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O devido processo legal na Suprema Corte dos Estados Unidos: elementos para a construção de uma garantia instrumental

Procedural due process of law in the United States Supreme Court: building an instrumental safeguard

Edilson Vitorelli

Procurador da República. Pós-doutor Doutor em Direito pela Universidade Federal da Bahia, com estudos no Max Planck Institute For Procedural Law (Luxembourg). Doutor pela Universidade Federal do Paraná, mestre pela Universidade Federal de Minas Gerais. Visiting scholar na Stanford Law School e visiting researcher na Harvard Law School. Professor Adjunto da Universidade Presbiteriana Mackenzie e na Escola Superior do Ministério Público da União, onde também é coordenador de ensino.
E-mail:
[email protected] | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1223-8759

Resumo

O presente trabalho reconstrói o histórico de formação da garantia do devido processo processual legal a partir dos precedentes da Suprema Corte dos Estados Unidos. Além de lançar luz sobre o período histórico de formação da garantia, que se transformaria no centro de gravidade do processo civil contemporâneo, com elevada influência sobre a doutrina brasileira, pretende-se esclarecer que, apesar de sua importância, a garantia é vista, atualmente, como instrumental à proteção dos direitos materiais, devendo ser ponderada com outros valores relevantes que incidam sobre o caso.

Palavras-chave: História do processo. Devido processo legal. Direito Comparado.

Abstract

This paper aims to reconstruct the history and evolution of the procedural due process of law in the United States Supreme Court Precedents. Besides casting light over the period of the formation of this procedural safeguard, that would become the center of modern civil procedure, exerting considerable influence over Brazilian scholars, the purpose of the paper is to clarify that, however important, due process is currently seen as an instrumental safeguard, subject to ponderation with other values at stake in the case.

Keywords: history of civil procedure. Due process of law. Comparative Law.

1 Introdução

O devido processo legal é a garantia matriz do processo contemporâneo. Dela podem ser derivadas todas as demais garantias que, nos países ocidentais, delineiam aquilo que se espera como um processo minimamente adequado a cumprir seus objetivos. O devido processo legal, note-se, não é uma garantia democrática. Ela precede os sistemas democráticos contemporâneos e teve papel não desprezível mesmo no período das monarquias absolutas europeias. A democracia moderna abraçou o devido processo, não o produziu.

Ocorre que a formulação da garantia, desde sua introdução, se valeu de palavras de significado aberto, permitindo que o conteúdo do que seria o processo “devido” variasse amplamente ao longo da história e nos diferentes países. Como bem observou Andrew Hyman, a ambiguidade da expressão têm mantido o Judiciário ocupado há muitas gerações1. Hyman, por exemplo, se indaga se “devido” seria o processo previsto de acordo com o direito positivo, ou se seria um processo adequado a princípios judicialmente definidos de liberdade e justiça.

O objetivo do presente trabalho é reconstruir a formação do devido processo legal processual na jurisprudência norte-americana, de sua origem colonial até a década de 1970, quando ele ganhou os contornos que até hoje exibe. A proposta se justifica em virtude da influência exercida pelo pensamento norte-americano sobre a doutrina brasileira e, consequentemente, sobre as decisões judiciais aqui produzidas.

Observe-se que o trabalho não abordará a versão substancial da garantia do devido processo legal (substantive due process), que é a leitura, pela Suprema Corte dos Estados Unidos, das cláusulas processuais da 5ª e 14ª Emendas à Constituição para delas extrair direitos materiais. O motivo da exclusão desse aspecto decorre de sua pouca relevância para o leitor brasileiro: o que levou a Suprema Corte a sustentar que direitos materiais poderiam decorrer da garantia do devido processo legal foi a exiguidade do texto constitucional estadunidense. No Brasil, a exuberância do texto constitucional de 1988, pródigo em garantir direitos, dispensa e contraindica esse tipo de estratégia. Logo, o tema aqui tratado reflete aquilo que os americanos denominam procedural due process2.

Apesar de toda a riqueza textual material da Constituição de 1988, a garantia do devido processo legal (processual) é expressa, no art. 5º, LIV, tal como nos Estados Unidos, sem maior detalhamento. Assim como no país norte-americano, também aqui não se sabe, pelo teor do texto, qual é o conteúdo do processo devido e de que maneira compete ao legislador concretizá-lo. É sobre esse ponto que se pretende lançar alguma luz, valendo-se dos métodos histórico e comparativo.

