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Lições de ‘Buen Vivir’: impactos ambientais sobre as comunidades indígenas no Brasil contemporâneo

Lessons from environmental impacts on indigenous communities in contemporary Brazil

Thaís Janaina Wenczenovicz(1); Cristhian Magnus De Marco(2)

1 Docente Adjunta e Pesquisador Sênior na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul/UERGS. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade do Oeste do Paraná/UNIOESTE e Direitos Fundamentais/UNOESC.
E-mail: [email protected]

2 Docente no Programa de Pós-graduação em Direito UNOESC.
E-mail: [email protected]

Resumo

Durante muito tempo a questão indígena esteve centrada na figura do indígena propriamente dito, ou seja, na utilização da sua força de trabalho, nos questionamentos de sua natureza humana e no impasse de serem considerados ou não cidadãos brasileiros. Atualmente os objetos de estudo e procedimentos metodológicos foram alargados e o foco da questão indígena foi transferido da identidade desses povos para a conservação da biodiversidade regional e global, demarcação territorial, etnocídio, exploração das suas terras, violência, dentre outros. O devido estudo tem por objetivo analisar elementos acerca dos impactos ambientais desencadeados nas comunidades indígenas com a redefinição de seus territórios e a implantação de grandes construções, especialmente as hidrelétricas e mineradoras. O estudo utiliza-se do procedimento metodológico bibliográfico-investigativo e de pesquisa jurisprudencial.

Palavras-chave: Brasil Contemporâneo. Comunidades Indígenas. Impactos Ambientais.

Abstract

For a long time the indigenous issue was focused on indigenous figure itself, i.e., the use of your workforce, in questions of your human nature and the impasse can be considered or not Brazilian citizens. Currently the objects of study and methodological procedures have been extended and the focus of the indigenous issue was transferred from the identity of these peoples to the conservation of biodiversity, global and regional, territorial demarcation, ethnocide, exploitation of their land, violence, among others. All due study aims to analyze elements about the environmental impacts triggered in indigenous communities with the redefinition of their territories and the deployment of large buildings, especially the hydroelectric and mining companies. The study used the methodological procedure investigative and research-bibliographic jurisprudence.

Keywords: Contemporary Brazil. Indigenous Communities. Environmental Impacts.

1 Introdução

Diversos têm sido os enfrentamentos entre as comunidades indígenas e os impactos socioambientais no que tange as grandes obras e a demarcação dos territórios indígenas. Inúmeras são as obras que vêm agregadas ao desenvolvimento econômico em âmbito local e regional que tem repercutido diretamente na configuração das terras nativas. Os impactos advêm da falta de diálogo, dos contratos comerciais obscuros, da inconstância acerca da delimitação e perda dos territórios, burocracia, bem como da violência simbólica e física acometida contra os povos indígenas. Objetiva-se com este artigo analisar elementos acerca dos impactos ambientais desencadeados nas comunidades indígenas com a redefinição de seus territórios e a implantação de grandes construções, especialmente as hidrelétricas e mineradoras.

Dos conflitos mais usuais encontram-se os que afetam o uso indiscriminado ou a perda do território, bem como os bens comuns nelas existentes, como a madeira, a água e os minérios, dentre tantos outros. Além destes, os bens imateriais, tais como os saberes tradicionais, as línguas narrativas, os rituais, as expressões religiosas e os conhecimentos específicos, somam-se aos direitos autorais, ao direito de imagem e ao direito intelectual. As terras indígenas e todo o conjunto elencado são de usufruto exclusivo dos povos que as habitam, conforme a Constituição Federal, constituindo crime a sua violação.

Segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi, 2016), o total de terras indígenas no Brasil passou de 1.113, em 2015, para 1.296, em 2016. Destas 1.296, apenas 401 terras, o que representa 30,9% do total, tinham seus processos administrativos finalizados, ou seja, já foram registradas pela União. Os dados apontam ainda a existência de 836 terras indígenas, o que corresponde a 64,5% do total, com alguma providência a ser tomada pelo Estado brasileiro. Ou seja, com exceção das terras registradas, das reservadas e das dominiais, 836 terras apresentam pendências administrativas para terem seus procedimentos demarcatórios finalizados.

