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Direitos da natureza: reflexões sobre possíveis fundamentos axiológicos

Rights of nature: reflections on possible axiological fundamentals

Daniel Diniz Gonçalves(1); Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega(2)

1 Universidade de Ribeirão Preto. Mestre pela UNAERP. Procurador federal.
E-mail: [email protected]

2 Mestre e Doutora pela PUC/SP. Professora da faculdade de direito da Universidade Federal de Goiás e da Universidade de Ribeirão Preto. Advogada.
E-mail: [email protected]

Resumo

O presente artigo propõe-se a discutir o fundamento axiológico de um paradigma ecocentrista. Primeiramente, será exposta uma análise axiológica das racionalidades que orientam o modelo antropocêntrico, a saber, a economicista e a cientificista, que reputam que a natureza é um mero objeto, mero instrumental, para a promoção dos interesses dos seres humanos, ou mais propriamente, de alguns seres humanos. São desvelados os efeitos cruéis dessa percepção absolutista do antropocentrismo, materializados em desastres naturais de todo o tipo, que comprometem a qualidade de vida e a própria existência do ser humano, denunciando-se, assim, sua falência paradigmática. Prosseguindo, serão traçadas as características do paradigma ecocentrista, especialmente na construção de um amparo axiológico ao mesmo, o que se desenvolve através de reflexões filosóficas sobre um valor intrínseco à natureza. O valor intrínseco da natureza é abordado através de uma revisitação do conceito de razão, que é hermeneuticamente reconstruído, com espeque na ética andina. Na conclusão, serão pontuadas as implicações de uma nova ética da natureza sobre as relações entre os homens e entre o homem e a natureza.

Palavras-chave: Fundamentos. Axiológicos. Natureza. Valor Intrínseco.

Abstract

This article proposes to discuss the axiological foundation of an ecological-centric paradigm. First, it exposes an axiological analysis of the rationales that drive the anthropocentric model, namely, the economist and the scientific rationales, which consider that nature is a mere object, a simple instrument, to promote the interests of human beings, or more properly, of some humans. The cruel effects of this absolute anthropocentric view are revealed, as they are materialized in natural disasters of all kinds, which affect the quality of life and the very existence of human beings, denouncing, thus, its paradigmatic bankruptcy. Going forward, the article draws the characteristics of the ecological-centric paradigm, focusing especially on building a set of values to support it, which will be developed through philosophical reflections on an intrinsic value to nature. The intrinsic value of nature is approached through revisiting the very concept of reason, which is reconstructed with stanchion in the Andean ethics. In conclusion, the article traces the implications of a new ethic of nature on relations between men and between man and nature.

Keywords: Fundamentals. Axiological. Nature. Intrinsic value.

1 Introdução

Todo paradigma jurídico de direitos necessita de um suporte axiológico que lhe dê fundamento, que lhe imprima uma “razão de ser” que, ao mesmo tempo, penetre no imaginário sociocultural de uma coletividade, viabilizando o seu reconhecimento, respeito e adesão prática, e que, também, conformem um sistema lógico comportamental do qual se possa depreender deveres para os envolvidos, materializado na prescrição de condutas, que é uma das funções operacionais técnicas do Direito.

No campo dos chamados “direitos da natureza”, observam-se controvérsias e perplexidades no tocante a seu reconhecimento enquanto “genuínos direitos”, e isso se dá justamente por não lhe ser identificado prontamente um suporte axiológico legitimante. O fato é que falar em “direitos da natureza” acaba por provocar no imaginário coletivo comum, e também dentro da própria comunidade jurídica, um notório mal estar, que se traduz na impressão de que “direitos da natureza” banalizam o próprio Direito.

A discussão de fundamentos axiológicos dos direitos torna-se tanto mais dificultosa e complexa quanto se afasta do terreno confortável do instituto jurídico, ético e social da “dignidade da pessoa humana”. Quando se suscita a expressão “dignidade da pessoa humana”, parece que se mobiliza no imaginário coletivo e individual um repositório de valores que é mais facilmente identificado pelos sujeitos de direito, de maneira que o reconhecimento, adesão e respeito aos direitos a ela adstritos torna-se mais eficaz.

Nos direitos da natureza, já não se pode contar com a dignidade da pessoa humana para conferir o almejado supedâneo legitimador axiológico. Todavia, tal instituto acabará por fornecer subsídios para se trabalhar uma proposta de fundamento axiológico aos direitos da natureza, a partir da ideia de “valor intrínseco”.

A proposta desse trabalho será desenvolvida em quatro partes, levadas a termo em uma cadência expositiva arranjada para facilitar a compreensão.

Primeiramente, o artigo exporá um contexto de visões da natureza pelo homem, de molde a compreender o porquê da resistência em se perceber a natureza enquanto sujeito de direitos. Nessa parte, será exposta, com espeque em pesquisa bibliográfica interpretada por método histórico, que a visão hegemônica antropocêntrica de mundo, que confinava a natureza à qualidade de objeto a ser explorado à exaustão, concorreu sobremaneira para a atual resistência a lhe reconhecer direitos. Desvelar-se-á as racionalidades (economicista e cientificista) que subjazem à compreensão da natureza enquanto mero objeto a ser tomado pela indústria humana e seus perniciosos efeitos sobre as relações humanas. No arremate do tópico, registra-se o início de demandas por uma reavaliação da percepção da natureza pelo homem, no sentido de lhe conferir um maior respeito.