2 O devido processo legal do período colonial até o início do século XX

2.1 Origens do devido processo legal

A expressão due process of law, da qual deriva o termo “devido processo legal”, é, conforme recorrentemente se observa, oriunda da Magna Carta, embora não de sua versão original, de 1215, mas de uma reedição abreviada, de 13543. Há, é certo, antecedentes da fórmula adotada na Magna Carta, como aponta Rodney Mott4, que encontra em um decreto de Conrado II, Imperador do Sacro Império Romano, datado de 28 de maio de 1037, a vedação de que alguém seja privado de sua vida sem um julgamento de seus pares (iudicium parium). Mais ainda, se se estiver disposto a abandonar a questão da fórmula propriamente dita, para considerar o seu conteúdo, é perceptível que, desde a antiguidade existia uma noção de que um processo era considerado necessário, ou seja, devido, para que determinada decisão jurídica fosse tomada. É possível extrair, por exemplo, da Apologia de Sócrates, princípios de organização do procedimento judicial que eram considerados devidos pelos gregos. Na obra, o processo contra Sócrates é iniciado por um cidadão, Meleto, existem regras para a composição do tribunal julgador, Sócrates tem ciência do que e por quem está sendo acusado e oportunidade de apresentar sua defesa antes da decisão5. Mesmo sem a formulação explícita de uma garantia, a noção de que a condenação deveria ser antecedida por um processo e que esse processo não se organizava ad hoc, mas a partir de standards previamente definidos, não era original quando foi inserida na Magna Carta.

Adicionalmente, a Magna Carta não era mais que um dos muitos acordos realizados, durante a Idade Média, entre o soberano inglês e a nobreza que lhe era vinculada6. Naquele momento, seria impossível imaginar que o documento e, com ele, o due process of law, adquiriria a importância histórica que veio a ostentar, ainda mais quando se considera que, até o incidente com a dinastia Stuart, que levou à redação da Petition of Rights, em 1628, as referências conhecidas à aplicação da Magna Carta no direito inglês são esporádicas7. A importância da cláusula do due process deriva, em grande medida, da expressa introdução de seus termos nas Constituições dos Estados Unidos, tanto as estaduais8 quanto a nacional9, esta por intermédio da 5ª e da 14ª Emendas10. A dificuldade, todavia, tanto na Inglaterra, quanto nos Estados Unidos, é que a cláusula não tem qualquer conteúdo normativo autoevidente, já que não esclarece qual processo seria devido. O sentido de um processo devido só pode ser estabelecido em relação a um contexto jurídico, não abstratamente.

2.2 O devido processo no período colonial e na formulação da Constituição

No período colonial norte-americano, há registros de aplicação do devido processo legal tanto na esfera penal, quanto em litígios privados de natureza civil, usualmente relacionados à propriedade da terra. De acordo com Rodney Mott, no caso Lessee v. Beale, julgado em Maryland, em 1726, ficou estabelecido que o devido processo legal exigia notificação e oitiva dos interessados, antes que o litígio fosse resolvido11. Há, ainda, diversas referências à Magna Carta e, de modo específico, ao devido processo legal, nos escritos do período revolucionário, que levaria à independência dos Estados Unidos12.

Apesar da existência, nos Estados Unidos, de pensadores defendendo a visão de que os direitos consagrados na Magna Carta deveriam constar do texto originário da Constituição, essa proposta estava longe de ser unânime e foi levada à assembleia tardiamente. A possibilidade de que o dissenso atrasasse a promulgação do texto fez com que a ideia não frutificasse13. Com a aprovação da Constituição, os antifederalistas passaram a criticar o documento, com o fundamento de que dava excessivos poderes ao Congresso Nacional, tanto sobre os estados, quanto sobre os cidadãos, motivo pelo qual defendiam a aprovação de normas que limitassem esse poder. Tal debate foi exacerbado durante a ratificação da Constituição pelos estados e, quando ela foi aprovada e o primeiro Congresso iniciou sua sessão, havia 103 propostas de Emendas Constitucionais para que se estabelecesse um Bill of Rights14.

Rodney Mott ressalta que os registros das sessões legislativas naquele momento não eram completos, de maneira que há lacunas na definição de qual era o entendimento da cláusula do devido processo para os legisladores que aprovavam a 5ª Emenda. Entretanto, é sabido que o texto praticamente não encontrou oposição no Congresso, nos estados ou do povo, sendo possível deduzir que havia um certo acordo sobre o seu escopo geral, enquanto cláusula limitadora do abuso do poder do governo, ainda que não houvesse certeza quanto a um significado exato. O autor considera uma hipótese aceitável, naquele contexto, que a norma fosse lida como uma vedação geral à tirania e ao abuso de poder, em todos os níveis. Todavia, em Barron v. Baltimore15, a Suprema Corte entendeu que as oito primeiras emendas não se aplicavam aos estados, mas apenas ao governo federal, o que motivou, após a Guerra de Secessão, a inclusão da cláusula do devido processo legal, com texto idêntico ao que constava na 5ª Emenda, também na 14ª Emenda.

