10-1155 - Cópia

Afinal, é usuário ou traficante? Um estudo de caso sobre discricionariedade e ideologia da diferenciação

After all, user or drug dealer? A case study about discretionary power and differentiation ideology

Vitória Caetano Dreyer Dinu(1); Marília Montenegro Pessoa de Mello(2)

1 Mestra pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Bolsista da CAPES/PROSUP. Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia.
E-mail: [email protected]

2 Doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Professora de Direito Penal e Criminologia da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia.
E-mail: [email protected]

Resumo

Como se dá, na prática, a diferenciação entre o usuário e o traficante? Tendo por ponto de partida esta pergunta, o presente trabalho analisa como se deu a construção desses estereótipos a partir da ideologia da diferenciação; busca compreender a legislação brasileira atinente à problemática; e efetua um estudo de caso de sentença elucidativa, vez que evidencia as dificuldades de interpretação envolvendo a dicotomia usuário/traficante. Para tanto, ter-se-á por fundamento teórico a Criminologia Crítica, a qual analisa o funcionamento do sistema de justiça na seleção daqueles que serão tidos por criminosos, baseando-se no paradigma da reação social. Eis que a aplicação do art. 28, p. 2º, da Lei nº 11.343/06, sem o devido cumprimento do ônus argumentativo, abre margem para verdadeiros autoritarismos na definição de quem é traficante, o que reforça a seletividade inerente às práticas penais brasileiras. O que se pretende evidenciar é que a construção dogmática sobre usuários e traficantes, pode, sim, promover situações de injustiça, diante da discricionariedade/arbitrariedade permitida pelas normas. Desta feita, a sorte do sujeito submetido à persecução criminal é lançada no sistema, ficando a resolução do caso à mercê do enquadramento ou não do réu no estereótipo de traficante do senso comum jurídico.

Palavras-chave: Lei de Entorpecentes. Usuário. Traficante. Ideologia da Diferenciação. Estudo de Caso.

Abstract

How is, in practice, the distinction between user and drug dealer? Taking as a starting point this question, this paper analyzes how was the construction of these stereotypes from the differentiation ideology; it seeks to understand the Brazilian legislation regarding that issue; and it performs a case study of an elucidatory sentence, since it shows the difficulties of interpretation involving the user/drug dealer dichotomy. In order to achieve this, Critical Criminology is adopted as theoretical foundation, which analyzes how the juridical system selects those taken as criminals, based on the paradigm of social reaction. The application of art. 28, p. 2nd, of Law 11.343/2006, without due argumentative onus, makes room for true authoritarianism in defining who is a drug dealer and reinforces the inherent selectivity to Brazilian criminal practices. The objective is to highlight that dogmatic construction about users and drug dealers, can, in fact, promote injustice, given the discretionary power/arbitrariness allowed by law. Therefore, the individual’s fate submitted to criminal prosecution is handed over to the legal system, and the case’s resolution is done according to the inclusion (or not inclusion) of the defendant in the drug dealer’s stereotype of juridical common sense.

Keywords: Narcotics Law. User. Drug dealer. Ideology of differentiation. Case study.

1 Introdução – entre o usuário e o traficante: é possível diferenciação?

Em tempos em que o Supremo Tribunal Federal está discutindo a constitucionalidade do crime de porte de drogas para uso pessoal1, uma outra discussão de suma importância não pode ser olvidada: como se dá, na prática, a diferenciação entre o usuário e o traficante? Quais são os critérios utilizados? Afinal, a depender dessa distinção, a sorte do agente no sistema penal pode tomar rumos diametralmente opostos. Ou a ele será imposta a disciplina dos crimes de menor potencial ofensivo, sem que haja qualquer ameaça de aplicação de pena privativa de liberdade (art. 28 da Lei nº 11.343/06), ou serão aplicadas as normas relativas aos crimes hediondos e correlatos, e pena privativa de liberdade mínima de cinco anos (art. 33 da Lei nº 11.343/06).

A fim de compreender quais as variáveis envoltas na aplicação do art. 28, §2º, da Lei nº 11.343/06 – dispositivo que confere balizas para a diferenciação entre usuário e traficante –, ter-se-á por fundamento teórico a Criminologia Crítica. Se a Criminologia é a ciência causal-explicativa da realidade delitiva, sua vertente Crítica, baseada no paradigma da reação social, analisa o funcionamento do sistema de justiça na seleção daqueles que serão tidos por criminosos. Com efeito, evidenciou-se que o sistema penal, ao invés de promover a diminuição da violência, institucionaliza a violência como prática, em um ciclo vicioso de proliferação de dor. Assim, até no discurso popular, sabe-se que, embora haja funções declaradas, o sistema funciona numa espécie de eficácia invertida2, já que é exitoso não na defesa da sociedade e na prevenção de crimes, mas em imunizar classes de alguma forma empoderadas.