Na segunda parte, também com subsídios em pesquisa bibliográfica de obras de autores críticos latino americanos, interpretadas à luz do método histórico, o artigo apresenta um novo enfoque (quiçá um novo paradigma) para as relações entre os seres humanos e a natureza, pautados em uma abordagem contra-hegemônica e descolonial, que suscita, ou resgata, a concepção da natureza como detentora de valor intrínseco, com embasamento em conhecimentos tradicionais da população autóctone andina.

Na terceira parte, o vestibular trabalho desenvolve um discurso argumentativo no sentido de apresentar a mudança de um paradigma antropocêntrico para um ecocêntrico como uma necessária revolução científica, no que servirá a este estudo a pesquisa bibliográfica e a documental, avaliadas por método lógico dedutivo. Deduzir-se-á as anomalias que o paradigma antropocêntrico não conseguiu resolver e as possíveis soluções que o paradigma ecocêntrico propõe.

A quarta parte propõe uma releitura do conceito de “valor intrínseco”, egresso da ética kantiana, tentando conferir tal atributo ético à natureza, com vistas a lhe oferecer o colimado fundamento axiológico. A pesquisa bibliográfica e o método dialético e dedutivo permeiam o tópico.

Finalmente, a conclusão faz o cotejo das conclusões das quatro partes do trabalho, propugnando pelo reconhecimento de um valor intrínseco, e não meramente instrumental, à natureza, o que consagra outras formas de ver o mundo e perceber a realidade, sobretudo as advindas dos saberes tradicionais (ética andina), contribuindo para que a humanidade reavalie sua relação com a natureza, vendo-se nela imersa, no desiderato de garantir sua sobrevivência diante das graves crises ecológicas que se lhe apresentam.

2 Contextualização do problema proposto: visões da natureza

A natureza existe, e existiu por muito tempo, sem a presença humana; todavia, o contrário não se verifica. Dessa maneira, a discussão acerca de que homem e natureza não travam uma relação de reciprocidade de direitos e deveres é despicienda. A relação de dependência entre homem e natureza é unilateral, de maneira que a participação dos homens no cenário mais abrangente da vida (natureza) é que deve se balizar aos processos naturais.

A natureza, pois, é um meio onde se cria e desenvolve a vida, e os humanos estão nele inseridos, de molde a ser ela, a natureza, em si mesma importante. Nessa constatação, a natureza adquire um valor intrínseco (concepção biocêntrica), e não apenas como objeto a ser domado para a satisfação das necessidades humanas (enfoque antropocêntrico).

Quando se fala em valor intrínseco da natureza, está-se a evocar considerações de ordem moral, ética e espiritual sobre a mesma, o que pede por algumas considerações históricas e culturais, acerca das maneiras pelas quais o homem com ela se relacionou.

Por exemplo, para os conquistadores espanhóis que adentraram no continente sul-americano, a selva era o “inferno verde”, ao passo que para a população local, os “índios”, era uma fonte de recursos naturais ou um ecossistema a ser preservado cuidadosamente.

A concepção judaico-cristã foi clara ao expressar que o que se encontrar na terra servirá ao homem para comer, expressão essa que serviu de embasamento para séculos de uma postura de dominação e exploração da natureza pelo homem.

O racionalismo científico ocidental, plasmado nas afirmações de Francis Bacon1 de que a natureza deve ser domada em sua indisciplina, submetida e obrigada a servir, escravizada, reprimida com força, torturada até lhes arrancar seus segredos, traduz bem a racionalidade que orientou a relação do homem com a natureza nos séculos XVII e XVIII.

Júlio Marcelo Prieto Mendes2 assevera que Spencer e Hegel colocavam o homem (homem europeu, para se ter mais precisão expositiva) na cúspide da pirâmide da evolução, de maneira que seu pensamento serviu de fundamento legitimante tanto ao colonialismo quanto ao pensamento de indiferença com a natureza.

Federico Engels3, em sua “Introdução à Dialética da Natureza”, apregoou que o trabalho realizava um papel decisivo no nascimento, desenvolvimento e aperfeiçoamento do homem e da sociedade humana, de molde a ser a produção uma ação recíproca transformadora do homem sobre a natureza. Além desse caráter de reciprocidade, até então não experimentado, asseverou o autor que:

Assim, a cada passo, os fatos lembram-nos que o nosso domínio sobre a natureza não se parece em nada com o domínio de um conquistador sobre os povos conquistados, que não é alguém que está situado fora da natureza, sim que nós, por nossa carne, nosso sangue e nosso cérebro, pertencemos à natureza, nos encontramos em seu seio, e todo o nosso domínio sobre ela consiste no fato de que, ao contrário de outros seres, somos capazes de aprender suas leis e aplicá-los corretamente.4

Depreende-se dos escólios acima que o homem começou a ser visto como parte integrante da natureza, e não como seu senhor absoluto.

A teoria crítica, de seu turno, intentou superar a dualidade com a qual o Ocidente conhece o mundo, denunciando mentalidades economicistas, racionalistas e cientificistas5.