Curiosamente, mais uma vez, o devido processo foi o item menos discutido nos debates para aprovação da 14ª Emenda. Para Mott, isso decorre da indefinição do conceito para os membros do Congresso, já naquele momento, em 1866. Esses membros teriam uma noção superficial do significado dessa norma e considerariam que as minúcias de seu alcance eram um problema de interpretação jurídica e, portanto, deveria ser deixado para os tribunais16. Em sentido similar, Edward Eberle afirma que já havia uma compreensão, a partir da 5ª Emenda, para indicar ao legislador constituinte de reforma, ainda que minimamente, qual era o sentido da expressão que ele viria a adotar na nova alteração constitucional17. Laurence Rosenthal afirma que o devido processo legal foi propositadamente inserido na Constituição dos Estados Unidos nesses termos genéricos, para que pudesse evoluir ao longo do tempo. O legislador não teria a intenção de consagrar como devido o processo existente naquele momento histórico18. Assim, a extrema abertura da cláusula, ainda que hoje pareça incômoda, não deixaria de ser responsável pelo seu sucesso e permanência ao longo da história.

Mott encontra situação de similar obscuridade quando analisa os tratados jurídicos do século XIX. Alguns sequer explicam o significado do devido processo legal, por o considerarem absolutamente evidente. Aqueles que buscavam fornecer um significado para a expressão se dividiam em duas correntes. A primeira, dos que lhe atribuíam sentido eminentemente penal19 que, segundo Rodney Mott, eram, com a exceção do juiz Story20, menos respeitados e citados pela jurisprudência. A segunda, que partia do pensamento de John Adams, era capitaneada por Thomas Cooley, que publicou, em 1868, uma obra específica sobre as limitações constitucionais ao poder legislativo21, a qual, por sua influência, é reeditada ainda na atualidade. Cooley se baseia em uma decisão da Suprema Corte para definir o devido processo legal como a garantia de que os direitos dos cidadãos, estabelecidos na “lei da terra” (law of the land)22, serão respeitados por todos os poderes do Estado. Por essa razão, o devido processo exige que o interessado seja ouvido antes de ser julgado e que seja condenado antes de ser desapossado de seus bens.

O trabalho de Cooley teve o efeito colateral de influenciar os juristas posteriores a ele a uma análise da cláusula do devido processo muito voltada para a proteção da propriedade. Cooley era um cuidadoso sistematizador de casos, característica valiosa no sistema da common law, e isso fez com que ele percebesse que a propriedade era muito mais dada a causar conflitos jurídicos do que os direitos pessoais, direcionando para ela o enfoque de seu trabalho23. A influência da conotação econômica do devido processo legal levaria, futuramente, à decisão de Lochner v. New York24 e à era do devido processo legal econômico. Enquanto isso, em relação às garantias propriamente processuais, a Suprema Corte, nesse período, se mostrou bastante leniente com as normas processuais dos estados, outorgando-lhes considerável autonomia para que estabelecessem regras de processo como melhor lhes conviesse25.

2.3 Controvérsias no século XIX: o “devido” do devido processo legal

Ao longo do século XIX, antes, portanto, do período do devido processo legal econômico, a jurisprudência norte-americana, mesmo com dificuldades, avançou na construção de um conteúdo para a cláusula do devido processo legal. Em Murray’s Lessee v. Hoboken Land & Improvement Co. 26, a Suprema Corte afirmou que a interpretação do devido processo não pode ser tal que deixe o Congresso livre para transformar qualquer processo em devido27. Para o juiz Curtis, o processo devido, ou seja, apropriado, é aquele que, primeiramente, não conflita com outras disposições constitucionais e, em segundo lugar, que seja correspondente aos usos e modos de proceder consolidados, valorizando, portanto, a tradição da Common Law. Assim, o devido processo exige que as partes tenham oportunidade de apresentar seus argumentos de modo regular, que haja direito de resposta e o julgamento seja feito de acordo com algum curso pré-estabelecido de procedimentos judiciais28.

A formulação, ainda que contenha alguns parâmetros, não resolve todas as dificuldades, uma vez que não define o conteúdo de cada um desses elementos – o que seria a apresentação regular de argumentos, como se daria o direito de ser ouvido ou os procedimentos de julgamento. Mesmo que tenha ficado estabelecido que o Congresso não pode transformar qualquer processo em devido processo, isso não permite saber quais elementos do processo são devidos e quais não são. A própria Suprema Corte, em momento posterior, questionou se esse teste da Common Law significaria atar o juiz aos procedimentos do período colonial29. Por essa razão, o juiz Moody, em 1908, preferiu confiar em uma definição genérica, asseverando que “esta corte nunca tentou definir com precisão as palavras ‘devido processo legal’... é suficiente dizer que há certos princípios imutáveis de justiça que são inerentes à ideia de governo livre, que nenhum membro da União pode desconsiderar”30.

Em razão da generalidade do requisito, Rodney Mott afirma que a Suprema Corte adotou conduta bastante contida na anulação de atos governamentais, tendo como base, exclusivamente, a cláusula do devido processo legal: até 1924, ou seja, quase setenta anos após a edição da 14ª Emenda, apenas quatro atos do Congresso foram reputados inconstitucionais por violação ao devido processo. Em três deles, a decisão foi amparada também em outras disposições constitucionais31. A única decisão que se fundou exclusivamente na cláusula do devido processo como limitação legislativa, nesse período, foi Adkins v. Children’s Hospital32, entretanto, com base no aspecto substancial do devido processo.

