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Reflexos da proibição de retrocesso na efetividade dos direitos sociais: limites aos limites dos direitos sociais na deflagração de crise econômica

Reflections of the prohibition of social retrogression in the effectiveness of social rights: limits to the social rights limits during an economic crisis deflagration

Rogério Luiz Nery da Silva(1); Cristiane Brum do Santos(2);

1 Doutor em Direito. Pós-doutor pela Université de Paris X e pela New York Fordham School of Law. Professor do mestrado da Universidade do Oeste de Santa Catarina - UNOESC.
E-mail: [email protected]

2 Mestranda na Universidade do Oeste de Santa Catarina - UNOESC. Servidora do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
E-mail: [email protected]

Resumo

O presente trabalho tem por tema a efetividade dos direitos sociais e como recorte central a sua vulnerabilidade no cenário de severa crise econômica estatal. Elege-se como problema de pesquisa o risco de perecimento das prestações jurídicas sociais indispensáveis, enfrentando os desdobramentos da proibição de retrocesso na proteção e na efetividade dos direitos sociais. A pesquisa se justifica pela atual conjuntura política e econômica do Brasil, que gradativamente repercute no âmbito de proteção dos direitos sociais. A estrutura do trabalho compreende, em um primeiro momento, uma retomada histórica do reconhecimento dos direitos humanos, dos direitos fundamentais e dos direitos sociais; em seguida, investiga-se a dimensão de efetividade dos direitos sociais com enfoque no princípio da proibição de retrocesso e, por fim, são examinados os reflexos do princípio nominado na proteção e efetividade dos direitos sociais em ambiente de severa e indiscutível crise econômica. Para o desenvolvimento desta pesquisa de natureza qualitativa e bibliográfica, aplicou-se o método dedutivo.

Palavras-chave: Direitos Fundamentais. Direitos Sociais. Efetividade dos Direitos Sociais. Proibição de Retrocesso. Crise Econômica.

Abstract

This essay takes for issue the effectiveness of social rights and focus a central view on their vulnerability in the scenario of a severe state economic crisis. It is adopted, as the main research problem, the risk of perishing of indispensable social services, facing the unfolding of prohibition of social retrogression in the protection and effectiveness of social rights. The research is justified by the current political and economic conditions in Brazil, which gradually affects the scope of protection of social rights. The labor structure comprises, at first, an historical revival of recognition of human rights, fundamental rights and social rights; then it is investigated the extent of effectiveness of social rights, focusing on the principle of prohibition of social retrogression and, finally, the consequences of this so called principle on the protection and in the effectiveness of social rights under severe conditions and indisputable economic crisis are examined. To develop this research, it is adopted the qualitative and bibliographical enforcement, applied the deductive method as well.

Keywords: Fundamental Rights. Social Rights. Effectiveness of Social Rights. Prohibition of Social Retrogression. Economic Crisis.

1 Introdução

Na ciência da Economia, o desequilíbrio entre as receitas e as despesas motiva a realização de contingenciamentos e cortes nos compromissos financeiros assumidos. O ajuste das contas presume a manutenção das despesas essenciais e indispensáveis e a revisão, limitação ou eliminação das consideradas supérfluas e daquelas pouco ou moderadamente necessárias.

Em se tratando de crise econômica instalada em um país, as diretivas adotadas seguem na mesma direção e, historicamente, os direitos sociais e as prestações jurídicas decorrentes, assim como o próprio fundamento da Justiça Social, tornam-se frequentes alvos do plano gerencial de contingenciamento. Essas diretivas podem parecer um contrassenso, pois é justamente nesses períodos que as prestações sociais são fundamentais para a garantia do mínimo vital a uma parcela considerável da população.

Dentre as problemáticas que emergem da relação entre direitos sociais e escassez de recursos, a exemplo da reserva do possível e da judicialização das políticas públicas, revela-se controvertido em que medida os direitos sociais podem sofrer limitação sob o prisma da proibição de retrocesso. Isso porque não é plausível e verossímil, a partir dos primados do ordenamento jurídico brasileiro, que todo e qualquer direito fundamental, seja ele civil, seja ele social, submeta-se a um processo de total disposição, a critério do legislador infraconstitucional e do poder público.

Para tanto, a estrutura da pesquisa foi idealizada em três partes. A primeira delas, materializada na seção introdutória deste trabalho, buscou delinear a dogmática dos direitos humanos e fundamentais, a partir de uma revisão histórica de seu reconhecimento, com enfoque nos direitos sociais e no seu âmbito de proteção.