Nessa mesma linha, Emmanuel Levinas6 começou a formular uma teoria crítica à sociedade pós-moderna para contestar o modelo egocêntrico, atomizado, despojado de todo sentido de comunidade, com o qual o homem percebe a realidade, desenvolvendo um humanismo baseado em uma relação ética entre os homens que coexistem em uma mesma realidade, que assoalhou as bases para uma ética da alteridade. Nesse sentido, a crise ética contemporânea:

[...] tem sua razão de ser na profunda perda de identidade cultural, na desumanização das relações sócio-políticas, no individualismo irracionalista e egoísta, na ausência de padrões democráticos e comunitários, senão ainda na constante ameaça de destruição da humanidade e de seu meio ambiente.7

Voltando a Emmanuel Levinas8, o mesmo sugere ser primordial invalidar os metadiscursos9 do cristianismo, racionalismo, marxismo e capitalismo, todos eles alicerçados em verdades prévias dicotômicas e excludentes, para conduzir o mundo à liberação/emancipação.

Boaventura de Souza Santos10 denuncia que a dominação da natureza foi levada a cabo de maneira tão egoísta e perversa, que se gerou uma crise ecológica de dimensão mundial, traduzida na perda de florestas, espécies e na fome, sobretudo nos países de terceiro mundo, onde a exploração ocorre sem clemência.

Contemporâneo às denúncias acima é o movimento Chipko11, que inaugura estratégias de proteção da natureza. Vandana Shiva12, uma de suas mais prominentes representantes, critica as relações entre homem e natureza, advertindo que os recursos naturais não estão a venda. O patrimônio biológico seria um bem comunal, e não propriedade privada.

Preleciona Vandana Shiva13 que a cultura da propriedade isola os conhecimentos, as culturas, a água, a biodiversidade e tais isolamentos, ou apropriações, geram exclusão e pobreza. Assim, propõe a necessidade de se superar o paradigma da propriedade por um paradigma de diálogo, pluralismo e participação solidária no planeta, por meio de economias vivas, em que se compartilha equitativamente os recursos da Terra, para satisfazer as necessidades de comida e água.

Novamente sob as achegas de Boaventura de Souza Santos14, tenta-se desenvolver um novo paradigma para o Estado, na medida em que se ataca o vértice criador do Estado-nação da Modernidade, o contrato social, que exclui o “estado de natureza”, ou mais propriamente, a natureza em si, entendida somente como um recurso pertencente ao Estado-Nação, para satisfazer as necessidades de seus cidadãos. Transformada em recurso, a natureza não tem outra função que não a de ser explorada até o exaurimento.

Ainda em Boaventura de Souza Santos15, o apanágio da modernidade é a visão de superioridade do ocidente, do pensamento científico e do individualismo sobre outras formas de pensamento. Dessa maneira, justificada estaria a destruição dos conhecimentos nativos ancestrais pelo conquistador europeu (o clássico e o atual).

Assentadas nessas críticas ao modelo hegemônico de perceber o mundo, Boaventura de Souza Santos16 propõe uma maneira alternativa à globalização neoliberal, baseada no estudo das sociedades silenciadas pela visão hegemônica. É a sociologia das ausências, que busca incorporar uma ecologia dos saberes, tradicionais, ancestrais, que buscam lutar contra a monocultura do saber. Todos os saberes, todas as culturas, são incompletas e, justamente dessa incompletude, nasce a possibilidade de diálogo e disputa entre os diferentes conhecimentos.

No que interessa a um discurso biocêntrico de valor intrínseco à natureza, a superação de um discurso monocultural hegemônico, que propugna uma natureza servil, passiva, destinada a ser explorada à extenuação, propõe o resgate de outras formas, antes silenciadas, de se perceber a relação entre homem e natureza, com espeque em uma visão holística da relação, que insere o homem dentro da natureza, o que precipita o reconhecimento de direitos à mesma, enquanto espaço autônomo e independente do homem, no qual se nasce e se desenvolve a vida.

3 Construção de uma base axiológica dos direitos da natureza por uma ressurreição da ética andina

Se se considerar como objetivo do Estado e da sociedade apenas a busca de um crescimento econômico, estar-se-á negligenciando outros fins igualmente importantes (por exemplo, a busca pela felicidade, integração com a natureza, etc.), que não se alcançam com a racionalidade economicista, notadamente porque a mesma tende a realizar abordagens da realidade simplistas, dicotômicas e excludentes17, como, por exemplo, tomando a natureza como objeto a ser explorado sem limitações18.

A Constituição equatoriana de 2008 trouxe a adoção expressa de um modelo de produção orientado não pela racionalidade economicista, mas pelo buen vivir, sumak kawsay19, de maneira que o regime econômico é que deve ser um meio para a realização dos direitos humanos e da natureza, e não um fim em si mesmo.

Dessa maneira, a natureza, como detentora de direitos, e com valor intrínseco, orientará sua exploração, tendo-se em mente os seres humanos estão nela imersos.

Eduardo Galeano20 cogita de um décimo-primeiro mandamento (com alusão à religião cristã), que seria “amará a natureza de que faz parte”21.