Apesar desses pronunciamentos relativamente escassos, o entendimento jurisprudencial estabeleceu a base para a afirmação de dois requisitos que seriam fundamentais para qualquer processo: notice and hearing, ou seja, ciência do processo e oportunidade de ser ouvido antes do julgamento33. Mott cataloga uma série de decisões, ainda no século XIX, que exigem a ciência e oitiva antes que alguém possa ser privado de sua propriedade34. Na Suprema Corte é possível encontrar julgados, desde Davidson v. New Orleans35, fazendo referência à necessidade de que aquele que será atingido pela decisão seja ouvido antes da sua adoção36.

É induvidoso que a Corte percebeu que mesmo esses requisitos simples acarretavam dificuldades, que demandaram decisões para aparar as arestas da garantia. Fora da seara do processo judicial, discutia-se até que ponto a garantia do devido processo legal condicionaria a atividade do Estado. Por exemplo, no caso de aumento de tributos, não há como se impor a notificação prévia de todos os contribuintes, sob pena de se inviabilizar a atividade arrecadatória37. A Suprema Corte também entendeu que devedores tributários poderiam ser notificados mediante publicação em jornal38. Ainda nesse campo, afirmou que, se há caráter objetivo na imposição do tributo, não há necessidade de prévia oitiva ou notificação39.

No âmbito do direito administrativo, a Corte inicia, no século XIX, um debate ainda não concluído, acerca dos limites da extensão, à atividade da administração, do devido processo legal, sobretudo quando se trata de atuação relacionada ao exercício do poder regulamentar e do poder de polícia40. Foi necessário que a Suprema Corte decidisse até mesmo que o devido processo legal, no âmbito administrativo, não inclui necessariamente o direito de julgamento pelo júri, sendo possíveis outras formas de procedimento decisório41.

Já no início do século XX, a Suprema Corte afirmou, em Londoner v. Denver42, que, embora a 5ª Emenda tenha um caráter vago, obscuro e genérico, ela exige, como regra geral, que, em algum momento do processo, administrativo ou judicial, o interessado seja, de alguma forma, notificado e tenha a oportunidade de ser ouvido. Essa oportunidade de ser ouvido significa o direito de apresentar argumentos em favor de sua posição, mesmo que brevemente, e prová-los, ainda que informalmente. Esse seria o ponto de partida da construção e do debate posterior da garantia, que se seguiria no século XX.

3 Definindo os elementos do devido processo legal: o século XX na jurisprudência norte-americana

Ao longo do século XX, a jurisprudência norte-americana dividirá suas considerações sobre o devido processo legal em duas profícuas vertentes: a procedimental e a substancial43. A primeira é a que interessa mais diretamente ao presente estudo, uma vez que o devido processo legal substancial não é uma regra de processo, mas um postulado a partir do qual a Suprema Corte extrai direitos materiais não expressamente previstos na lacônica Constituição norte-americana.

A Suprema Corte dos Estados Unidos chega ao século XX com uma noção vaga do conteúdo do devido processo legal procedimental, ora identificando-o a partir da tradição da Common Law, ora a partir de “princípios fundamentais de liberdade e justiça”44 ou regras gerais de equidade no procedimento e, eventualmente, pela combinação de ambos. Observe-se que são parâmetros muito diferentes. A referência à tradição significa que o processo deverá ser considerado devido se decorre de uma prática histórica, estabelecida nas decisões judiciais pretéritas, enquanto o recurso a princípios abstratos permite que o Judiciário crie requisitos novos, não cogitados pelas decisões que constituem precedentes.

Esse debate perpassa toda a polêmica da interpretação das normas constitucionais norte-americanas, não apenas no âmbito do processo civil. Mesmo com o texto antigo e lacônico, ainda há uma respeitável linha de juízes e autores que defendem que, em nome dos limites e restrições da atividade jurisdicional, o juiz deve interpretar a Constituição de acordo com a vontade do legislador constituinte, seja ele originário ou de reforma, esforçando-se em uma pesquisa histórica para descobrir esse significado à época da aprovação da norma45.

Na primeira metade do século XX, continua predominando o laconismo nas aproximações conceituais ao devido processo legal, como se havia verificado no século XIX. O juiz Cardozo, em Palko v. Connecticut46, afirmou que, para se qualificar como elemento do devido processo, um direito deve ser parte do esquema de liberdade ordenada adotado pelo país e, portanto, os homens sensatos reconhecerão que negá-lo seria repugnante à consciência da humanidade. O juiz Roberts, em Betts v. Brady47, se refere ao entendimento comum daqueles que vivem sob o sistema anglo-americano de leis e a um senso universal de justiça. A imprecisão dessas noções foi apontada pelos próprios juízes da Corte.