O artigo divide-se em duas partes. A primeira aborda algumas questões relacionadas à formação sócio-histórica das Comunidades Indígenas na América Latina. A segunda parte discorre acerca da trajetória da legislação ambiental no Brasil. Enquanto procedimento metodológico utiliza-se do método bibliográfico-investigativo, acompanhado de documentos jurídicos como a Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes da Organização Internacional do Trabalho (OIT: 1989), ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº143 de 25 de julho de 2002; a Declaração das Organizações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (ONU: 2007); a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da UNESCO, ratificada pelo Congresso Nacional em dezembro de 2006, e promulgada no país pelo Decreto-Lei nº 6.177, de 1º de agosto de 2007; a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, ratificada pelo Decreto nº 5.753, de 12 de abril de 2006; cartas e decretos da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) e a Constituição do Brasil de 1988. Para a comparação de dados e bases estatísticas emprega-se os indicadores da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2015, publicado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e o Relatório ‘Povos Indígenas, suas Populações e Áreas, e os Graus de Impacto Provocado pelas Usinas Hidrelétricas Compreendidas no Plano 2010’.

2 Comunidades indígenas na América Latina

Por muito tempo as comunidades indígenas na América Latina foram vistas como um entrave ao desenvolvimento. Assolados por doenças, perda de seus territórios e procedidos do processo de aculturação, assimilação e represamento ressignificaram sua cultura em prol da sobrevivência. Essas imagens que se consolidaram com assento na violência física e simbólica se popularizaram no imaginário contemporâneo.

Nesse contexto, cumpre-se indicar que há um componente comum: a quase extinção do povo indígena latino-americano, seja ela física ou etnocultural. No primeiro caso, a população indígena, predominante na região nos tempos da colonização, hoje representa cerca de 10% da população latino-americana. Encontra-se concentrada principalmente em cinco países: Bolívia, Equador, Guatemala, México e Peru. No segundo caso, os índios latino-americanos passaram por um processo de aculturação tão significativo que dificilmente pode-se falar hoje de etnias e culturas indígenas autênticas. Muito se perdeu de sua identidade com a eliminação de tribos inteiras e com a assimilação da cultura do colonizador.

Em virtude da exploração colonial e colonialismo, as comunidades indígenas perderam suas terras, seus costumes próprios, suas tradições milenares - fonte de sua sobrevivência. Isso acarretou uma piora sensível da sua condição de vida, colocando-os em uma severa condição de pobreza. Em alguns países, como no Brasil, o Estado demarcou reservas indígenas em todo o território nacional, na tentativa de lhes garantir a subsistência.

Em consonância ao relatório da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe, um dos maiores desafios que a região enfrenta em sua busca pela igualdade é a inclusão dos direitos dos povos indígenas entre as prioridades das políticas. Os desafios são enormes, se considerarmos que na América Latina, como se examina neste estudo, existem mais de 800 povos indígenas, com uma população próxima de 45 milhões, que se caracterizam por sua ampla diversidade demográfica, social, territorial e política, desde povos em isolamento voluntário até sua presença em grandes assentamentos urbanos. A isto se acrescenta que o crescimento econômico registrado na região é altamente dependente dos recursos naturais e de seus preços internacionais, enquanto se observa uma governança deficiente destes recursos. A reprimarização da economia provocou fortes pressões sobre os territórios dos povos indígenas e desencadeou numerosos conflitos socioambientais ainda não resolvidos. (CEPAL, 2015, p. 6).

Diversos estudos apontam para um renascimento desses povos, nas últimas duas décadas do século passado, considerando-se as ações desenvolvidas acerca do resgate das identidades etnocultural, sua organização política e um novo modelo de governança dos recursos naturais. Isso possibilitou a apresentação de suas demandas ao Estado e o reconhecimento de sua existência enquanto sujeitos de direito - cidadãs, detentoras de cultura e modo de vida próprios, fazendo valerem assim os seus direitos.