A imposição da forma de ver o mundo do conquistador europeu à população local da América Latina (colonialismo) implicou a substituição de uma visão cosmológica da relação homem-natureza por um enfoque que compreende a natureza enquanto simples meio de se satisfazer as necessidades humanas. Os conhecimentos ancestrais foram suplantados pelo conhecimento científico europeu. A preocupação de uma vida harmoniosa com a natureza, seja enquanto provedora, seja enquanto sistema integrado de criação, manutenção e transformação da vida, foi esquecida e substituída por uma racionalidade de lhe extrair o máximo de recursos, para emprego na satisfação de necessidades humanas, necessidades essas comumente voltadas para a obtenção de lucro.

Opondo-se à visão colonial dos saberes e da cultura, na esteira de uma sociologia das ausências, vários autores, dos quais se destaca Josef Estermann22 propõem o resgate dos saberes ancestrais e tradicionais, notadamente da ética andina, que transcende a visão individualista e racional da visão hegemônica da modernidade ocidental. O ser humano não é, na ética andina, a medida de tudo, tem um lugar importante, mas não central no cosmo, sendo, pois, uma parte da pacha (cosmo).

Na mesma linha, Patricio Guerrero23 denuncia a existência de uma colonialidade do poder, a ponto de reputar existir uma colonialidade e não modernidade. Bate-se, na esteira das teorias críticas, que o modelo eurocêntrico cria dicotomias e exclusões hierarquizadas. A par de tais denúncias, busca a autora resgatar os conhecimentos ancestrais, os andinos e outros que permanecem como subalternos à visão eurocêntrica hegemônica, no manejo eloquente da sociologia das ausências:

De fato, a matriz colonial de poder erige um único horizonte civilizatório do qual emergem conhecimentos que se transformam discursos de verdade; verdades incontestáveis sobre o mundo, a humanidade, a natureza, a vida. Isso conduz à subalternização, à invisibilidade e ao silenciamento de outros conhecimentos e dos sujeitos produtores de tais conhecimentos, a que também silencia, oculta e torna invisíveis.24

4 Do antropocentrismo ao ecocentrismo

O processo, não linear e não unidirecional, de desenvolvimento de justificativas de existência do Estado e legitimação do Direito foi caracterizado por lutas de reconhecimento de “direitos a ter direitos”, ou seja, ampliação quantitativa de sujeitos de direito, além, evidentemente, do reconhecimento de novos direitos em si, ampliação qualitativa e quantitativa dos direitos em si.

A ampliação no quantitativo de titulares de direito foi acompanhada de lutas sociais, cujo mérito foi lançar por terra os paradigmas até então vigentes que não concebiam tal ampliação: superados foram, em boa parte, paradigmas escravagista (escravos são objetos), machista (mulheres são objetos ou semi-incapazes), etnicista (negros, índios, ou qualquer outra etnia “alternativa” são inferiores), etc. Com efeito, tais lutas sociais forneceram um substrato fático axiológico à emergência de um novo paradigma, esvaziando de sentido o antigo, que não mais responde às demandas da vida.

O novo paradigma que se busca, o que a realidade afirma, e assim se espera demonstrar neste artigo, é aquele que afirma o valor intrínseco da natureza, sua dignidade.

Os primeiros estágios de desenvolvimento das ciências envolvem uma contínua competição entre diversas concepções de natureza, que buscam se afirmar como universais.

A pesquisa eficaz não começaria antes que uma comunidade que se diz científica tenha adquirido – ou pense tê-lo – um conjunto de respostas seguras para uma retórica epistemológica básica (quais as entidades fundamentais da realidade? Como elas se integram entre si e com os sentidos? etc.).

A ciência a que a maioria dos cientistas se dedica, a “ciência normal”25 é erigida sob o pilar do conjunto de respostas à retórica epistemológica básica, já convencionada a priori por um conjunto de pesquisadores, de maneira que se a pode conceituar como a pesquisa baseada em razões científicas passadas, convencionadas por alguma comunidade científica para prática ulterior.

Os trabalhos anteriores à ciência normal, ou seja, aqueles que são anteriores às convenções sobre a retórica epistemológica básica, são os chamados “trabalhos fundantes”26, pesquisas que alcançaram realizações sem precedentes, de forma a atrair um grupo duradouro de partidários que, doravante, passam a praticar suas pesquisas sobre os fundamentos de tais achados, descobertas e formulações teóricas.

Thomas Khun intitula de “paradigmas”27 essas realizações passadas, sem precedentes, que servem como respostas eficientes às perguntas retóricas epistemológicas básicas e que contam com a adesão duradoura de pesquisadores. Os paradigmas servem como terreno para desenvolvimento da ciência normal, sendo universalmente reconhecidos, durante algum tempo.

Uma vez erigido o paradigma, ou seja, superada a fase “pré-paradigmática”28, a ciência normal consistirá em “operações de limpeza”29, que constam de articulação das teorias fornecidas pelo paradigma à vida fenomênica. Veja-se que tal processo faz com que a chamada ciência normal tenha reduzido interesse em produzir novidades.

No decorrer da ciência normal, Thomas Khun assevera que determinados fenômenos não são explicados pelos paradigmas vigentes30. São “anomalias”, e até que sejam elas assimiladas ou explicadas pelas teorias do paradigma vigente, as mesmas são consideradas “a-científicas”31.