Na segunda parte, foram objeto de análise os contornos relativos à eficácia e efetividade da norma de direito fundamental, assim como a concepção doutrinária da proibição de retrocesso. A terceira e última seção tratou da relação entre a efetividade dos direitos sociais e a deflagração de crise econômica, problematizando o risco de perecimento das prestações jurídicas sociais e identificando os reflexos da proibição de retrocesso na proteção e na efetividade dos direitos sociais.

Registre-se, oportunamente, que a pesquisa foi desenvolvida a partir do método dedutivo, mediante pesquisa de natureza qualitativa e de caráter exploratório.

2 Desenvolvimento

2.1 O reconhecimento dos direitos e o âmbito de proteção dos direitos sociais

A concepção de que o homem, em razão de sua humanidade, possui direitos que lhe são inerentes e devem ser objeto de proteção em face de terceiros e do próprio Estado remete à Grécia Antiga. Desde os primórdios, a civilização demonstra preocupação em assegurar e resguardar direitos, ainda que reconhecidos a um número restrito de titulares.

Conforme Comparato, é no período axial, entre os séculos VIII e II a.C., quando o homem começa a construir o conhecimento a partir de sua racionalidade e se desvincula da explicação mitológica do mundo, que se desvelam os primeiros contornos dos direitos humanos1. É justamente em Atenas, o berço da democracia, que o homem passa a compreender o outro como igual em direitos e obrigações.

Valendo-se da retrospectiva histórica de Aith, é possível relacionar alguns períodos importantes para a evolução dos direitos humanos2. Tem-se que a escola estoica, referencial tanto para o Direito Romano quanto para o pensamento medieval e para o próprio positivismo, concebia o direito do homem como um direito natural, oriundo da divindade, imutável e eterno. Já na Era Medieval, o fundamento do direito centrava-se na figura de um Deus, sendo o direito, então, natural, resultado da vontade divina.

Como reflexo de um período de transição, em que Estados absolutistas sucederam o poder da Igreja Católica na Idade Média e, portanto, descaracterizou-se a fundamentação divina do direito natural, despontou o movimento jusnaturalista. Essa teoria pretendia justificar os direitos do homem a partir de sua racionalidade, tratando-se de direitos inerentes ao ser humano.

Nos últimos séculos da Era Moderna, o desenvolvimento da concepção de direitos ganhou novos capítulos, especialmente a partir da Revolução Francesa e da Declaração dos Direitos do Homem do Cidadão, reconhecida e declarada pela Assembleia Nacional em 1789. Com efeito, Bobbio concebe a Declaração como paradigmática no posicionamento dos direitos dos governantes e dos governados, sendo a primeira carta de direitos a inverter essa relação, estabelecendo em primeiro lugar os direitos e, em um segundo momento, o dever dos governos em garanti-los3.

A título de desfecho da análise histórica dos direitos humanos, deve ser rememorada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948. O documento de 30 artigos firmado pelos países-membros da Organização das Nações Unidas, à exceção da União Soviética, Ucrânia, Rússia Branca, Tchecoslováquia, Polônia, Iugoslávia, Arábia Saudita e África do Sul, emergiu como recomendação às nações, objetivando firmar o tema de direitos humanos a partir do seu reconhecimento universal4.

Superado esse aspecto, passa-se ao exame da dogmática. Para tanto, adotar-se-á a classificação de direitos humanos e direitos fundamentais desenvolvida por Sarlet, segundo a qual a distinção está assentada no âmbito da positivação5. Para o autor, os direitos humanos seriam aqueles reconhecidos e positivados em documentos internacionais, outorgados a todas as pessoas, independentemente do tempo e do povo a que pertencem, ao passo que os direitos fundamentais se constituiriam naqueles positivados no ordenamento constitucional interno de cada Estado.

A compreensão dessa terminologia se mostra relevante para os estudos em tema de direitos do homem, diante da necessidade de destacar os direitos de todos a humanidade, ao menos em tese, dos direitos assegurados em âmbito interno de cada país. Pontual, contudo, a observação de que não há na doutrina um conceito de direito humano e de direito fundamental.

Em tema de direitos fundamentais, é corrente a diferenciação entre direitos fundamentais civis e direitos fundamentais sociais. Isso porque, em alusão aos primados da Revolução Francesa, entende-se que os direitos se subdividiram em direitos à liberdade, à igualdade e à fraternidade e, por conseguinte, em gerações ou dimensões de direitos.