A título de exemplo é possível indicar entre outros aspectos dos povos indígenas latino-americanos a melhoria na educação e na saúde. Em relação à educação, houve aumento nas taxas de frequência escolar, com porcentagens de comparecimento entre 82% e 99% para crianças de 6 a 11 anos. Quanto à saúde, houve diminuição das taxas de mortalidade infantil – as mortes de crianças menores de cinco anos reduziram-se entre 2000 e 2010 nos nove países com dados disponíveis (Costa Rica, México, Brasil, Venezuela, Equador, Panamá, Guatemala, Peru e Bolívia). (ONU, 2014).

Consoante a essa realidade, os conhecimentos ancestrais, as inovações e as práticas tradicionais dos povos indígenas para a conservação e a utilização sustentável da diversidade biológica, assim como o desenvolvimento das diferentes modalidades coletivas das economias indígenas, oferecem uma oportunidade valiosa para a construção de um novo paradigma do desenvolvimento, baseado em uma mudança estrutural rumo à igualdade e sustentabilidade. É fundamental o reconhecimento da contribuição dos povos indígenas nos desafios que traz consigo o porvir de uma América Latina soberana. (CEPAL, SÍNTESE, 2015, p. 7).

A trajetória de luta dos povos indígenas pela defesa e reconhecimento de seus direitos foi contínua e persistente na construção da história dos países latino-americanos. Este legado de reivindicação e reconhecimento ganhou espaço em um quadro de direitos que se fundamentam em dois grandes marcos: o Convênio sobre Povos Indígenas e Tribais de 1989 (Nº. 169) da OIT, que reconhece pela primeira vez seus direitos coletivos, e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007), que propõe o direito desses povos à livre determinação. Por sua vez, o padrão mínimo de direitos dos povos indígenas, obrigatório para os Estados, articula-se em cinco dimensões: o direito a não discriminação; o direito ao desenvolvimento e bem-estar social; o direito à integridade cultural; o direito à propriedade, uso, controle e acesso às terras, territórios e recursos naturais; e o direito à participação política.

Em âmbito internacional existem dois mecanismos diretos de proteção dos Direitos Humanos, incluindo os direitos dos povos indígenas: o sistema das Nações Unidas e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Neste último, as sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que têm caráter vinculante para os Estados, foram relevantes no novo ordenamento jurídico internacional no tocante aos direitos dos povos indígenas. No caso das Nações Unidas, os órgãos e mecanismos de proteção adquirem uma indiscutível relevância política para o reconhecimento e aplicação dos direitos dos povos indígenas.

Nesse contexto, S. James Anaya colabora dizendo que:

El sistema internacional contemporáneo reconoce abiertamente ahora que es un imperativo de derechos humanos el dar respuesta a las demandas de los pueblos indígenas. [...]. Sea como sea, lo cierto es que puede hablarse ahora de un régimen de derechos indígenas dentro del derecho internacional de los derechos humanos; un régimen todavia em desarrollo y que, en certa medida, beneficia a los pueblos indígenas. (ANAYA, 2004, p. 30).

De uma forma objetiva, existem no sistema universal de proteção dos direitos humanos das Nações Unidas: a) mecanismos baseados na Carta das Nações Unidas, como o Conselho de Direitos Humanos, os procedimentos especiais, o exame periódico universal e órgãos assessores (como o Mecanismo de Peritos sobre os Direitos dos Povos Indígenas); b) mecanismos baseados na aplicação dos principais tratados vinculantes do direito internacional sobre os direitos humanos por parte dos países que os ratificaram. Geralmente os mecanismos que também são denominados ‘comitês’, há presença de especialistas. No aspecto acessibilidade, há diversas possibilidades para apresentar registros ao Conselho de Direitos Humanos, aos comitês e aos procedimentos especiais, garantindo assim o acesso ao sistema em casos de demandas emergenciais e urgentes.

Inúmeros são os exemplos de países na América Latina que desenvolveram ações e políticas públicas de valorização as comunidades nativas em justificativas que nas áreas por eles habitadas consta-se o papel protetor exercido pelos povos indígenas, até então é pouco conhecido e reconhecido. A título de exemplo pode-se citar as ações desenvolvidas pelo México nos últimos 5 anos.