Tais anomalias podem gerar a abertura do paradigma a novas descobertas, aperfeiçoando-o. Todavia, há anomalias persistentes que não encontram solução no paradigma vigente, demandando, assim, novas teorias, o que redunda, no mais das vezes, em alteração substancial ou na destruição do paradigma vigente.

Todavia, um paradigma só é superado se há outro apto a o substituir: é dizer que o fracasso de um paradigma só se opera na sua comparação com outro paradigma e na comparação dos dois com a realidade que se pretende explicar.

O novo paradigma não acrescerá o anterior, mas o lançará por terra, implicando a reconstrução da área de estudos, a partir de novos princípios científicos.

A transição para um novo paradigma é uma “revolução científica”32. Revolução científica, pois, é um episódio de desenvolvimento não-cumulativo, no qual um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por outro.

A adesão a um paradigma novo se dá pela fé, pela crença de que ele solucionará as anomalias não resolvidas pelo paradigma antigo.

O cientificismo e o estatismo são as principais características do chamado antropocentrismo jurídico33 e do Estado-Nação moderno.

Diz-se que a Ciência Moderna apóia-se sobre o cientificismo porque a “modernidade” representa a ascensão do sujeito atomizado racional como centro do pensar, que deve se apropriar da natureza em nome do progresso, e deve se utilizar de certezas científico-matemáticas para criar métodos exatos de apreensão do real.

Igualmente, o Direito se pretende universal, geral, abstrato, que contenha em si todos os conteúdos possíveis da vida concreta: enfim, pretende-se matemático. O positivismo jurídico é a melhor forma de representar essa maneira de pensamento moderno jurídico.

O modelo de Direito da Modernidade, com efeito, não se converteu nas promessas de liberdade, igualdade e fraternidade, e as pretensas soluções universais, racionais e instrumentais só admitem solução dentro do próprio modelo – com exclusão de tudo aquilo que nele não se cogita. Dessarte, no escólio de Thomas Khun34, as anomalias se apresentaram. No que é relevante ao vestibular estudo, são exemplos das anomalias que o paradigma da Modernidade não absorveu:

    Não realização dos direitos de igual participação política para todas as pessoas, como no caso de mulheres, negros, campesinos e indigenistas (não realização de direitos básicos de primeira dimensão);

    Não realização, ou realização deficitária de direitos prestacionais básicos, como direitos sociais à saúde, seguridade social, assistência social, emprego, etc. (não realização de direitos de segunda dimensão) e

    Sensível diminuição na qualidade de vida e na dignidade de muitas pessoas devido a mudanças climáticas e ambientais, precipitadas pela ação depredatória do homem sobre a natureza, o que redunda em viver em cidades poluídas, em encostas sujeitas a desabamentos, submetidas a riscos de epidemias veiculadas por animais banidos de seu habitat natural, sob a espada de Dámocles do risco de grandes alagamentos, sem qualquer mobilidade urbana, para se enumerar apenas algumas anomalias (não realização de direitos de terceira dimensão).

O fato é que o sujeito atomizado racional, centro do pensar, que se apropria da natureza em nome do progresso, e que se utiliza de certezas científico-matemáticas para a explorar não conseguiu prover a um gigantesco número de pessoas condições mínimas de viver com dignidade, nela incluída o direito ao meio ambiente são, que mesmo no paradigma da modernidade se apresenta como o principal instrumental para se prover uma vida com qualidade a um grande número de pessoas.

Veja-se que, consoante um estudo impactante, minucioso e bem detalhado, inclusive ilustrado com eventos reais, feito por Sílvia Saito35, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE, no ano de 2007, verificaram-se 417 desastres naturais, que fizeram 16847 mortos, atingiram outros 211.000.000 de pessoas (que perderam bens materiais, ficando desabrigadas, doentes ou feridas) e custaram U$75.000.000.000,00.

A modernidade que labora nos paradigmas racionalista, economicista e cientificista, com todo seu arrojo, excluiu de suas conquistas de qualidade de vida um número considerável de pessoas. Consoante estudo de Sílvia Saito36, 211 milhões de pessoas privadas de sua dignidade são uma anomalia que o paradigma vigente não conseguiu corrigir, se é que disso se ocupou efetivamente, porquanto essa mesma modernidade entende legítimo intervenções humanitárias37, ou seja, ainda labora sob postulados utilitaristas, em que a vida humana pode ser transformada em meio para a obtenção de proveito para uma “maioria”.

Posta a crise paradigmática da modernidade, será que se pode apresentar um modelo capaz de o substituir?

Em primeiro lugar, cumpre frisar que a modernidade falhou porque empregou racionalidades que promoveram a exclusão de milões, quiçá bilhões, de seres humanos de suas conquistas.

Para substituir o paradigma em falência, mister que sejam suplantadas suas racionalidades com outras maneiras de pensar, donde se insere o ecocentrismo, com o reconhecimento de um valor intrínseco à natureza.

Primeiramente, para superar as exclusões, marginalizações e dominações impostas pela modernidade, ou colonialidade, nos escólios de Boaventura de Souza Santos38, é necessário trabalhar com a sociologia das ausências, de molde a chamar à construção de espaços comuns de diálogo as populações marginalizadas, excluídas e dominadas. Isso se faz no desiderato de procurar respostas para os problemas que a modernidade não resolveu.