Na lição de Sarlet, é preferível a expressão “dimensões” em lugar de “gerações”, pois a primeira afastaria uma possível contradição causada pela segunda, no sentido de que haveria uma perda, uma substituição dos direitos a cada geração6. Com efeito, Silva defende que a ideia de dimensão não representaria uma exclusão ou sobreposição de direitos, mas, em verdade, uma soma, uma complementariedade7.

Nesse sentido, Torres recorda que a tese da indivisibilidade dos direitos humanos ganha força no constitucionalismo internacional desde a década de 90, inexistindo, portanto, dissociação entre direitos civis e direitos sociais, diante da sua unicidade8. Tal é a concepção de Piovesan, que afirma que a Constituição Federal de 1988 albergou o princípio da indivisibilidade e interdependência dos direitos fundamentais, sendo descabido o divórcio dos direitos de liberdade dos direitos de igualdade9.

Em sua distinta obra Teoria dos Direitos Fundamentais, Alexy parte do princípio do direito subjetivo enquanto um supraconceito para posições jurídicas distintas entre si e usa a classificação proposta por Jeremy Bentham para definir as posições como direitos a algo, liberdades e competências10. Trata do direito subjetivo a algo, em que há uma relação triádica entre o titular do direito, o portador e o objeto da ação, que se trata sempre de uma ação do destinatário, seja esta positiva, seja esta negativa. Assim, na lição do jurista alemão, a partir do objeto do direito é possível categorizar os direitos fundamentais em direitos fundamentais a ações negativas e direitos fundamentais a ações positivas em face do Estado.

Segundo a teoria, os direitos a ações negativas, ou direitos de defesa, podem ser classificados em “direitos ao não-embaraço de ações”, “direitos à não-afetação de características e situações” e “direitos à não-eliminação de posições jurídicas”. Quanto ao primeiro grupo, de “direitos ao não-embaraço de ações”, compreende os direitos a que o Estado não dificulte ou impeça ações dos titulares do direito. Já o segundo grupo, de “direitos à não-afetação de características e situações”, alberga direitos a não alteração de caraterísticas e situações do titular do direito. Por fim, quanto ao terceiro grupo, de “direitos à não-eliminação de posições jurídicas”, compreende direitos a que o Estado não elimine posições jurídicas do titular do direito11.

Noutro vértice, os direitos a ações estatais positivas, na teoria alexyana, compreendem ações positivas fáticas (ou direitos a prestações em sentido estrito) e ações positivas normativas (direitos a prestações em sentido amplo, direitos a que o Estado crie normas)12.

A classificação desenvolvida por Sarlet acompanha a teoria de Robert Alexy13. Para o primeiro, poder-se-ia falar em direitos fundamentais de defesa e direitos fundamentais a prestações e, em uma segunda subdivisão, em direitos fundamentais a prestações em sentido amplo e direitos fundamentais a prestações em sentido estrito.

Depreende-se dessa classificação a amplitude do âmbito de proteção dos direitos comumente denominados civis e sociais. No caso destes, em especial, trata-se de direitos cujas posições jurídicas podem apresentar um cunho positivo e/ou negativo, de modo que, no ordenamento constitucional interno, o catálogo de direitos sociais da Constituição Federal alberga posições jurídicas prestacionais e de defesa, sendo, portanto, heterogêneos14.

Vale, aqui, registrar o conceito de direitos a prestações em sentido estrito da teoria alexyana: “[...] são direitos do indivíduo, em face do Estado, a algo que o indivíduo, se dispusesse de meios financeiros suficientes e se houvesse uma oferta suficiente no mercado, poderia também obter de particulares”15.

Os direitos fundamentais sociais consubstanciam-se em elementos possibilitadores do primado da justiça social do Estado de Bem-Estar Social (Welfare State). Para Silva, o Estado mínimo, liberal, de não intervenção nos direitos de defesa, dá lugar ao Estado interventor, ingerindo na esfera econômica para a promoção dos programas e metas sociais, após os horrores vivenciados no início do século XX16.

2.2 Os direitos sociais no plano da efetividade e a proibição de retrocesso

No exame da dogmática dos direitos sociais no plano constitucional interno, detém especial relevância o estudo da sua efetividade. Isso porque se concebe comumente que a proteção, garantia e realização das prestações jurídicas sociais estariam condicionadas às possibilidades fáticas e jurídicas do Estado e, por conseguinte, que as limitações orçamentárias seriam severos entraves na consecução desses objetivos constitucionais.