Embora os povos indígenas representem apenas 5% da população mundial, as regiões que habitam contêm cerca de 80% da biodiversidade e possuem vários recursos naturais. Entretanto, sabe-se que tanto a propriedade como o ‘controle’ dos territórios nativos seguem mal definidos, em amplas áreas como na Ásia, África e América Latina.1

Relatórios elaborados através da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e o Escritório Regional para América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) indicam que as terras indígenas possuem um impacto de preservação maior que em terras de não-indígenas, especialmente no que tange a conservação da vegetação nativa. Importante destacar, que a vegetação nativa é importante para a regulação do clima e da vazão dos rios, a provisão de água e energia, o controle de pragas e polinização em diversos cultivos, propiciando inclusive condições para o aumento da produtividade agrícola.

3 Trajetória histórica da legislação ambiental no Brasil: reflexões pontuais

Como aduz a Constituição, o meio ambiente não depende apenas de proteção exercido por meio das autoridades e gestores públicos. Sendo esse, o ambiente natural - como bem de uso comum da população e essencial a uma sadia qualidade de vida também é dever de toda a sociedade, e em escala mundial, protege-lo e preserva-lo. Exatamente aqui reside a dificuldade de mensurar e quantifica de forma imparcial e justa, a definição dos diversos conceitos imprecisos contidos nas normas reguladoras e utilizados pelo judiciário.

Importante ressaltar que além da legislação nacional, os órgãos e organismos de representação das comunidades indígenas atuam na questão ambiental. As ações de gestão ambiental desenvolvidas pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) são norteadas pela Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas – PNGATI, instituída pelo decreto 7.747, de 05 de junho de 2012. O objetivo dessa Política é garantir e promover a proteção, a recuperação, a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais das terras e territórios indígenas, assegurando a integridade do patrimônio indígena, a melhoria da qualidade de vida e as condições plenas de reprodução física e cultural dos povos indígenas, respeitando sua autonomia sociocultural.2

Muitas tem sido as ações de acompanhamento dos membros da Funai junto as comunidades indígenas assoladas pelos projetos das médias e grandes obras que envolvem a construção de hidrelétricas. A título de exemplo pode-se citar as usinas hidrelétricas: Baixo Iguaçu e São Roque. A Hidrelétrica Baixo Iguaçu foi construída no Rio Iguaçu, entre os municípios de Capanema e Capitão Leônidas Marques, no Paraná e a Hidrelétrica São Roque - no Rio Canoas, entre Vargem e São José do Cerrito, em Santa Catarina que desalojaram inúmeras famílias de pequenos agricultores e também com efeito direto nas terras indígenas.

Vários impactos biológicos e sociais foram previstos com a redução dos níveis da água dos rios supracitados no espaço ribeirinho e abaixo da barragem principal, como: rebaixamento do lençol freático, extinção local de espécies, escassez da pesca, aumento de pressão fundiária e de desmatamento, migração de não-índios, ocupação desordenada do território, proliferação de epidemias e diminuição da qualidade da água. Mesmo assim, o projeto foi mantido e executado. Trata-se de um contexto que se adapta diretamente ao conceito de racismo ambiental3 e segundo define Tânia Pacheco:

Chamamos de Racismo Ambiental às injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre etnias e populações mais vulneráveis. O Racismo Ambiental não se configura apenas através de ações que tenham uma intenção racista, mas, igualmente, através de ações que tenham impacto “racial”, não obstante a intenção que lhes tenha dado origem. […]. O conceito de Racismo Ambiental nos desafia a ampliar nossas visões de mundo e a lutar por um novo paradigma civilizatório, por uma sociedade igualitária e justa, na qual democracia plena e cidadania ativa não sejam direitos de poucos privilegiados, independentemente de cor, origem e etnia (PACHECO, 2008).4

Nesse contexto, cumpre dizer que as grandes obras de infraestrutura, através da construção de hidrelétricas, assim como os megaempreendimentos causam danos irreversíveis à vida de povos indígenas, de remanescentes de quilombos e de populações tradicionais que nas demais categorias sociais. Na ocupação desordenada do território, a adoção das monoculturas leva não só à expulsão sumária de alguns desses povos como à diminuição das reservas já existentes e a um confinamento que impede a manutenção de suas culturas e trajetórias sócio antropológicas.