Consoante já anotado, o resgate da ética andina se propõe a resgatar um conceito de relação entre homem e natureza que não se baseia em uma lógica de dominação, mas de respeito mútuo, reconhecimento e simbiose.

Aplicando-se tal nova maneira de ver o mundo ao direito, propõe-se um paradigma constitucional ecossocial, da maneira como esboçada e levada à efeito na Constituição equatoriana de Montecristi.

Por meio desse novo paradigma, as ideias de direito à propriedade e iniciativa econômica serão embasadas pela sua função social e ecológica. Propõe-se que os direitos humanos clássicos da tradição moderna sejam relidos á luz do reconhecimento dos direitos da natureza.

O ecocentrismo combate a sociedade da propriedade, como preconizado por Vandana Shiva39, tratando o patrimônio biológico e intelectual coletivo como bens comunais, porquanto é necessário assentar-se uma nova maneira de ver o mundo baseada no diálogo e no pluralismo, a fim de se evitar exclusões e marginalizações que, tal qual se opera com a agricultura baseada em um só gênero (monocultura), empobrecem a existência humana.

Pode-se estabelecer o diálogo entre saberes e se reconhecer verdades e realidades diversas (inclusive da natureza, reconhecida como sujeito, com os homens) através da consideração de que o homem é o único ser capaz de reconhecer outros conhecimentos, o que traduz uma aposta pelo humano, genuína fé antropológica40. Se o homem é capaz, por que não fazê-lo, sobretudo considerando a perspectiva de empobrecimento do pensamento que o não-reconhecimento gera?

O paradigma ecocêntrico labora na perspectiva de complementaridade entre direitos da natureza e direitos humanos, o que implica a superação da visão dicotômica hierarquizada da modernidade.

São características do novo paradigma ecocêntrico:

    pluralismo jurídico e pluralismo epistemológico (enunciação de que não há hierarquia entre direitos estatal e não-estatal e de saberes científicos e tradicionais);

    proibição expressa de quaisquer formas de discriminação (inspirada na sociologia das ausências);

    reconhecimento da identidade cultural das minorias (com especial menção às culturas tradicionais que promovem uma releitura da relação entre homem e natureza);

    reconhecimento de grupos em situação de vulnerabilidade (reconhecimento da colonialidade);

    legitimação de novas figuras-direito (direito à água e à alimentação, considerando-se esses como bens comunais);

    reconhecimento de titularidade de direitos a pessoas coletivas (comunidades, povos e nacionalidades);

    reconhecimento de formas alternativas de desenvolvimento, que não se baseiam no modelo de produção em massa e consumo, mas sim no buen vivir, sumak kawsay, cuja visão de desenvolvimento implica uma visão de vida harmônica, saudável e plural com as demais pessoas e com a natureza e

    reconhecimento da natureza como sujeito de proteção.

As lutas sociais que modificaram as teorias de justificação da existência do Estado e da legitimação do Direito realizadas neste estudo, e as conquistas sociais que lhe são atreladas ou que lhe são causas, como o voto dos negros, das mulheres, dos analfabetos (reconhecimento de novos titulares de direitos políticos), reconhecimento de direitos sociais e de direitos coletivos/difusos, inclusive a novos sujeitos de direito, coloca em evidência uma contínua luta pelo reconhecimento de novos direitos, assim como de novos titulares de direitos (direitos a ter direitos).

Com efeito, o processo de reconhecimento de novos direitos e de novos titulares de de direitos tem mais um capítulo em seu desenrolar, que é justamente o reconhecimento da natureza como titular de direitos.

Tal qual aconteceu com negros, analfabetos, índios e mulheres, que outrora eram vistos como mercadorias, objetos de apropriação e domínio por parte sujeitos de direito, hoje, após diversas lutas sociais, os mesmos tiveram seu valor intrínseco reconhecido, sendo elevados à qualidade de sujeitos de direito. Veja-se que o reconhecimento do valor intrínseco desse sujeitos de direito operou-se por uma gradativa superação de uma visão dicotômica, hierarquizada e de exclusão, que não se sustentou diante de argumentos lógicos de emancipação.

O mesmo processo de emancipação agora se opera diante do reconhecimento da natureza enquanto sujeito de direitos. Intenta-se superar a visão binária, dicotômica e hierarquizada que aprisiona a natureza, enquanto mero objeto instrumental à satisfação das necessidades humanas. Isso implica que se deve desmistificar a visão de mundo que explica a realidade com espeque no simplismo sujeito cognoscente-objeto do conhecimento, sujeito esse ativo que conhece, transforma e explora o objeto, que é passivo e destinado a ser tomado como o sujeito melhor julgar.

A grande questão que se coloca é como reconhecer o valor intrínseco da natureza.

5 Proposta de fundamentos axiológicos dos direitos da natureza

Analisando a evolução das teorias de justificação da existência do Estado e da legitimação do direito, é de fácil inferência o fato de que a defesa dos direitos individuais foi sempre o foco das atenções. Os direitos individuais (políticos, de liberdades e sociais) têm como conteúdo e fundamento axiológico a defesa da dignidade humana, que, com efeito, implica o reconhecimento do valor intrínseco da vida humana.