Ainda no início do século, o juiz Moody já observava que é preciso ter cuidado para “não importar para a interpretação constitucional nossas visões pessoais do que seriam regras de governo sábias, justas ou adequadas, confundindo-as com limitações constitucionais”48. De forma geral, os estudiosos apontam que a Corte buscou ser cuidadosa com esse subjetivismo, adotando como fontes para a definição do conteúdo do devido processo a análise histórica, tanto do entendimento da cláusula do devido processo, quando foi redigida, quanto o modo como os procedimentos eram conduzidos na Inglaterra e nas colônias americanas. A Corte ainda se valeu, em diversas ocasiões, do sentido que os tribunais inferiores, estaduais e federais, atribuíam a um determinado elemento processual, bem como das práticas adotadas nos estados49.

Todos esses eram indícios de que uma prática estaria abrangida pelo devido processo legal. Se um elemento ou conduta processual é tradicionalmente considerado devido, então é provável que ele de fato o seja. Todavia, a porta do subjetivismo permanecia aberta. A Constituição garante o devido processo legal, mas não o conceitua, do mesmo modo que assegura, por exemplo, a propriedade, mas deixa para o legislador definir o que pode ser apropriado. Se a Corte não estabelece qualquer conteúdo para esses direitos, é como se a Constituição não existisse. Tudo ficaria ao alvedrio do legislador. Por outro lado, a falta de parâmetros para estabelecer esse conteúdo enseja o risco de que que ele seja definido a partir de puro voluntarismo de nove juízes não eleitos. É essa a “dificuldade contramajoritária” que tanto incomodou Alexander Bickel50.

3.1 Frankfurter e a nova jurisprudência

Um crítico dessa tendência ao avanço dos limites da jurisdição foi o juiz Frankfurter, para o qual “esta Corte não traduz visões pessoais em limitações constitucionais”51. Para ele, o objetivo do devido processo seria proteger apenas os sentimentos mais permanentes e universais da sociedade. A afirmação mostra que a crítica é mais fácil que a construção da solução: Frankfurter não apresenta um critério para que se possa diferenciar o que são sentimentos universais da sociedade, meramente articulados pela Corte, das preferências subjetivas da maioria de seus juízes52.

Com o tempo, o próprio Frankfurter, embora tivesse consciência de que a análise judicial de casos tende a gerar uma sucessão ad-hoc de ordens, muitas vezes incompatíveis entre si ou com a justificação que as apoia53, passou a adotar posicionamentos embasados em análise alegadamente “racional”, mas com forte carga subjetiva, sempre negada por ele. Devido processo significa a equidade essencial e ele a define recorrendo à razão, a qual considerava “impessoal e comunicável”54.

A crítica formulada por Frankfurter foi direcionada a ele próprio pelo juiz Black, que o acusava de estar reintroduzindo o direito natural na jurisprudência da Corte, por trás de análises supostamente racionais. Frankfurter o negava, assentando que sua noção de justiça55, composta pela história, pela razão, pelas decisões pretéritas e pela fé na democracia permitiria a apreensão do sentido constitucional. Nesse sentido, o due process não seria um instrumento rígido, mas um processo delicado de ajuste, a ser feito por aqueles a quem a Constituição confiou tal missão56, ou seja, pela Corte. Para o juiz, a contenção da subjetividade não era incompatível com o apelo iluminista de existência de uma razão alcançável por intermédio da sabedoria e do conhecimento57. Afirmava a confiança na diferença entre uma decisão que decorra de revelação transcendental e outra que se funde na “consciência da sociedade verificada, tão bem quanto possível, por um tribunal disciplinado para a tarefa”58.

Frankfurter foi um dos responsáveis pela nova força que ganharia a cláusula do devido processo legal na jurisprudência norte-americana, em meados do século XX, chegando a afirmar que “a história da liberdade é, em grande medida, a história da observância de salvaguardas processuais”.59 O principal valor, todavia, da jurisprudência capitaneada por Frankfurter não foi seu sucesso em estabelecer um conceito definitivo de devido processo, mas sua crítica ao viés de análise quase puramente histórico até então estabelecido. É esse o cerne de sua divergência com o juiz Black. A Corte, tradicionalmente, amparava suas decisões em elementos históricos, seja por intermédio dos precedentes, da história constitucional, ou mesmo da história colonial ou inglesa pré-colonial. Frankfurter e a Corte Warren fundamentarão suas decisões progressistas rompendo com a história e buscando uma fundamentação racional que, insistirão eles, tem caráter objetivo. O devido processo poderá deixar de ser, assim, uma simples salvaguarda de noções pré-estabelecidas, para se adaptar às inevitáveis mudanças da sociedade60.