Não se acredita, todavia, que haja alguma espécie de mão invisível orquestrando a seleção das pessoas que serão punidas pelo sistema penal. Segundo Zaffaroni:

O discurso jurídico-penal falso não é nem um produto de má fé nem simples conveniência, nem o resultado da elaboração calculada de gênios malignos, mas é sustentado, em boa parte, pela incapacidade de seu substituído por outro discurso em razão da necessidade de se defenderem os direitos de algumas pessoas.3

Há, em verdade, práticas sociais reiteradas, imersas em preconceitos, que passam a se naturalizar, como, por exemplo, a crença de que certos estratos sociais são repletos de criminosos, quando o crime é um fenômeno social bastante democrático, presente em todas as classes. Especialmente no que tange ao delito de tráfico, por mais que se saiba que as drogas ilícitas circulam por todos os segmentos, é como se o estigma de traficante não chegasse a certos grupos. Daí que este trabalho propõe-se, em um primeiro momento, a compreender como se deu a construção da ideologia da diferenciação, baseada nos estereótipos de traficante-criminoso e de usuário-dependente – contraposição esta que não abarca a complexidade do fenômeno das drogas, além de promover a renovação dos próprios estereótipos.

Destaca-se como essa diferenciação é difícil de ser realizada, em muitas situações práticas, com um mínimo de segurança, mormente diante dos termos de ampla textura aberta presentes no art. 28, §2º, da Lei nº 11.343/06. Eis que a suposta discricionariedade permitida pela norma, sem o devido cumprimento do ônus argumentativo, abre margem para verdadeiros autoritarismos na definição de quem é traficante, o que reforça a seletividade inerente às práticas penais brasileiras. Abre-se, pois, a discussão sobre a viabilidade de determinar limites máximos para posse e uso pessoal de entorpecentes, não sendo esses valores vinculantes apenas quando for para beneficiar o réu.

Assim, várias pesquisas indicam que:

O tipo penal do tráfico qualifica-se como tipo aberto, estabelece penas desproporcionais e não diferencia as diversas categorias de comerciantes de drogas observadas na realidade social. Além disso, a Lei não é clara quanto à distinção entre a tipificação do uso e do tráfico, e o resultado disso é que o Poder Judiciário, além de aplicar uma Lei punitiva e desproporcional, concede amplos poderes ao policial que primeiro tem contato com a situação. A atuação da polícia, nesse sistema, é ainda comprometida pela corrupção, que filtra os casos que chegam ao conhecimento do Judiciário. Este ciclo vicioso muito tem contribuído para a superlotação das prisões com pequenos traficantes pobres, e para a absoluta impunidade dos grandes.4

Ao cabo, além de o sistema punir, em sua grande maioria, os pequenos traficantes, mais vulneráveis, ele permite que usuários sejam detidos como traficantes, a depender do encaixe nos tipos determinados pela ideologia da diferenciação. A fim de ilustrar o cenário descrito, passa-se ao estudo de caso do Processo nº 0001908-44.2012.8.17.1030, da Justiça Comum de Pernambuco, antecedido por considerações teóricas sobre o referido método.

O caso escolhido sugere a respeito do todo e não apenas do estudo dele próprio. Ao se elucidar tanto o que é comum quanto o que é particular no processo analisado, busca-se incitar a reflexão crítica sobre a normatização relativa às drogas, sobre como os operadores do direito estão atuando na ratificação de estereótipos criminalizadores, e sobre a necessidade de criação de novos parâmetros de diferenciação enquanto não se avança mais no abandono ao proibicionismo.

2 Repressão ao tráfico de entorpecentes e criminalização da pobreza

Com o intuito de compreender como, hoje, no Brasil, se opera a distinção entre usuário e traficante de drogas, é salutar expor um aporte histórico sobre como se deu a repressão ao comércio de entorpecentes a partir do século XX. Tal postura é interessante porque a compreensão histórica dos fenômenos jurídicos, muito antes de auxiliar (ou não) a atividade interpretativa de normas do presente, tem o poder de demonstrar que a continuidade dos institutos jurídicos é uma falácia. Daí a importância da história do direito: retirar da cabeça dos juristas a ideia de universalidade das instituições, já que, ao longo da história, diversas foram as formas de as sociedades encararem o mesmo fenômeno (informação verbal)5. Ao olhar para o passado, portanto, é possível que se abram novos horizontes normativos para o futuro.

Pois bem, no que tange ao processo de criminalização das drogas, este foi fruto de um longo processo histórico, que vai desde as guerras do ópio do século XIX, nas quais se lutava pelo livre comércio de drogas na China, passando-se pela Convenção de Haia de 1912, primeira proibição internacional ao tráfico de drogas, até a atual guerra às drogas no contexto globalizado, criadora de um permanente Estado de exceção, legitimador de abusos por parte do poder constituído.6

Abdicou-se, pois, do Estado Democrático de Direito, no contexto de guerra às drogas. Não obstante, nem sempre foi assim. Em verdade, somente na década de 40 do século XX que se pode verificar o surgimento de uma política proibicionista sistematizada contra as drogas.7 No contexto brasileiro em especial, foram os médicos legistas e psiquiatras quem mais pressionou pelo controle penal das drogas, vez que a dependência química seria uma das causas do atraso social do país, ameaçando a ordem pública.8 Instala-se, assim, o modelo médico-sanitário de combate às drogas.

Nessa esteira, o Supremo Tribunal Federal, quando os crimes relativos ao tráfico de drogas ainda eram disciplinados pelo Código Penal, decidiu que o consumidor não estaria abrangido pelo então art. 281 do CP. Ou seja, houve uma descriminalização do uso via construção jurisprudencial9, em virtude de o consumidor ser um doente, alguém que precisaria de tratamento, e não de punições penais.