Na lição de Barroso, a efetividade, assim entendida a materialização do direito ou o cumprimento da ordem consubstanciada na norma, passa a ter relevo no ordenamento constitucional pátrio na medida em que a Constituição Federal e seus dispositivos são interpretados sob o prisma da doutrina da efetividade17.

Em conformidade com esse movimento, que emergiu no processo de redemocratização do Estado brasileiro, a Constituição Federal deixou de ser um documento de meras intenções, dissociado da realidade, para se fazer presente no mundo dos fatos, materializando seus dispositivos em um verdadeiro dirigismo constitucional. A doutrina da efetividade ratifica o ideal de uma força normativa da Constituição Federal de 1988, a partir da qual se deve prezar pela maximização dos efeitos dos dispositivos constitucionais.

O conteúdo da doutrina da efetividade e do princípio da força normativa foram objeto de positivação no texto constitucional18, admitindo-se, para esse entendimento, a estreita relação entre os institutos da aplicabilidade e da efetividade, pois o dispositivo constitucional garantiu aos titulares de direitos e garantias fundamentais a aplicabilidade imediata destes. Para Piovesan, a Constituição estabelece com esse princípio um regime jurídico próprio para os direitos, liberdades e garantias fundamentais, a partir do destaque a sua força normativa, imperatividade e eficácia máxima e imediata, competindo aos poderes públicos assegurar19.

Por seu turno, Sarlet defende uma aplicabilidade imediata extensível a todos os direitos fundamentais, não só àqueles que compõem o rol da Constituição, destacando seu caráter principiológico, como um “mandado de otimização”20, concepção que tem origem na distinção entre regras e princípios formulada por Robert Alexy em sua obra Teoria dos Direitos Fundamentais21.

Em conformidade com a clássica distinção formulada por Silva, a vigência, validade (legitimidade) e eficácia da norma compõem uma condição geral de aplicabilidade das normas constitucionais, em razão do que deve a norma existir, ser válida e eficaz no ordenamento jurídico para ser aplicável22. O jurista vislumbra a aplicabilidade e a eficácia como expressões muito próximas, estando a aplicabilidade condicionada à eficácia, assim como a premissa inversa. Noutro vértice, Barroso concebe a efetividade como um quarto plano das normas, até então pouco explorado, consideradas a existência (ou vigência), a validade e a eficácia23.

A partir dessa linha argumentativa, tem-se que a eficácia da norma se diferencia nos planos jurídico e social. Na lição de Sarlet, a eficácia jurídica compreende a capacidade de a norma produzir efeitos no mundo jurídico, constituindo-se em pressuposto para a eficácia social da norma, a qual alberga a realização efetiva do programa normativo24. Na esteira do pensamento do autor, para ser eficaz na dimensão concreta a norma deve estar apta a produzir efeitos jurídicos.

Silva, por outro lado, enfrenta a polêmica distinção entre eficácia e efetividade, asseverando que a eficácia jurídica está diretamente relacionada aos elementos que compõem a condição geral de aplicabilidade, enquanto que a eficácia social compreende a realização, ainda que parcial, dos objetivos previstos pela norma25.

Do exame da problemática da efetividade a partir das espécies de direitos fundamentais, é indene de dúvidas que o plano de efetividade dos direitos de defesa prescindiria de maiores digressões. Tratando-se de normas de alta densidade, sua capacidade para a produção dos principais efeitos jurídicos é imediata, prescindindo, notadamente, da intervenção legislativa.26

Por outro lado, as normas que positivam prestações jurídicas sociais, de cunho programático, gozam de uma relativa densidade, em uma normatividade mínima que requer a intervenção legislativa para o alcance pleno dos objetivos da norma.27

Nesse ponto, é digno de nota o pensamento de Mello, para quem os direitos sociais, aqueles direitos voltados à realização da Justiça Social, tem capacidade para produzir efeitos jurídicos de forma imediata, muito embora se diferenciem dos demais direitos pelas cargas eficaciais28.

Em análise última da problemática, é possível afirmar a relação umbilical entre a eficácia jurídica e social dos direitos sociais e a sua expressão econômica. Conquanto parte da doutrina sustente a dimensão positiva de todos os direitos fundamentais, de modo que os direitos de defesa também representariam custos financeiros para o Estado, a problemática ganha corpo nos direitos a prestações, isso porque sua realização depende significativamente da alocação de recursos.