Um caso marcante do período é Joint Anti-Fascist Refugee Committee v. McGrath61, no qual se questionava a constitucionalidade da classificação, feita pelo governo federal, de pessoas e entidades como subversivas, privando-as, por essa razão, de variados direitos. Tanto Black quanto Frankfurter, assim como a maioria da Corte, entenderam que a colocação de pessoas nessas listas, sem prévia notificação e audiência, violava o devido processo legal. Os argumentos de ambos, entretanto, foram distintos e representativos de seus respectivos estilos. Black se fundou na história da Common Law, encontrando uma referência do reinado de James II, em 1688, para sustentar sua opinião62. Frankfurter considerou o devido processo como valor profundamente enraizado na tradição da sociedade americana e designado para mantê-la. O vício do ato impugnado era o fato de ter sido executado sem prévia notificação, sem dar aos interessados ciência das razões que o embasavam, acesso às provas e oportunidade de contraditá-las. A equidade do procedimento, afirma Frankfurter, é a essência do devido processo legal e ela deve ser assegurada mesmo nos tempos mais difíceis da nação. O conteúdo do devido processo não é fixo e apreensível por uma fórmula, mas representa uma atitude de justiça entre os homens e entre eles e o governo, sendo composto pela história, pelas decisões passadas e pela confiança na força da democracia63. Também nesse período, o juiz Jackson afirmou que “a justiça e regularidade do processo constituem a essência indispensável da liberdade. Muitas leis severas podem ser suportadas se forem aplicadas de modo justo e imparcial”64.

A dificuldade abordada pela Corte, um século antes, sobre saber se o processo devido é aquele previsto em lei, ou se a palavra “devido” condiciona a atividade do legislador, recebia uma resposta eloquente no sentido da restrição da atuação legislativa, embora ainda sem conteúdo muito bem determinado65. Isso não se fez sem resistências. O juiz Black, em vários casos, ressaltou que o devido processo legal, desde a Magna Carta, se referia a garantir que as pessoas fossem processadas de acordo com a law of the land e que, nos Estados Unidos, a lei da terra é a Constituição escrita e as leis aprovadas pelos órgão competentes66. Logo, não faria sentido pretender dar conteúdo autônomo à palavra “devido”, para além do que a própria Constituição ou a lei especificam como devido.

4 A década de 1970 e o conceito contemporâneo do devido processo legal

Apesar da polêmica entre Frankfurter e Black, as críticas à definição judicial dos elementos do devido processo legal acabaram não prevalecendo e a Corte adotaria, na década de 1970, as decisões que Henry Friendly67 qualificou como “explosão do devido processo”68. Em Goldberg v. Kelly69, a Suprema Corte entendeu que aquele que está ameaçado de perder um benefício de seguridade social tem direito a ser notificado e ouvido antes da cessação. Não seria propriamente um julgamento, mas uma oitiva oral, perante uma autoridade imparcial, com direito de apresentar e questionar testemunhas, bem como de receber uma decisão escrita fundamentada, embasada apenas em normas jurídicas e nos fatos apurados na audiência. Assim, uma audiência informal não satisfaria essa necessidade.

Outra decisão relevante nesse período é Wolff v. McDonnell70, de 1974, caso em que a Suprema Corte afirmou o direito de os presos serem ouvidos antes da adoção de medidas disciplinares em seu desfavor. O julgado está no contexto de um conjunto de outros casos relacionados ao devido processo legal em benefício de presos e condenados71 e ainda cita outras situações, entre votos majoritários e vencidos, nas quais a Suprema Corte já havia afirmado o direito de alguém ser ouvido antes de decisões que o afetem72, sendo tal elemento essencial ao devido processo73. Enfim, a cláusula do due process seria estendida, nesse período, aos mais variados contextos, como os relativos a direitos de motoristas de veículos, empregados, estudantes e outros tantos referidos nas 798 notas de rodapé do detalhado trabalho de Doug Rendleman74.

A partir de Wolff v. McDonnell, Henry Friendly tenta estabelecer os elementos essenciais a um fair hearing75. Embora o autor enfoque a atuação administrativa do Estado76, os elementos propostos são perfeitamente aplicáveis ao contexto judicial, de modo que permitem a definição de um núcleo de elementos do devido processo legal: 1) um julgador imparcial, 2) ciência da ação proposta e de seus fundamentos, 3) oportunidade de apresentar argumentos de defesa, 4) oportunidade de produzir provas, inclusive de apresentar testemunhas77, 5) direito de conhecer as provas da parte contrária, 6) direito de inquirir as testemunhas da parte contrária, 7) direito a uma decisão fundada exclusivamente nas provas dos autos, 8) oportunidade de ser representado por advogado, 9) necessidade de registro das provas apresentadas e 10) fundamentação da decisão78.

Morris Forkosch, escrevendo na mesma época, chega a afirmar que o devido processo legal procedimental é a causa suficiente da democracia americana, sendo um componente do American way of life79.

5 Mathews v. Eldridge: o devido processo como garantia instrumental

Apesar da empolgação da década de 1970, a própria Suprema Corte não demorou a perceber o custo que o devido processo imporia à administração pública e, por extensão, à administração da justiça. De um lado, a importância de que o cidadão não seja privado de direitos sem a possibilidade de intervir significativamente na decisão que o afeta funda as noções mais básicas de convivência em um ordenamento jurídico que trate os jurisdicionados como sujeitos dignos de proteção e consideração.