Com a chegada do ano de 1964, Luciana Rodrigues afirma que teria ocorrido um verdadeiro “marco divisório entre o modelo sanitário e o modelo bélico de política criminal para drogas”10, sendo este último reflexo direito da influência dos Estados Unidos da América, país que elegeu o traficante como inimigo interno e externo da paz social em substituição à ameaça comunista.11 Tal movimento também foi influenciado por um viés cultural puritano, que conferiu a legitimação necessária para o início de uma verdadeira cruzada moral contra as drogas e a declaração de guerra. A grande questão é que, nessa guerra, os mais afetados são as populações marginalizadas, que passam a ter de suportar o controle ferrenho do Estado policial e de suas normas penais. Estas, mais punitivistas, acabam por “difundir o medo e o conformismo em relação aos descartáveis do processo globalizador, aos excluídos, aos ninguéns”.12

Eis que surge um fator complicador: as drogas começaram a chegar aos jovens brancos, de classes média e alta, inclusive por conta de um componente político, a oposição à Guerra do Vietnã e a correlata revolução nos costumes. Ora, eles não poderiam ser tratados da mesma forma que os traficantes, posto que foram apenas corrompidos pelas inimigos sociais. É quando, ainda na década de 60, surge a ideologia da diferenciação, segundo a qual as pessoas envolvidas com entorpecentes são divididas em duas categorias: os delinquentes-traficantes, indivíduos malévolos e desumanizados, contra os quais a repressão deve ser a maior possível, e os usuários-dependentes, para quem são dirigidas alternativas descriminalizantes.

Está-se diante de um duplo discurso, portanto. Por mais que o modelo bélico de combate às drogas tenha se instalado, houve a manutenção do modelo sanitário para uma determinada classe social: para os ricos, tratamento; para os pobres, internação ou cárcere. Por evidência, trata-se de uma dicotomia extremamente simplista, que inclusive ignora a fenomenologia do tráfico de drogas. Internacionalmente, os termos acabaram sendo postos da seguinte forma: há “o dependente-usuário, doente e vítima, representado pelo consumidor norte-americano, e o traficante-criminoso, que encarna a figura do ‘inimigo’, normalmente externo, de origem latino-americana”.13

A ideologia da diferenciação, indo além, simplifica em demasiado a realidade dos próprios usuários, ao considerar que todos aqueles que consumem drogas são dependentes. Tal afirmação não se sustenta diante da empiria; basta observar os consumidores de álcool, uma droga lícita. Afinal, há uma série de fatores fisiológicos que, combinados, levam ao desenvolvimento da dependência, fato reconhecido inclusive pela Secretaria Nacional de Política sobre Drogas.14

Voltando à realidade brasileira, em virtude da vigência do Decreto-lei nº 385, de 26.12.196815, houve um breve momento em que se chegou a equiparar a conduta do usuário à do traficante, numa tentativa de combater o tráfico via criminalização do usuário.16 Porém, já na década de 70, retomou-se o discurso da diferenciação, o qual permanece até os dias de hoje. Portanto é possível afirmar que, no Brasil, há um proibicionismo moderado: ao usuário, são imputadas penas restritivas de direitos, de forma direta (sem substituição de pena privativa de liberdade), enquanto que aos traficantes cabe a rigorosa disciplina da lei de crimes hediondos.

Se os usuários são as vítimas, levadas ao mau caminho e corrompidas pelos traficantes, estes, no outro extremo – numa oposição simplista corroborada pelas construções midiáticas –, são tidos como poderosos desajustados, malévolos, “[...] como se todos aqueles que respondem pelo delito de tráfico fizessem parte de uma única categoria herética e violenta por natureza”.17 Tal postura, infelizmente, dá margem para a exacerbação do punitivismo por parte dos operadores do direito, constituindo reflexo da sociedade a qual pertencem.

A referida simplificação maniqueísta da sociedade é apenas mais uma das que normalmente são feitas para defender as funções declaradas do sistema penal, dividindo a humanidade em categorias: cidadãos e delinquentes, pessoas de bem e arruaceiros, e, finalmente, consumidores-dependentes e traficantes-monstros, sendo estes o mal personificado. Indo além, em virtude das funções latentes do sistema penal18, os comerciantes do mercado ilícito de drogas acabam sendo identificados com os estratos menos favorecidos. Completa-se, assim, o ciclo de preconceitos e se cria o estereótipo de traficante.

Nesse ponto, é possível recorrer à ideia de Michel Foucault de que o sistema penal atua realizando uma gestão diferencial das ilegalidades19, ou seja, a justiça não existe para punir todas as práticas ilegais, mas apenas algumas e de específicos setores sociais. Daí que, mesmo dentro das condutas tidas por tráfico, praticadas por ricos e pobres, apenas sobre estes recai o estereótipo de criminoso e a força do sistema20. Todavia, a realidade demonstra que, por muitas vezes, esses selecionados não correspondem às características do estereótipo de traficante – uma pessoa sem limite moral, que age de forma violenta e bárbara, em detrimento da saúde dos viciados.