Imperiosa a ressalva formulada por Torres, para quem a doutrina da efetividade dos direitos sociais representa um legado do constitucionalismo social-democrata alemão das décadas de 50 e 70, em um período de grande crescimento econômico ocidental, assim como do dirigismo constitucional português de J. J. Gomes Canotilho29. Afirma que, no entanto, a queda do Muro de Berlim em 1989 foi paradigmática para a transição da concepção da máxima efetividade para a tese da indivisibilidade dos direitos humanos.

Em tema de efetividade dos direitos sociais, merece ser objeto de análise a proibição de retrocesso. Entender o conceito e o alcance deste princípio se justifica em virtude do frequente esvaziamento da eficácia e efetividade dos direitos sociais a partir de medidas retrocessivas estatais, especialmente em períodos de crise econômica.

O princípio da proibição ou vedação de retrocesso é resultado da dogmática jurídico-constitucional que vislumbra o âmbito de proteção, os limites e os limites aos limites dos direitos fundamentais como três características importantes para a realização dos direitos. Na mesma linha de Goldschmidt, o reconhecimento de que os direitos fundamentais não se sujeitam a uma disponibilidade absoluta, ao critério do legislador ou do administrador público, atesta a necessária efetividade preconizada pelo constitucionalismo dirigente30.

Como legado do ordenamento jurídico alemão31, a proibição de retrocesso foi concebida a partir de uma interpretação extensiva do direito à propriedade (artigo 14 da Grundgesetz), segundo a qual as prestações jurídicas sociais reconhecidas ou conferidas legalmente, e desde que vitais à existência, revestem-se de um caráter patrimonial, incorporando-se ao patrimônio jurídico do titular.

No caso brasileiro, o plano constitucional não alberga o necessário tratamento jurídico em tema de limites e de limites aos limites dos direitos fundamentais, apresentando apenas a previsão de reservas de lei e as cláusulas pétreas. Sarlet32, no entanto, valendo-se da doutrina majoritária, defende que o ordenamento jurídico albergou a proibição de retrocesso, na qualidade de um princípio não expresso, implícito.

Isso porque o cânone da progressividade dos direitos econômicos, sociais e culturais foi recomendado aos países pelo Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais3334, adotado pela ONU em 1966, e pela Convenção Americana de Direitos Humanos, comumente conhecida como Pacto de São José da Costa Rica35.

Na esteira dos Pactos, Bühring sustenta que o princípio da proibição de retrocesso está diretamente relacionado à proteção, promoção e progressiva realização dos direitos sociais, estando impossibilitado o retorno a um grau anterior de concretização da Justiça Social, preservando-se as conquistas alcançadas pela sociedade36.

No caso concreto, em que o direito social suporta redução ou eliminação de seu objeto jurídico em razão de uma medida retrocessiva, Sarlet sustenta que deve ser ponderado, na análise da medida frente à proibição de retrocesso, a proteção da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial, bem como dos primados da segurança jurídica e da confiança37.

Do enfrentamento do tema pelo jurista, infere-se que a doutrina pátria concebeu, majoritariamente, a estreita relação entre proibição de retrocesso e segurança jurídica, não se encontrando, entretanto, todas as conquistas sociais ao abrigo desse princípio. Fica, por outro lado, resguardado o núcleo essencial do direito fundamental, consubstanciado no mínimo existencial e na necessária proteção da dignidade da pessoa humana.

2.3 Reflexos da proibição de retrocesso na proteção e na efetividade dos direitos sociais na deflagração de crise econômica

Em âmbito jurídico interno, é possível deduzir que a doutrina da efetividade encontra amparo no modelo estatal intervencionista. O Estado de Bem-Estar Social, voltado à realização da Justiça Social, compromete-se com a concretização do âmbito de proteção das normas de direitos sociais, efetivando o conteúdo do texto constitucional a partir da proteção e promoção das prestações jurídicas sociais.

Conforme recorda Silva, a realização do Welfare State requer atenção aos seus dois papeis: o primeiro compreende a necessidade de ingerir na economia estatal para direcioná-la ao cumprimento dos objetivos e metas sociais; o segundo, por sua vez, diz respeito ao seu encargo, a sua responsabilidade na materialização das prestações sociais mínimas aos que delas necessitarem38.