De outro lado, contudo, o devido processo ou os elementos que o compõem não podem se converter em obstáculos desnecessários e irrazoáveis para a tomada de decisão, a implementação de políticas públicas e a produção de resultados socialmente significativos. A Suprema Corte dos Estados Unidos percebeu essa circunstância em Mathews v. Eldridge80. Apenas seis anos depois de Goldberg, os juízes temperaram o entendimento anterior, por intermédio de uma distinção do precedente, ponderando que as exigências lá fixadas não deveriam ser consideradas como regra geral.

A Corte, asseverando que o devido processo legal não é uma norma rígida, estabeleceu um teste de balanceamento de três partes para a conduta estatal, considerando: a) os interesses privados que serão afetados pela decisão, b) o risco decorrente da privação indevida desses interesses e o potencial que os procedimentos adotados têm de evitar esse risco, bem como, de outro lado, c) os interesses do Estado envolvidos no exercício daquela função e o custo da introdução das garantias procedimentais81. O resultado desse teste apontaria que tipo de garantia processual o caso demandaria, sendo, portanto, incabível pretender que a decisão de Goldberg fosse aplicada em todos os âmbitos da atividade administrativa.

Desse modo, as exigências decorrentes do devido processo legal podem ser abrandadas quando os interesses afetados pela decisão são menos importantes, quando o risco da sua privação indevida for minorado por outros mecanismos, tais como um recurso posterior e quando os interesses estatais e o custo do processo suplantarem o direito que a garantia processual buscaria assegurar. Trata-se de um teste casuístico, que fornece diretrizes, mas não permite que se defina com absoluta segurança, ex-ante, a dimensão dos elementos do devido processo em cada caso. Como disse a própria corte, “o devido processo legal é flexível e determina proteções processuais de acordo com as demandas da situação particular”.

Ainda que a construção tenha buscado, de modo minudente, distinguir as situações e evitar simplesmente afastar Goldberg, até por ser uma decisão adotada poucos anos antes, o que ocorreu, em verdade, foi um arrependimento dos juízes em relação à extensão do julgado anterior e, por essa razão, um recuo. A Corte passa a ver o devido processo como uma garantia cujos elementos não têm valor em si, mas condicionados à avaliação de sua finalidade em um determinado contexto82. Os juízes percebem que a generalização de Goldberg exigiria que a administração investisse recursos para a implementação de processos que, em grande medida, teriam pouca utilidade prática, reduzindo, por essa razão, o orçamento disponível para a realização dos direitos materiais subjacentes aos conflitos. O devido processo legal assumiria, a partir de então, caráter instrumental, o qual ostenta até a atualidade, uma vez que Mathews permanece como precedente válido83.

Nos anos subsequentes, o precedente de Mathews foi confirmado em Mackey v. Montrym84 e em Cleveland Board of Education v. Loudermill85, dentre outros. Em Mackey, a Suprema Corte afirmou expressamente que “a garantia do devido processo nunca foi construída como o direito de se exigir um procedimento capaz de excluir qualquer possibilidade de erro”. Em Loudermill, os juízes concordaram que requerer procedimentos exagerados significaria intervir indevidamente na realização de outros interesses. Assim, preservado o núcleo da garantia – ciência da situação e oportunidade para apresentar manifestação – seriam viáveis privações de direitos em virtude de procedimentos abreviados.

Mais recentemente, a Suprema Corte tratou do problema qualitativo da participação, no contexto do direito de apresentar razões por intermédio de advogado. Em Turner v. Rogers, o recorrente foi preso pelo não pagamento de prestações alimentícias e o estado da Carolina do Sul se negou a providenciar-lhe um advogado gratuito, ao argumento de que esse direito não existe em processos civis, ainda que deles derive imposição de prisão, mas apenas em casos de natureza penal. A Suprema Corte confirmou esse entendimento, dispensando a indicação do defensor.

No entanto a maioria dos juízes entendeu que a falta de defesa técnica gratuitamente providenciada pelo Estado precisaria ser compensada por outros mecanismos de garantia processual. Seria preciso, pelo menos, 1) que o réu seja cientificado, com clareza, de que a demonstração de sua impossibilidade de pagamento é crucial para o resultado do processo; 2) a disponibilização de um formulário padronizado ou equivalente, para que ele possa apresentar informações financeiras relevantes; 3) oportunidade para que o réu se manifeste na audiência, inclusive sobre sua situação financeira, contestando informações da parte contrária, se for o caso; 4) decisão explícita do juiz, fundamentando a possibilidade de o réu efetuar o pagamento inadimplido86.

Mesmo autores críticos dessa linha de decisões, tais como Jerry Mashaw, enfatizam que ela tem o mérito de focar o debate nos valores que se pretende assegurar para as partes, em vez da técnica pura e simples. Com isso, evita-se a discussão “crescentemente estéril” se esse ou aquele elemento do devido processo são essenciais para a garantia87.

6 Análise: o devido processo como garantia instrumental

Defender a expansão de garantias processuais é um discurso frequentemente apoiado em argumentos que encontram fácil ressonância e apelo emocional. Garantias processuais contribuem para a justiça da decisão, para a democracia, para o tratamento digno das partes, para o controle dos poderes e abusos do juiz, enfim, para quase tudo o que se pode imaginar como positivo em um Estado Democrático de Direito.