Isso porque a repressão legal resta concentrada no último escalão do esquema empresarial do tráfico, ou seja, no setor mais débil, mais vulnerável da complexa rede de venda de substâncias psicoativas. São presos normalmente, portanto, verdadeiros trabalhadores autônomos do tráfico, os quais não detêm qualquer controle sobre a organização do negócio. Descrevendo precisamente o fenômeno, Oscar Zaccone aduz:

Hoje, a grande maioria dos presos no tráfico é formado pelos “aviões”, “esticas”, “mulas”, verdadeiros “sacoleiros” das drogas, detidos com uma carga de substância proibida, através da qual visam obter lucros insignificantes em relação à totalidade do negócio. Estes “acionistas do nada”, na expressão de Nils Christie, são presos, na sua imensa maioria, sem portar qualquer revólver.21

Com o intuito de corroborar o afirmado, pode-se observar os dados do início dos anos 2000 sobre os presos por tráfico no Rio de Janeiro: menos de 10% é detido portando arma de fogo22, demonstrando que o foco da repressão não recai sobre os temidos chefões do tráfico, mas sim sobre a base da cadeia produtiva, a qual raramente reage aos comandos de prisão.

Ademais, é preciso pontuar que, mesmo quando a pessoa é presa em flagrante vendendo drogas, isso definitivamente não quer dizer que ela concretiza o estereótipo de criminoso presente no imaginário social. Ela, por questões sociais, foi apenas a selecionada para encarnar o papel de traficante. Imagine-se o seguinte exemplo: dois jovens, ambos de 18 anos, estão negociando a compra de drogas em um bairro abastado. O que compra, universitário no início da vida acadêmica, o faz com o dinheiro que recebe dos pais para o lazer. O que vende, jovem que ainda cursa o ensino médio, em série atrasada, e faz bicos para ajudar a família, também deseja comprar a droga, porém não tem dinheiro para tanto. Como solução, vende um pouco para assim também poder consumi-la. E eis que, tendo a polícia flagrado o ato, o jovem universitário será encaminhado ao Juizado Especial Criminal, sobre ele não podendo incidir qualquer pena privativa de liberdade, enquanto que o segundo está sujeito a uma pena mínima de cinco anos, com sério risco de não conseguir a aplicação de minorantes e a conversão da pena em restritivas de direito. O abismo na diferença de tratamento é, pois, gritante.

Ainda sobre a temática, arremata Vera Malaguti Batista:

A disseminação do uso de cocaína trouxe como contrapartida o recrutamento da mão-de-obra jovem para a sua venda ilegal e constituiu núcleos de força nas favelas e bairros mais pobres do Rio de Janeiro. Aos jovens de classe média que a consumiam aplicou-se sempre o estereótipo médico, e aos jovens pobres que a comercializavam, o estereótipo criminal. Este quadro propiciou um colossal processo de criminalização de jovens pobres que hoje superlotam os sistemas de atendimento aos adolescentes infratores.

A visão seletiva do sistema penal para adolescentes infratores e a diferenciação no tratamento dado aos jovens pobres e aos jovens ricos, ao lado da aceitação social que existe quanto ao consumo de droga, permite-nos afirmar que o problema do sistema não é a droga em si, mas o controle específico daquela parcela da juventude considerada perigosa. [...] Em geral, os processos se relacionam às famílias “desestruturadas”, às “atitudes suspeitas”, ao “meio ambiente pernicioso à sua formação moral”, à “ociosidade”, à “falta de submissão”, ao “brilho no olhar” e ao desejo de status “que não se coaduna com a vida de salário mínimo”.23

Para completar o quadro, as elevadas penas imputadas aos traficantes englobam toda a cadeia do comércio ilegal, de forma que não se distingue o pequeno traficante do atacadista. Em tese, essa diferenciação deveria ser realizada quando da dosimetria da pena, sendo que os ânimos punitivistas que perpassam a sociedade podem fazer tábula rasa de qualquer diferença. Se é para punir o inimigo, todo o rigor faz-se necessário.

Ademais, se é para extirpar o mal do tráfico, na dúvida se o agente é usuário ou traficante, o juízo de valor pode acabar pendendo para a configuração do delito previsto no art. 33 da lei nº 11.343/06, como mais uma consequência do punitivismo exacerbado. Por mais que haja dúvidas, se a pessoa configura o estereótipo de traficante, o sistema penal sente-se confortável para condená-lo por crime análogo a hediondo. Foi este exatamente o caso do processo que será analisado adiante. Porém, antes de adentrar em suas particularidades, passa-se à análise dogmática e à crítica sobre os critérios dos juízes para diferenciar usuário e traficante.

3 Diferenciação entre traficante e consumidor na legislação brasileira

Enquanto as condutas do traficante de drogas são tipificadas nos arts. 33 e seguintes da Lei nº 11.343/06, ao usuário restaria o tipo do art. 28, considerado como uma infração penal sui generis.24 Isso porque, consoante o Decreto-Lei nº 3.914/41 (Lei de introdução do Código Penal e da Lei das Contravenções Penais), as sanções possíveis para as infrações penais são as penas de reclusão, detenção, multa e prisão simples; o art. 28, todavia, fugindo à regra das penas restritivas de direito do CP, que são sempre substitutivas das penas privativas de liberdade, prevê a completa autonomia das penas de prestação de serviços à comunidade e obrigação de frequência a programa ou curso educativo. Houve, pois, para o consumidor-usuário, a descarcerização (e não despenalização, visto que, por mínima que seja, ainda é imputada uma consequência penal à conduta de quem porta drogas para consumo próprio).