Nesse contexto, ambientalistas e pesquisadores apontam que dentre as razões de vulnerabilização das comunidades nativas frente à questão ambiental ocorre em sua maioria devido à falta de fiscalização, medidas e sinais de enfraquecimento de políticas públicas incentivando assim o avanço de grileiros, madeireiros e desmatadores ilegais sobre as Tis resultando em curto prazo no “desmonte” das políticas ambiental e indigenista.

Insta assinalar que no exercício cotidiano do processo de demarcação das terras indígenas o direito que as reivindicações objetivas dos grupos sociais podem ser socialmente asseguradas, estabelecendo uma ruptura positiva com o pesado passado de dívidas sociais que o Brasil acumulou. Na constância burocrática e outros encaminhamentos que tramitam pelas diversas unidades e instâncias do Judiciário é importante ressaltar que encontram-se cidadãos, vidas e subjetividade; e é no cotidiano da burocracia e pela via de papéis os mais diversos que o Direito pode transfigura-se em elementos reforçadores de desigualdades. E quando isto ocorre (e ocorre com frequência), a democracia real e a justiça social esperadas convertem-se apenas em ideias difusas e abstratas de democracia, que jazem confinadas nos textos teóricos, mas permanecem ausentes da vida social. E que reforçam um paradoxo tão conhecido da sociedade brasileira - quando se afirma que o país é dotado de uma legislação adequada, e mesmo avançada em muitos sentidos -, mas que não atende plenamente quando se trata de realizar, no cotidiano, uma justiça social mais inclusiva e plural, capaz de realizar os anseios dos pobres, dos marginalizados e dos etnicamente diferentes.

4 O “Buen Vivir”5 como paradigma para o desenvolvimento sustentável

Os Kainkang ocupavam e ainda estão presentes em áreas que hoje formam os estados brasileiros de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Atualmente é o maior grupo étnico do Brasil, com aproximadamente 30 mil integrantes (IBGE, 2012).

Kaingang significa povo do mato. Apesar disso, a colonização europeia e sua subsequente expansão urbanizadora comprimiu essa população nativa em poucos espaços que restaram entre o cultivo, a pecuária e os centros urbanos.

Em importante trabalho qualitativo e descritivo Lappe e Laroque (2015) mostram que os “Kaingang estão conectados com a natureza, dependem dela para manter o jeito de ser e a continuidade das tradições que são repassadas de geração para geração.”. Para eles, os universos humanos e não humano dependem da terra, mantendo com ela uma relação de reciprocidade, mesmo quando eles estão ocupando as áreas urbanas.

Esse resgate das culturas e dos sistemas morais dos povos tradicionais tem ocupado com frequência os trabalhos acadêmicos6, especialmente na busca de novos paradigmas que apresentem alternativas às apocalípticas7 perspectivas do cenário socioambiental global.

Como exemplo disso, tem-se algumas importantes experiências constitucionais latino-americanas. Em 2008, o constituinte do Equador proclamou no preâmbulo de sua Carta Constitucional a seguinte mensagem: “com um profundo compromisso com o presente e com o futuro decidimos construir uma nova forma de convivência cidadã, com diversidade e harmonia com a natureza, para alcançar o bem-viver, o sumak kawsay”. Estão arrolados como direitos ao bem-viver, no artigo 12, da Constituição do Equador: água e alimentação, ambiente sadio, comunicação e informação, cultura e ciência, habitação e moradia, saúde, trabalho e seguridade social. A expressão ancestral sumak kawsay foi incorporada no texto constitucional moderno, evidentemente, como uma tentativa de harmonizar os impasses da vida contemporânea de alto consumo e rápida degradação socioambiental, com a necessidade de preservação e sustentabilidade da vida e dos ecossistemas.

