o Estado comparece como a figura central e soberana nas estruturas formais de poder. Nessa recusa, envolve todas as teorias medievais e modernas acerca da soberania, que vem até os séculos XVI e XVII, ensejando novas formas de governabilidade como as repúblicas e democracias no enfrentamento com as monarquias de diversos tipos. Não é nosso interesse debater aqui essa complexidade sobre o modo como foi entendida a soberania, através dos tempos. Apenas, situar, o lugar de onde fala Foucault, na lógica do disciplinamento dos corpos dos sujeitos, uma nova mecânica de poder, diferente das relações de soberania.

17 FOUCAULT, Em Defesa da Sociedade, p, 43.

18 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder, Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 248.

19 FOUCAULT, Microfísica do Poder, p. 52.

20 FOUCAULT, Microfísica do Poder, p. 186.

21 FOUCAULT, Em Defesa da Sociedade, p. 21.

22 FOUCAULT. Em Defesa da Sociedade, p. 22.

23 FOUCAULT. Em Defesa da Sociedade, p.22.

24 FOUCAULT. Em Defesa da Sociedade, p. 23.

25 FOUCAULT. Em Defesa da Sociedade, p 58/59.

26 FOUCAULT, Microfísica do Poder, p. 180.

27 FOUCAULT. Em defesa da sociedade, p. 286.

28 FOUCAULT. Em defesa da sociedade, p. 292.

29 FOUCAULT. Em defesa da sociedade, p. 293.

30 Foucault estabelece alguns princípios, pelos quais é possível entender a racionalidade governamental, que começa com os limites internos estabelecidos pelas regras acordadas, que atenderão elementos como prudência, passando por compreensões referentes aos direitos naturais, como elementos internos, que se tornam objetivos de governo, chegando a registrar que a prática governamental age por conveniência, ou seja, demarca o que deve e o que não deve ser feito, tendo presente o atendimento aos direitos fundamentais. Finaliza essa relação, evidenciando que o governo não quer dividir os súditos, em se tratando de interesses.

31 FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 18.

32 FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. Uma arqueologia das Ciências Humanas. São Paulo: Matins Fontes, 2007, p. 536.

33 FOUCAULT. As Palavras e as Coisas. Uma arqueologia das Ciências Humanas, p. 536: “pode-se apostar que o homem se desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto na areia”.

34 DELACAMPAGNE, Christian. História da Filosofia no Século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 256: “Provavelmente, não foi por acaso que uma tal redescoberta do relativismo nietzschiano se produziu na França nos anos 60. Chegando à idade adulta sob o signo de Auschwitz e de Hiroshima, em um país enfraquecido por seus conflitos coloniais e pela guerra fria, Foucault é realmente bem representativo de uma geração que, tendo perdido a confiança nas grandes utopias sociais, não acreditando mais no sentido da história, só pode submeter a uma prática sistemática de suspeita os ideais em cujo nome o ‘progresso’ histórico foi até então legitimado”.

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