Resta, porém, a dúvida: havendo núcleos verbais idênticos presentes nos tipos dos arts. 28 e 33 da Lei nº 11.343/0625, como se dará a diferenciação entre o consumidor-usuário e o delinquente-traficante? Segundo a dicção do §2º do art. 28 da Lei, “o juiz atenderá à natureza e à quantidade de substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. Ou seja, pela simples leitura do dispositivo, observa-se claramente a porta aberta ao direito penal do autor e à arbitrariedade judicial, principalmente no contexto brasileiro, de tradição punitivista dos atores do sistema penal.26 Tanto que, não raro, a única prova do tráfico é o desemprego ou o subemprego daquele que é surpreendido na posse de drogas.27

Está-se, em verdade, diante de dispositivo cujos termos apresentam por demais a característica da textura aberta da linguagem, conceito empregado de forma pioneira pelo filósofo da linguagem Friedrich Waismann:

Por textura aberta da linguagem entende-se que a palavra que apresenta essa qualidade não teve o seu uso previsto para todas as situações possíveis que poderiam surgir [...]. A textura aberta engloba os casos em que não sabemos se um termo se aplica ou não em função de não termos previsto essa nova situação no momento em que constituímos o significado original da palavra.28

Mesmo nos casos de palavras com significados aparentemente bem precisos, a textura aberta da linguagem pode possibilitar a construção de decisões variadas por parte dos juristas. Imagine-se, então, como essa discricionariedade ao decidir é alargada com o uso de conceitos vagos, tão presentes nas legislações. Em verdade, essa fluidez dos termos possibilita manipulações na dogmática para a concretização, por exemplo, de discursos punitivistas. Negam-se, assim, normas constitucionais de cunho garantista em prol de um desejo de punir como solução para o problema da violência.

Por mais que, atualmente, se reconheça que as cláusulas gerais e os conceitos vagos, ao lado dos princípios jurídicos, sejam os três poros que fazem com que o sistema jurídico se oxigene, de forma que o judiciário possa se adaptar às contingências dos casos29, é preciso cautela para que a linguagem não vire um instrumento de dominação, em que, da discricionariedade permitida pela textura aberta, parta-se para a arbitrariedade. Dessa forma, diante de dispositivo tão abrangente como o art. 28, §2º, da Lei nº 11.343/06, faz-se necessário a exigência de um maior ônus argumentativo por parte dos juízes, para evitar que haja uma abertura para o direito penal do autor e consequente ratificação da seletividade operada pelo sistema penal.

O referido dispositivo ainda sofre críticas pelo fato de que, utilizando-se de elementos objetivos da conduta criminosa, ele pretende conferir a base para se inferir o elemento subjetivo, o dolo de uso ou de tráfico. Daí o cuidado que se deve ter para que esses critérios não sejam tomados de forma absoluta, tangenciando uma espécie de responsabilização penal objetiva. Neste sentido, “as circunstâncias objetivas de tempo, local e forma de agir servem apenas como critérios indiciários do elemento subjetivo, sendo fundamental aos operadores do direito avaliar criteriosamente os aspectos referentes à vontade, à previsibilidade, à representação e à consciência” (grifos originais).30

Há, ainda, uma consequência prática que a fluidez da diferença entre usuário e traficante pode trazer, segundo o ensinamento de Marcelo da Silveira Campos:

O ponto, portanto, a ser problematizado a partir dos relatos sobre os usuários é a imprecisão dos critérios legais na distinção entre usuários e traficantes, juntamente com a disparidade entre as penas previstas para estes crimes (acentuadas por meio do novo dispositivo legal). Esses elementos podem estar contribuindo ainda mais para que as relações entre traficante, usuário e polícia sejam estabelecidas por meio de negociações informais e discursivas para maior ou menor punição de determinados indivíduos, ‘coisificando’ os estereótipos, representações e a arbitrariedade das instituições estatais.31

Além dos critérios indicados pelo art. 28, §2º, da Lei nº 11.343/06, o principal ponto diferenciador da condição de usuário seria o especial fim de agir para consumo pessoal, tal qual indicado no art. 28, caput, do referido diploma. A questão que se impõe é que, diferentemente do dispositivo que incrimina o usuário, o artigo referente às condutas de tráfico não indica o chamado dolo específico. Essa situação, além de conferir a mesma punição para várias situações intermediárias entre o consumidor e o traficante atacadista, abra mais uma janela para o excesso punitivo, em total contrariedade ao princípio do in dubio pro reo.