Pode-se deduzir, ou reconhecer, a essa altura do estudo, que o fundamento axiológico dos direitos coletivos (difusos, coletivos stricto senso e individuais homogêneos) também repousa sobre o reconhecimento do valor intrínseco da vida humana, considerada sob uma perspectiva do coletivo, perspectiva essa que se verifica quando se observa que o somatório de interesses individuais fragmentários e possivelmente não-identificáveis em tais direitos coletivos age em sinergia e provoca uma dimensão nova de interesses, relacional, solidária e maior, advinda justamente desse despertar de solidariedade que faz o indivíduo reconhecer no outro a dignidade humana. Direitos coletivos são direitos humanos, sob a perspectiva de solidariedade.

Mas o que seria, então, valor intrínseco da vida humana?

Lucas Mateus Dalsotto e Odair Camati fazem uma interessante leitura das lições de Immanuel Kant, muito oportuna ao estudo ora empreendido, ressaltando que um elemento fundamental na análise kantiana sobre a dignidade humana repousa na distinção entre pessoa e coisa: um ser desprovido de razão possui um valor relativo, pode assim ser usado como meio e chama-se de coisa, enquanto os seres racionais, as pessoas, são fins em si mesmos, não podendo ser empregados como meios. “O ser racional ou a humanidade é fim objetivo, nunca podendo ser utilizado como meio, mas sempre como fim, já as coisas são fins subjetivos podendo então serem utilizadas como meios para que alcançarmos outros fins.”41

Dessarte, o valor intrínseco do homem decorre da razão, pois é ela que qualifica o homem como em si mesmo. Mas o que seria “razão”, qualidade ou virtude essa capaz de confinar uma existência a ser meio ou fim?

Primeiramente, Marilena Chauí42 adverte que a própria concepção “usual” de razão, inclusive a contida em dicionários de línguas, advém de uma visão racionalista hegemônica europeia, motivo pelo qual se deve tomá-la com reservas e de maneira contextual43.

O conceito de razão deve ser construído de maneira crítica, ou seja, considerando-se as “razões” de uma maneira plural, rechaçando-se de pronto um conceito de razão abstrato e universal, que se erige como verdadeiro dogma, e não instrumento de conhecimento44.

O fato é que a modernidade traz a palavra razão como sucedâneo de consciência da consciência (é o homo sapiens), negligenciando a noção de inconsciência (ou de não-consciente). Novamente em Chauí, vê-se que

A noção de inconsciente, por sua vez, revelou que a razão é muito menos poderosa do que a Filosofia imaginava, pois nossa consciência é, em grande parte, dirigida e controlada por forças profundas e desconhecidas que permanecem inconscientes e jamais se tornarão plenamente conscientes e racionais45.

Lado outro, os povos andinos percebem uma razão de ser nos processos naturais, na iteração entre os animais, entre eles e o mundo vegetal, as montanhas e os rios. Veja-se:

Diferentemente do pensamento ocidental moderno, não se trata de um mundo, uma natureza e um meio ambiente “objeto” com o qual o sujeito humano se relaciona, senão de um mundo que é em si mesmo sujeito, mais claramente, ser vivo, pessoa, e onde tudo o que o integra é por sua vez sujeito, ser vivo e pessoa, inclusive os solos, as águas, as pedras, os montes, as neblinas, as chuvas, os astros, os antepassados, as huacas -seres espirituais-, e por suposto os seres humanos, os animais e as plantas. Assim o mostra o denominado “Obelisco Tello”, uma huanca -pedra simbólica- achada no norte do Peru e correspondente à cultura pan-andina Chavín, de 4.000 anos; nela todos os seres: humanos, animais, plantas, montanhas, águas, astros, etc., têm olhos, ouvidos e boca; são seres vivos que trocam e conversam.46

O fato, já reconhecido e protegido pelos andinos, é que a natureza, como um todo, é capaz de um agir orientado a um fim: a criação, manutenção, desenvolvimento e renovação da vida.

Veja-se que se os próprios homens reconhecem “leis” da natureza, e utilizam seu conhecimento de tais para a domar e explorar, reconhecem, por subsecutivo lógico, a existência de uma “razão”, uma razão natural que se põe a serviço da razão humana, ironicamente para se permitir uma exploração extenuante.

Se a natureza é capaz de um agir ordenado (por leis naturais) orientado a um propósito (a criação, manutenção, desenvolvimento e renovação da vida), propósito esse que gentilmente contempla aos seres humanos, há de se lhe reconhecer uma razão (agir ordenado orientado a um propósito), e pois, um valor intrínseco, dignidade.

Tem-se, então, uma ética da natureza, uma cosmovisão que “concede um valor próprio à natureza (natureza como fim em si mesma) e busca ultrapassar as fronteiras da visão antropocêntrica, fazendo emergir uma nova ética, a ética da natureza”47.

6 Conclusão

Uma ética da natureza, que lhe reconhece valor intrínseco e, pois, fundamento axiológico próprio, muda o estatuto e o papel do ser humano: de conquistador e dominador da natureza passa a simples membro desta. Isso implica respeito pelos seus membros e respeito pela comunidade em si mesma.