Conquanto seja louvável o compromisso estatal com o bem-estar de seu povo, é nítido, pois, que a aclamada Justiça Social está condicionada à disponibilização e alocação de recursos financeiros. A efetividade da norma constitucional que preconiza um direito social depende que o Estado possa dispor de determinado valor de seu orçamento para garantir a igualdade material da coletividade39.

Assim, certo é que na deflagração de crise econômica, marcada pelo decréscimo da produção, pelo desemprego e inflação, o Estado de Bem-Estar Social enfrenta um cenário de desequilíbrio entre os compromissos financeiros assumidos e a capacidade financeira para custeá-los, em razão do que a concretização do ideário da Justiça Social suporta risco de perecimento. Fatores como o aumento generalizado dos preços, diminuição da competitividade na indústria e limitação do aporte orçamentário refletem comumente na adoção de medidas gerenciais pelo governo, a partir de políticas econômicas para o contingenciamento e eliminação de despesas.

Consoante Wiggers40, o cenário de crise ao qual se refere o presente trabalho compreende o déficit público, que revela “[...] a incapacidade de agregar valores em termos macroeconômicos, representando um resultado orçamentário negativo na análise das Receitas menos as Despesas”. Trata-se de um endividamento público, em que o Estado não dispõe de recursos para fazer frente aos seus compromissos financeiros.

Nesse ponto, interessa registrar a concepção de Sarlet, para quem a pós-modernidade vivencia não só uma crise em âmbito econômico, mas também de efetividade e de confiança, refletindo tanto no ideal do Welfare State quanto na própria Democracia e, por conseguinte, na efetividade dos direitos sociais41. Em havendo menos recursos para a manutenção das conquistas sociais, o próprio dirigismo constitucional e o ideal de efetivação dos direitos sociais ficam em descrédito perante a coletividade.

Entretanto, mostra-se forçoso concluir que é justamente nos períodos de crise econômica, em que o desamparo atinge uma parcela mais expressiva da população, que se faz necessário promover e garantir as prestações jurídicas sociais. Na destacada lição de Alexy, “a extensão do exercício dos direitos fundamentais sociais aumenta em crises econômicas. Mas é exatamente nesses momentos que pode haver pouco a ser distribuído. [...]”42.

A deflagração da crise geralmente requer uma atenção destacada às demandas previdenciárias e trabalhistas, pois o trabalhador, sujeito ao desamparo pela instabilidade do mercado de trabalho, depende dos benefícios e garantias sociais para fazer frente ao custeio das suas demandas por determinado tempo.

A recessão econômica experimentada pelo Brasil foi identificada em relatório promovido pela Organização das Nações Unidas, segundo o qual há uma tendência mundial de perspectivas pessimistas na atividade econômica dos países a se prolongar até o ano de 201743. Colhe-se do relatório que a severa crise política, o aumento dos índices de inflação, o déficil fiscal e a elevação da taxa de juros refletiram sobre o consumo da população e na confiança do empresariado, agravando a recessão inicialmente esperada no ano de 2016, com perspectivas de crescimento de 0,2% para 2017, mediante adoção de medidas políticas e econômicas.

Naturalmente, o período econômico vivenciado forçou o governo federal a um reajuste do planejamento orçamentário, partindo da perspectiva de que a retomada do crescimento depende da alocação restritiva dos recursos. Nessa linha, desde a deflagração da corrente crise econômica, medidas de cunho retrocessivo foram adotadas ingerindo inclusive sobre conquistas sociais previdenciárias e estabelecendo parâmetros de custeio das demandas por prestações.

Historicamente, o sistema jurídico da seguridade social suporta certa responsabilidade pelo esgotamento dos cofres públicos e endividamento do Estado. A demanda populacional por bens jurídicos de saúde, assistência e previdência social é ilimitada e ainda que parte das prestações seja custeada pelo próprio beneficiário, no caso do sistema previdenciário, a capacidade estatal de manutenção dessas conquistas sociais pode ficar comprometida, especialmente em momentos de crise econômica. Bem por isso, a seguridade social é alvo frequente de posturas retrocessivas44.

A questão que emerge da conjuntura delineada, quando um governo fundamenta a redução ou eliminação de prestações jurídicas sociais nas restrições orçamentárias oriundas de crise econômica, concerne à efetividade dos direitos sociais. Em que medida estariam os direitos sociais ditos prestacionais salvaguardados da manus governamental?