Isso porque, se não se configura o dolo de consumo, a conduta pode ser automaticamente enquadrada como tráfico, em um simplismo que viola o princípio da proporcionalidade. Infelizmente, ainda são necessários grandes esforços para que haja a conscientização dos operadores jurídicos de que a Constituição precisa ser cumprida. Daí que, para evitar a afronta ao referido ditame constitucional, uma via hermenêutica possível, sugerida por Salo de Carvalho, seria ter por pressuposto da imputação das condutas do art. 33 o desígnio mercantil (especial fim de agir). Em síntese:

Em não ficando demonstrado esse especial fim de agir [consumo pessoal], qualquer outra intenção, independentemente da destinação comercial, direcionaria a subsunção da conduta ao art. 33, decorrência da generalidade, abstração e universalidade do dolo. Cria-se, na realidade, espécie de zona grísea de alto empuxo criminalizador no qual situações plurais são cooptadas pela univocidade normativa (grifos originais).32

O modelo proibicionista há muito mostra sinais de sua ineficácia, haja vista que, não obstante toda a repressão, o consumo de drogas no mundo não diminuiu, muito pelo contrário. Ademais, são inúmeras as consequências negativas advindas dessa política, o que gera um verdadeiro círculo vicioso33 contra o qual não se vislumbram saídas dentro do paradigma de “guerra às drogas”. Não obstante, uma medida poderia ser tomada com o objetivo de, ao menos, evitar injustiças no enquadramento das pessoas nas categorias fechadas da ideologia da diferenciação (usuário x traficante): a determinação legal ou administrativa de quantidades máximas para posse de cada tipo de entorpecente. Talvez esta não seja a melhor solução, mas ao menos aponta caminhos.

Com isso, seria possível ao consumidor se precaver e circular apenas com a quantidade máxima permitida para ser considerado usuário, sem com isso sofrer qualquer punição na seara penal. Todavia, mais uma vez, esse critério objetivo (quantidade de droga) não poderia, por si só, condenar o réu pela prática de tráfico. Afinal, ainda é necessário analisar a finalidade e as demais circunstâncias da conduta, de forma que, se for para beneficiar o acusado, a subsunção pode se dar pelo art. 28 da Lei nº 11.343/06, mesmo que a quantidade de substância ilícita ultrapasse o previsto para usuário.

4 Estudo de caso: sentença do processo Nº 0001908-44.2012.
8.17.1030, da vara criminal da comarca de Palmares/PE

Após as considerações teóricas iniciais sobre a ideologia da diferenciação e sobre como, diante da dogmática pátria, se diferencia o usuário do traficante, passa-se à análise de decisão judicial considerada elucidativa para o entendimento da matéria. Isso porque um dos réus foi condenado por tráfico sem que se tenha demonstrado a finalidade de comércio, e mesmo diante do fato de todos os corréus o apontarem como consumidor. Nas entrelinhas, o fato de ele encomendar maconha dentro de um estabelecimento prisional fez com que incorresse nas penas do art. 33 da Lei nº 11.343/06, independentemente de a substância ser ou não para consumo próprio.

Por mais que o estudo de caso seja, em tese, passível da crítica da dificuldade de generalização, ele se faz útil no presente trabalho exatamente porque são as suas singularidades que demonstram, de forma clara, os impasses na distinção entre usuário e traficante e, pior, como um usuário pode ser tido por traficante, em virtude da seleção do sistema via estereótipos. Se porventura há críticas quanto à objetividade desse método, uma possível resposta é que:

[...] a validação do conhecimento gerado pela pesquisa, a aprovação de sua confiabilidade e relevância pela comunidade acadêmica, exige que o pesquisador se mostre familiarizado com o estado atual do conhecimento sobre a temática focalizada, de modo que ele possa, de alguma forma, inserir sua pesquisa no processo de produção coletiva do conhecimento.34

Assim sendo, acredita-se que o presente estudo de caso irá contribuir para a elucidação da problemática envolvendo a diferenciação entre usuário e traficante. Isso porque, a partir de um caso extremado, em que um dos réus é tido como traficante quando os elementos dos autos indicam a condição de usuário35, é possível extrair conclusões que podem ser aplicadas em outros contextos36, fortalecendo-se a hipótese de que o perfil social do acusado possui uma eficácia discursiva que se efetiva como verdade no discurso das agências estatais sobre quem é o ou não criminoso (grifos originais).37

Ademais, também será utilizada a metodologia da análise de conteúdo, de forma a possibilitar à pesquisadora encontrar o latente na sentença, em um estudo exploratório, descritivo e qualitativo do documento.38

Segundo consta da denúncia, agentes penitenciários realizavam revistas pessoais nos visitantes dos presos do estabelecimento X, quando foi encontrado com Marta, a qual estava indo visitar o seu companheiro João (também réu), um volume contendo cerca de 250g de maconha. Quando do flagrante, ela teria informado que a droga seria para Tarcísio.39

Todavia, João, perante as autoridades policiais, esclareceu como se desenrolou a ação: ele e Tarcísio tinham combinado entre si a compra da droga, sendo que este era quem pagaria R$ 200,00 (duzentos reais) para a companheira de João, Marta, responsável por pegar a substância entorpecente e levá-la ao estabelecimento prisional. Não obstante todo o acervo probatório indicar que Tarcísio foi apenas o consumidor da droga (encomendou-a), não havendo quaisquer outros elementos que indicassem a atividade de comércio por parte dele – até porque todo o esquema de entrada da maconha no presídio foi organizado por João –, Tarcísio acabou sendo condenado em primeira instância pela prática do delito de tráfico de entorpecentes.