A Constituição da Bolívia, do ano de 2009, apropriou-se do mesmo valor, registrando em seu artigo 8º, inciso I, que o suma qamaña (bem viver) é um princípio ético-moral da sociedade plural, que deve ser promovido pelo Estado.

As concepções do buen vivir (Sumak Kawsay na língua quíchua, Suma Qamanã, em aimará, ou Teko Porã, em guarani) são novidades para o constitucionalismo contemporâneo e se apresentam numa roupagem de valores jurídico-políticos, quiçá capazes de traduzir uma boa ontologia da natureza, dos seres humanos de suas relações recíprocas.

Pablo Dávalos registra que a tradição indígena do bem-viver é [...] é uma forma diferente de relação entre a sociedade e a natureza, e a sociedade e suas diferenças, que não tem nada a ver com os comportamentos de indivíduos egoístas que maximizam suas preferências.” (DÁVALOS, 2010).

Katu Arconada registra que o buen vivir possui estreita relação com o desenvolvimento sustentável:

[...] O desenvolvimento é medido com uma série de indicadores, que o motor do desenvolvimento é o avanço tecnológico, colocando as pessoas em posição de supremacia frente à natureza e em um vale-tudo para alcançar a sociedade do bem-estar, esse modelo exportado da Europa e que também se refere aos grandes interesses econômicos, que nos impuseram o capitalismo depredatório como modelo sócio-econômico. Progresso são os índices do PIB e da renda per capita mais elevados, mesmo que seja à custa da uma deterioração social e ambiental, como a que nos levou a essa crise de civilização que sofremos.

Nessa conjuntura, o paradigma do Viver Bem ensina-nos não a viver melhor, mas sim a viver bem com menos. Ele precisa ser um marco na educação. Precisamos criar uma ética de Viver Bem e reconstruir um pensamento e uma forma de vida mais comunitária, com outras formas de repensar as relações interpessoais e a economia, um equilíbrio entre a cultura e a Mãe Terra, em que a complementaridade ou a reciprocidade sejam as duas faces de uma mesma moeda. (ARCONADA, 2010).

A incorporação do princípio suma kawsay nos documentos constitucionais latino americanos representam um marco na história do direito. Especialmente por incorporar no ordenamento jurídico um conceito proveniente e povos indígenas, aceitando-o como legítimo e válido para orientar toda a sociedade.

Contudo, os estudos conduzidos pelo Centro de Derechos Humano, da Faculdad de Jurisprudencia da Pontificia Universidad Católica del Ecuador (s/d), relatam que, em diversos casos julgados pela mais alta corte daquele país, há uma deficiência muito grande na promoção de um diálogo intercultural, prejudicando-se gravemente o trabalho interpretativo e materializador do citado princípio constitucional. Ou seja, o avanço constitucional permanece ainda no campo simbólico.

Em paralelo, no plano dos Direitos Humanos, como corolário dos estudos promovidos pelas Nações Unidas após a II Guerra Mundial, consagrou-se a expressão desenvolvimento sustentável, notadamente em virtude das razões apresentadas no Relatório Brundtland. Uma comissão denominada World Comission on Environment and Development (WCED) fora constituída em 1983, publicando o seu relatório em 1987, sob o nome Brundtland Report. Logo a seguir as Resoluções n. 42/187 e 42/186 da Assembleia Geral da ONU ratificaram o relatório.

O conceito defendido pelo Relatório Brundtland é o seguinte: “o desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades.”. (COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1991, p. 46). Com efeito, a sustentabilidade tornou-se uma preocupação global.

Depois de diversos documentos históricos, pactos, conferências e debates acerca do desenvolvimento sustentável, as Nações Unidas passaram a promover sua Agenda de 2015 a 2030, estabelecendo 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Essa agenda substituiu o planejamento anterior, que era conhecido como os Objetivos do Milênio.