O problema é que, quando se abandona o patamar do discurso para o da realidade, percebe-se que a expansão ilimitada do devido processo legal tem potencial para transformá-lo em um conjunto de pequenas armadilhas e filigranas que, em última análise, dificultam ou inviabilizam o resultado esperado pelas partes, que é a tutela do direito material. O que o devido processo deve ser capaz é de produzir respostas que levem em conta os inputs que o interessado tem a apresentar. Como diz Doug Rendleman, os famintos querem comida, não querem devido processo. O locatário empobrecido, que sofre uma ação de despejo, aprecia ser notificado previamente, para que possa recolher seus pertences. Mas o que ele queria mesmo é não ser despejado88. Não parece haver justificativa para supor que garantias processuais podem ser construídas acima dos fins que o processo pretende alcançar e não em função deles.

O que as presentes reflexões demonstram é que a expansão de garantias processuais não pode ser feita sem considerar os custos implicados. Ela acarreta custos para a parte que é titular do direito material, a qual, em nome da redução da possibilidade de decisões erradas, deverá suportar a demora no reconhecimento do seu direito. Amplia os custos de transação decorrentes do processo, já que o aumento da duração implica maiores despesas com advogados e demais atos do processo. E ainda acarreta custos sociais, pela sobrecarga jurisdicional dos órgãos decisórios, que demandarão mais estrutura para o processamento dos casos por mais tempo e, com isso, mais recursos orçamentários.

O principal problema, no entanto, é que os custos e benefícios da expansão do devido processo não são distribuídos equanimemente. Os custos incidirão desproporcionalmente sobre as pessoas mais pobres. Elas não contarão com advogados competentes para aproveitar todas as oportunidades que o processo lhes proporciona, nem para impedir que a parte contrária abuse dessas oportunidades para delongar o processo indevidamente. Além disso, a falta de dinheiro as oprime para a aceitação de acordos que lhes são desfavoráveis e que, em outras circunstâncias – por exemplo, se o processo fosse mais curto – não teriam aceitado. Como diz Martin Meyer, “direitos, como tudo mais, podem ser muito caros para os pobres”89. Assim, talvez seja melhor, em tal cenário, prestigiar a eficiência e a celeridade, sobretudo em casos nos quais o risco de privação errônea de direitos é pequeno e a eficácia de medidas para corrigir erros, após a decisão, razoável.

7 Conclusão

O conhecimento da história é valioso para qualquer ramo do Direito e o processo civil não é exceção. Ao refazer o percurso da construção da garantia do devido processo legal na jurisprudência norte-americana, é possível perceber o modo como esta se posicionou no arcabouço teórico processual, alcançou seu apogeu no início dos anos 1970 para encontrar, em Mathews v. Eldridge, seu perfil atual. Percebeu-se que o processo é importante, mas ele não pode preceder os direitos substanciais. As exigências processuais, se exageradas, podem inviabilizar a atividade administrativa e jurisdicional sem qualquer benefício contraposto, ou seja, sem implicar ganhos concretos para os indivíduos implicados na controvérsia.

A história demonstra, portanto, não apenas que não existem direitos absolutos, como rotineiramente se repete, mas também que o processo, como instrumento, não pode se sobrepor à realização dos direitos materiais. Nesse sentido, é pertinente a reflexão, por parte dos processualistas (civis ou penais) brasileiros, acerca do quanto se fomenta uma cultura das nulidades. Uma singela busca no website do Superior Tribunal de Justiça, pela expressão “devido processo legal e nulidade” retornou impressionantes 1.908 acórdãos e 43.308 decisões monocráticas90. Considerando que o STJ iniciou suas atividades em 24 de abril de 1989, o tribunal proferiu mais de 4 de decisões por dia (mais de 7, se forem considerados apenas os dias úteis) tratando de eventuais nulidades relacionadas ao devido processo legal.

É certo que o Superior Tribunal de Justiça não acatou todos esses pedidos, mas também não deixa de impressionar o número de decisões que enfocam nulidades, sobretudo quando se considera que, em relação às decisões colegiadas, a busca se restringe à ementa do acórdão. É ponderável a possibilidade de que o sistema judicial brasileiro sobrevalorize a discussão de aspectos procedimentais sobre o direito material, em detrimento do verdadeiro interesse das partes. Afinal de contas, como espirituosamente afirmou Learned Hand, a maioria das pessoas comuns “tem horror a processos judiciais acima de qualquer outra coisa menos grave que a doença ou a morte”91. O devido processo legal deve ser valorizado e resguardado, mas não por sobre as necessidades da vida.

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Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, vol. 15, n. 1, p. 78-105, Janeiro-Abril, 2019 - ISSN 2238-0604

[Received/Recebido: Julho 26, 2017; Accepted/Aceito: Julho 11, 2019]

DOI: https://doi.org/10.18256/2238-0604.2019.v15i1.2053

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