Como peculiaridade do caso, tem-se apenas que, com João, foi encontrado um celular, em que havia uma mensagem por meio da qual alguém não identificado insinua pedir droga para “livrar a cara”40. Essa mensagem fora imputada pela magistrada, sem qualquer prova nesse sentido, como de autoria de Tarcísio (muito embora Tarcísio e João fossem companheiros de cela), de forma que a droga apreendida não seria apenas para consumo pessoal, mas para “livrar a cara” de alguém.

4.1 Análise da sentença: quando a condenação é do autor e não do fato

Em primeiro lugar, é preciso ter em vista que, quando alguém deseja comprar qualquer coisa, seja ilícita ou não, é preciso entrar em contato com aqueles que vedem o produto. Com isso, sob hipótese alguma, significa que este consumidor pratica a mercancia. Caso contrário, todo e qualquer viciado em drogas cometeria o crime de tráfico ao viabilizar a compra das substâncias entorpecentes, o que vai de encontro à lógica da Lei nº 11.343/06, a qual distinguiu as condutas de usuário e traficante.

No presente caso, claro está que Tarcísio, quando estava recluso, apenas entrou em contato com vendedores para comprar maconha, como consumidor. Para tanto, conversou com seu companheiro de cárcere, João, o qual viabilizou toda a compra, envolvendo também a sua companheira, Marta. Neste ponto, importante destacar que todos os depoimentos dos corréus foram coesos, sem qualquer contradição que indicasse a prática de tráfico por Tarcísio. Ele tanto é apenas consumidor, que seria ele a pessoa a pagar pela droga. Ou seja, não teve lucro algum com a operação. Ademais, não há qualquer indício de que Tarcísio revenderia a droga dentro do presídio, por exemplo, de forma que não pode ser ele condenado por meras suposições41. Infelizmente, ao que parece, ele foi considerado traficante única e exclusivamente em virtude do local em que fez a encomenda da maconha: um estabelecimento prisional.

Não há nada nos autos que indique que Tarcísio praticou algum dos núcleos verbais previstos no art. 33 da Lei de Drogas. Inclusive, cabe destacar que Tarcísio apenas figurou como réu no presente processo porque foi citado pelos corréus, haja vista que ele não estava presente quando da apreensão da droga, em posse de Marta. E o interessante é que, muito embora ambos os corréus afirmem que Tarcísio era apenas o comprador da droga, sendo ele o responsável pelo pagamento, ainda assim foi condenado, o que consubstancia uma verdadeira contradição: os depoimentos dos corréus, que são o único elo de Tarcísio com o delito, fundamentam a condenação, embora ambos sejam no sentido de que Tarcísio era apenas o comprador da maconha.

Inicialmente, vejamos como a magistrada sintetiza as suas conclusões no sentido da condenação de Tarcísio:

A ré Marta, por intermédio do companheiro João, levou drogas para dentro do presídio, as quais eram destinadas ao réu Tarcísio, sendo que este pagaria a quantia de R$ 200,00. Diante disso, impende condená-los no art. 33 da Lei 11.343/06. A acusada, portanto, incorreu nos núcleos de ação “transportar” e “trazer consigo”, nos quais também incidem os denunciados João e Tarcísio, os quais assumiram conduta relevante que acarretou no cometimento do delito, sendo notório, ainda, o liame subjetivo existente entre os três réus.

As drogas seriam “destinadas ao réu Tarcísio, sendo que este pagaria a quantia de R$200,00”. Como daí é possível concluir que o réu praticou tráfico? Ora, se as drogas eram destinadas a Tarcísio, ele é, pois, o consumidor, tanto que ele é quem pagaria pela droga. Simplesmente não faz sentido deduzir que, por ser Tarcísio o destinatário da droga, é traficante. Afirmar isso consubstancia verdadeiro salto lógico.

Indo além, a magistrada indicou os núcleos verbais realizados por Marta, dizendo em seguida que os outros acusados também incidiriam nessas condutas, o que não se sustenta dogmaticamente. Com essa afirmação, a juíza deseja demonstrar um concurso de pessoas entre Marta e Tarcísio, quando se trata de uma relação entre vendedor e consumidor. Se os compradores também incidissem nas condutas dos traficantes de “transportar” e “trazer consigo” drogas toda vez que encomendassem o produto, simplesmente cairia por terra a diferenciação entre usuário e traficante, já que aquele seria sempre partícipe da conduta deste. Em verdade, Tarcísio praticou a conduta de “adquirir” prevista no caput do art. 28 da Lei nº 11.343/06, já que não houve a comprovação do especial fim de lucro, o que afasta o núcleo “adquirir” do art. 33 do mesmo diploma legal.

Quando da dosimetria da pena, a magistrada, por meio das expressões que utiliza, acaba por ratificar o entendimento de que Tarcísio é apenas consumidor. Vejamos como ela fundamenta as circunstâncias judiciais de “motivos” e de “circunstâncias e consequências”:

Motivos: inerentes ao tipo, qual seja, a obtenção de proveito financeiro com a comercialização dos entorpecentes; Circunstâncias e conseqüências: a ação do acusado afeta a incolumidade pública, tendo ele, mesmo recolhido, em conluio com o condenado João, pedido à companheira deste para que levasse até eles a substância entorpecente.