Para a ética da natureza, essa e todos os seus habitantes constituem uma entidade moral. A espécie humana tem valor, mas é uma entre muitas espécies valiosas dessa comunidade terrestre. Nenhuma espécie tem, em princípio, mais direito a viver do que outra.

Por atribuir valor intrínseco não unicamente a seres vivos individuais, mas às totalidades que constituem essa comunidade maior que é a comunidade biótica, formada pela matéria orgânica e não orgânica e por todos os seres vivos, a ética da natureza tem um caráter holístico.

O que é objeto de consideração moral são essas entidades coletivas que não se reduzem à soma das partes que as constituem.

O conteúdo de uma dignidade da natureza reside, pois, em seu valor intrínseco, traduzido na capacidade de um agir orientado, ao que se acresce o fato de que tal agir prescinde totalmente da presença humana para ser levado a bom termo, ao passo que todo agir humano depende, em maior ou menor grau, da generosidade da natureza (não há consciência sem vida).

O reconhecimento de um valor intrínseco à natureza impõe aos seres humanos um sistema lógico comportamental do qual se depreende um dever de não abuso, materializado na prescrição de condutas que coíbam formas de exploração predatórias da natureza, entendendo-se por exploração predatória aquela que não lhe assegure a possibilidade de manutenção dos processos de criação, manutenção e transformação da vida. No caso de ação humana que atue nos limites do respeito aos direitos da natureza, deve-lhe ser assegurado o retorno, na medida do possível, ao estado anterior das coisas, incluindo replantio de mata nativa, reprodução de fauna nativa e cuidados com o solo. O dever de não abuso, com efeito, traduz-se no sumak kawsay andino, que é a procura pelo equilíbrio de convivência de todos aqueles que estão na pacha, no cosmo.

Na mesma linha, o valor intrínseco da natureza lhe confere um suporte axiológico capaz penetrar no imaginário sociocultural de uma coletividade (com sorte, de toda coletividade humana), viabilizando o reconhecimento, respeito e adesão prática aos direitos que possa a vir adquirir na ordem jurídica pátria, e dos que já possua em ordenamentos alienígenas (Bolívia e Equador). A penetração no imaginário coletivo do valor intrínseco da natureza opera-se através da constatação dos efeitos perniciosos da manutenção de um enfoque puramente antropocêntrico, tais como a escassez de água e comida, inundações, desertificações, epidemias, poluição do ar, dos rios e mares, que redundaram em um comprometimento das bases axiológicas do próprio modelo antropocêntrico, que não foi, e não é, capaz de proteger a vida digna do ser humano e sequer sua existência a médio prazo.

A autonegação do suporte axiológico do antropocentrismo o conduziu, inevitavelmente, a uma existência falaciosa: o antropocentrismo existe para exaltar o ser humano, colocá-lo na centralidade do agir, sendo o homem meio, método e fim em si mesmo, mas, ao incorrer em absolutismo axiológico, negligenciando o valor intrínseco da natureza, instrumentalizando-a, depredando-a e explorando-a à exaustão, houve por comprometer a existência digna do homem, sua razão de ser. É uma contradição inarredável.

Dessarte o reconhecimento da crise do antropocentrismo é indispensável para se iniciar a discussão acerca de alternativas de Direito, Estado, produção e cultura que viabilizem a sobrevivência dos seres humanos.

O combate eficaz à ameaça a existência humana, traduzida nos mais variados desastres naturais, inicia-se com o surgimento do paradigma ecocêntrico que, em substituição ao antropocêntrico, propõe uma revisão das relações dos seres humanos entre si e desses com a natureza, com uma abordagem solidária e holística.

Dentre as mudanças propostas pelo novo paradigma ecocentrista, a mais notável é o reconhecimento da natureza enquanto sujeito de direitos, o que se procurou demonstrar ser possível nesse ensaio, sob uma perspectiva ético-teórica, que, inclusive não negligencia os avanços filosóficos da modernidade, mas que, no entanto, não comete novamente a falha de os absolutizar e universalizar. Dentro do especial colorido da ordem jurídica pátria, é possível cogitar que uma alteração no artigo 225, da Constituição da República de 1988, poderia dar início a uma nova era de consagração dos direitos da natureza, no que se sugere a seguinte redação:

Art. 225. Todas as formas de existência têm direito a um ecossistema equilibrado, bem comunal e universal da humanidade, insuscetível de apropriação, essencial aos processos de criação, manutenção, reprodução e transformação da vida, impondo-se a todos, o dever de respeitá-lo, defendê-lo e preservá-lo.

A conclusão que emerge deste trabalho é a de que o respeito à natureza garantirá a sobrevivência do homem, e tal respeito só será possível se forem reconhecidas outras formas de vivenciar a relação com a natureza, que não a antropocêntrica, que se apresenta exaurida de efetividade, coerência, suporte axiológico e prático. Nesse especial e importante desiderato, cumpre imergir a humanidade na pacha, no cosmos, em uma concepção holística que veja homem e natureza como unidade e veja os homens, entre si, como iguais.

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[Recebido: Dez. 12, 2016; Aceito: Mar. 31, 2017]

DOI: https://doi.org/10.18256/2238-0604.2018.v14i1.1685

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