A partir desse cenário Jeffrey Sachs (2015, p. XIII) sugere que a presente Era seja chamada de: “Era do Desenvolvimento Sustentável”. Essa denominação se justifica, para o autor, em razão da interconexão social globalizada, como nunca existiu anteriormente. Ideias, negócios, pessoas, tecnologias e doenças alastram-se com velocidade e intensidades sem precedentes. Transita-se entre a alegria de constantes novas informações e o medo de catástrofes ambientais. Há novas oportunidades e novos riscos.

Existem, portanto, importantes ferramentas políticas e jurídicas, tanto no âmbito do direito constitucional como no direito internacional, que estão propondo um “novo” paradigma para a condução sustentável da vida e do ambiente planetário em suas dimensões: social, política, econômica, ética e ambiental. O Direito contemporâneo parece ser a única linha capaz de tecer tais dimensões, com rigoroso respeito à grande pluralidade de perspectivas culturais e de interesses envolvidos nesse contexto. Buen vivir e Desenvolvimento Sustentável são conceitos que podem trabalhar juntos, como os lendários Kairu e Kamé,8 da mitologia Kaingang, responsáveis pela criação e gerenciamento do ecossistema e do seu respectivo equilíbrio.

5 Conclusão

Pode-se afirmar que a legislação brasileira que se dedica ao ambiente é uma preocupação de longa data. As cláusulas protetivas até existem, contudo, em grande quantidade, tanto no direito pátrio, quanto no internacional, o maior problema é dar aplicabilidade das mesmas, devido ao excesso de burocracia.

Apreciar o ambiente e suas coletividades humanas compreende um esforço em avaliar a temática no âmbito interdisciplinar, já que o ambiente se compõe de todos os elementos (ar, água, fauna, flora, grupos humanos, dentre outros). O imediato, e mais extraordinário passo, é garantir essa tutela na prática, por meio de ações tangíveis, na observância dos princípios da precaução e do desenvolvimento sustentável, dentre outros. Isto convém tanto para o direito interno quanto para o direito internacional ambiental, tendo em vista que a tutela do meio ambiente é um dever de todos os Estado e da coletividade.

O direito ao ambiente sadio para todos é protegido pelo Direito Ambiental, direito esse de 3ª dimensão e elucidado pela Constituição Federal brasileira em seu artigo 225. Nesse sentido, as comunidades indígenas recebem proteções no âmbito nacional e internacional e são várias as ONG’s que juntam forças para assegurar a proteção das terras indígenas e povos originários ao meio em que vivem. Mesmo assim, essa proteção não é eficaz uma vez que suas reservas são cada vez mais diminuídas de extensão, exploradas ou sublocadas.

O ambiente e sua proteção nas comunidades indígenas é de fundamental importância, especialmente se considerar que a cultura nativa está diretamente ligada a terra e a natureza. Preservar o ambiente é também garantir a manutenção e sobrevivência dos indígenas na América Latina e no Brasil por extensão.

O grupo social analisado é apenas um de tantos que malogram a trajetória socioambiental dos países. Ainda existe uma distância significativa entre a ação ambiental dos coletivos e as políticas públicas. As falhas são de ambos os lados: governo e cidadãos. Em se tratando de comunidades indígenas o problema se agrava já que estes são extensão da natureza. A comunidade indígena, desde os primórdios, tem uma forte relação com a terra e o ambiente natural, e é através do ambiente em que vivem que retiram sua subsistência, cultivando a terra e, assim também, a suas tradições, a fim de manter seus costumes, suas heranças, para as futuras gerações.

Portanto, a concepção do Bem Viver destaca o fortalecimento das relações comunitárias e solidárias, os espaços comuns e as mais diversas formas de viver coletivamente, respeitando a diversidade e a natureza. Reconhece a diversidade de povos e suas estruturas e rompe com os velhos estados-nação dos setores privados-capitalistas como estruturas únicas, abrindo possibilidades para deixar para trás o extrativismo desenfreado e dar maior peso aos modelos cooperativos e comunitários. Harmoniza as necessidades da população à conservação da vida, diversidade biológica e equilíbrio de todos os sistemas de vida.

Referências

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[Recebido: Março 15, 2018; Aceito: Agosto 24, 2018]

DOI: https://doi.org/10.18256/2238-0604.2018.v14i2.2539

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