A juíza afirma que não valorará negativamente os motivos do delito, já que esses são “inerentes ao tipo, qual seja, a obtenção de proveito financeiro com a comercialização dos entorpecentes”. Todavia, pelo que se infere dos termos da própria sentença, Tarcísio não teve qualquer proveito financeiro com a ação; pelo contrário, ele quem pagaria pela droga, gastando dinheiro. Outra conclusão não há que não reconhecer a sua condição de usuário.

Sobre as circunstâncias e consequências do delito, a magistrada, ao valorar negativamente essas circunstâncias judiciais, afirma que Tarcísio, junto com João, teria pedido à companheira deste que levasse até eles drogas. Ora, essa não é exatamente a conduta praticada por qualquer usuário, que pede que o traficante o traga substância entorpecente?

A juíza, com o intuito de enquadrar Tarcísio como traficante, faz referência a uma mensagem de texto encontrada no celular de João, concluindo que a droga seria para “livrar a cara” de Tarcísio. Este, pois, não seria mero consumidor, mas também traficante, já que usaria a droga para outros objetivos que não consumo próprio, mas sim para “livrar a sua cara”.

Todavia, para que esse raciocínio faça algum sentido, é preciso supor que a mensagem é de autoria de Tarcísio. Ou seja: a Juíza, com base em suposições, sem qualquer fundamento, deduz que ele estaria pedindo a droga para outros objetivos que não consumo. Não se pode aceitar tamanha abstração, seja porque deve imperar o princípio do in dubio pro reo, seja porque não faz sentido que Tarcísio pedisse as drogas para João por mensagem de celular, quando eles conviviam diariamente no presídio.

Indo além e supondo que o intuito de Tarcísio não era o consumo próprio, isso não autoriza, de pronto, o enquadramento como traficante. Conforme explanado no item 2, por mais que não seja expressamente previsto na norma, é cabível a indução de um especial fim de agir de comércio para as condutas previstas no art. 33 da Lei nº 11.343/06. Por conseguinte, se a juíza acreditava que Tarcísio era traficante, deveria ter argumentado nesse sentido, demonstrando com as provas dos autos que o propósito de Tarcísio era o de mercancia, ou outro que não o consumo próprio de maconha, a ser partilhada com João, o que sequer esboçou. Nesse sentido, precisas são as palavras de Salo de Carvalho, ao sustentar que haveria uma “tendência à inversão do ônus da prova, recaindo ao réu o dever de provar durante a cognição a especial finalidade de agir [de consumo] [...]”.42

5 Considerações finais

No Processo nº 0001908-44.2012.8.17.1030, é possível afirmar, de forma categórica, que a diferenciação entre usuário e traficante é repleta de funções ocultas. Todavia, após destrinchar a sentença condenatória, resta a dúvida, apenas no discurso declarado pela dogmática penal, do porquê Tarcísio foi tido por incurso nas penas do art. 33 da Lei nº 11.343/06, quando a acusação tinha por fundamento basicamente a palavra dos corréus, e esses foram uníssonos no sentido de que Tarcísio seria o comprador da maconha.

O que se pretende evidenciar é que a construção dogmática sobre usuários e traficantes, baseada na ideologia da diferenciação, promove situações de injustiça, diante da discricionariedade/arbitrariedade permitida pelas normas. Desta feita, a sorte do sujeito submetido à persecução criminal é lançada no sistema, ficando a resolução do caso à mercê do enquadramento ou não do réu no estereótipo de traficante do senso comum jurídico.

No caso objeto deste trabalho, por mais que tudo indicasse a condição de comprador de maconha, critérios outros parecem ter influenciado a juíza para a condenação. Até porque, diante da condição de Tarcísio, recluso em estabelecimento prisional, é no mínimo confortável imputar a ele um rótulo que já carrega, o de criminoso. Para o sistema, é natural esperar que quem já cumpre pena privativa de liberdade ou está em prisão provisória reafirme a sua tendência delituosa e cometa novos crimes. Portanto, parece não ser incomum que, ao invés da utilização de critérios objetivos quando da condenação por tráfico, seja imposto um verdadeiro direito penal do autor – com a análise de características pessoais envoltas de preconceitos –, chegando-se até a uma espécie de direito penal do expectador, cujo foco é demonstrar a suposta efetividade do sistema para uma população cada vez mais temerosa dos males do tráfico.

A dogmática advinda da ideologia da diferenciação, portanto, possibilitou um verdadeiro habitus43 por parte dos juristas, que já esperam um determinado tipo de pessoa para incriminar por tráfico. Todavia, essas representações do sistema de justiça sobre a figura do traficante violam uma série de garantias constitucionais, como a presunção de inocência e a construção de um direito penal do fato. Em verdade, parece que já há uma condenação preventiva de determinados indivíduos e estratos sociais, o que deve ser veementemente denunciado, a fim de que se avance na construção de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, também na seara penal.

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[Recebido: Fev. 24, 2016; Aprovado: Dez. 28, 2016]

DOI: http://dx.doi.org/10.18256/2238-0604/revistadedireito.v13n2p194-214

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