Para garantir a efetividade dos direitos sociais e promover sua progressividade, nos termos dos Pactos internacionais destacados neste trabalho, oponível o princípio da proibição (ou vedação) de retrocesso social em face de medidas de cunho regressivo. Esse princípio concretiza o primado de efetividade das normas constitucionais e obsta que os atores governamentais simplesmente deixem de cumprir os anseios da Constituição Federal sob a justificativa de que não há disponibilidade orçamentária.

A salvaguarda dos direitos sociais pelo princípio da proibição do retrocesso não impossibilita que determinadas metas sociais sejam revistas. Em verdade, na lição de Sarlet, o princípio se volta à proteção do núcleo essencial dos direitos sociais, sem esquecer a máxima de efetividade dos direitos sociais45.

Desarrazoada, portanto, a concepção de que a existência de limites aos limites dos direitos fundamentais representaria uma vedação absoluta a qualquer modificação no conteúdo dos direitos sociais. O dinamismo social, econômico e estatal requer uma certa margem de liberdade ao legislador, notadamente em tema de seguridade social.

De acordo com o princípio da proibição (ou vedação) de retrocesso e do cânone da progressividade, o princípio reflete necessariamente a dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial, em atenção aos primados da segurança jurídica e da proteção da confiança.

A proibição de retrocesso se revela, portanto, um importante mecanismo para a efetividade dos direitos sociais, quando resguarda o núcleo essencial dos direitos e, por via reflexa, a dignidade da pessoa humana, pautando-se na segurança jurídica e na proteção da confiança. Trata-se, em verdade, de um instrumento constitucional que restringe a capacidade do legislador de limitar o âmbito de proteção das conquistas sociais, dotada de relevância, em especial, em momentos de crise econômica estatal.

3 Considerações finais

Em um contexto socioeconômico marcado pelo endividamento público e pela sujeição de uma parcela representativa da população a uma vulnerabilidade social, a proteção, efetividade e a própria existência dos direitos sociais torna-se comumente pauta de discussão, no sentido de direitos absolutos ou restringíveis total ou parcialmente.

O momento histórico repercute no processo de reconhecimento dos direitos, conquanto não se trate de um fenômeno recente. Estudos comprovam que a preocupação da pessoa humana com o cerne e o conteúdo dos direitos tem início na Grécia Antiga.

Em verdade, no caso específico dos direitos sociais, verifica-se sua relação umbilical com o próprio surgimento do Estado de Bem-Estar Social, que intervém na economia para possibilitar às camadas mais desprovidas da população a efetivação do direito fundamental à liberdade, a partir de uma igualdade material conferida por meio de prestações.

Balizado pela doutrina da efetividade e pelo constitucionalismo dirigente, o texto constitucional pátrio ordena que as normas de direitos fundamentais gozem da máxima efetividade, extensível, inclusive, aos direitos sociais. Desvalida, portanto, a concepção de normas programáticas, carentes de eficácia.

Aliada à concepção de efetividade deve se situar a representatividade financeira dos direitos sociais. Dado que a realização dos direitos sociais requer, em grande parte, a garantia e o fornecimento de prestações jurídicas, o condicionamento da realização desses direitos não pode estar dissociada da disponibilidade financeira dos cofres públicos e dos próprios custos desses direitos.

Entretanto, mesmo em períodos de deflagração de crise econômica, em que o endividamento público limita as possibilidades orçamentárias e a fragilidade social requer mais prestações jurídicas, a proteção e efetividade dos direitos sociais não deve ser descartada. Para tanto, o princípio da proibição de retrocesso foi albergado pelo ordenamento jurídico brasileiro e representa uma importante ferramenta jurídica à salvaguarda das conquistas sociais.

À guisa de conclusão, o princípio da proibição ou vedação de retrocesso, como um limite aos limites dos direitos fundamentais, tutela a gama de prestações jurídicas sociais conquistadas pelo povo brasileiro, ao obstar ao legislador, mesmo em situações de crise econômica, a possibilidade de eliminar ou suprimir totalmente os direitos, ficando resguardado o núcleo essencial, sob o prisma do princípio da dignidade da pessoa humana, da segurança jurídica e da confiança.

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[Recebido: Ago. 20, 2016; Aprovado: Ago. 04, 2017]

DOI: http://dx.doi.org/10.18256/2238-0604/revistadedireito.v13n2p120-136

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