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A interpretação da Repercussão Geral pelo STF nos Precedentes sobre Direito Sanitário

The interpretation of the General Repercussion of by the STF in the Precedents on Health Law

Voltaire de Freitas Michel(1); Marc Antoni Deitos(2); Claudia Elizabeth Zalazar(3)

1 Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do Curso de Direito da IMED – Faculdade Meridional, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Promotor de Justiça no Rio Grande do Sul.
E-mail: [email protected] | ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9828-2664

2 Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Diretor do Campus IMED Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.
E-mail: [email protected] | ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4475-2469

3 Universidad Nacional de Córdoba, Córdoba, Argentina; doctoranda e investigadora (Instituto de Investigación en Ciencias Jurídicas). Magistrada de la Cámara de Apelaciones en lo Civil y Comercial de 5.ª Nominación, Córdoba, Argentina. Universidad Blas Pascal, Córdoba, Argentina. Abogada, Universidad Nacional de Córdoba, Córdoba, Argentina.
E-mail: [email protected] | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7956-1016

Resumo

Ações judiciais envolvendo o acesso a serviços públicos de saúde, assim como medicamentos e tratamentos, representam uma parcela significativa dos processos que ingressam diariamente no Poder Judiciário e que, posteriormente, pela via recursal, acessam aos tribunais superiores. As ações em geral caracterizam-se por sua semelhança, tanto na narrativa dos fatos como nas teses jurídicas. O instituto da repercussão geral para o conhecimento dos recursos extraordinários dirigidos ao Supremo Tribunal Federal, introduzido na Constituição Brasileira em 2004, procura aperfeiçoar a prestação jurisdicional, determinando que somente serão conhecidos os recursos que comprovarem uma repercussão geral econômica, social, jurídica ou política. Atualmente, várias questões relacionadas com o acesso à saúde tiveram repercussão geral já reconhecida. O objetivo da pesquisa é identificar, nas decisões de reconhecimento de repercussão geral, quais as variáveis mais frequentes sensibilizaram o STF a conhecer dos recursos, proporcionando uma referência prospectiva à condução das ações que versam sobre direito à saúde nas fases recursais extraordinárias. Com metodologia mista, inicia-se com a revisão bibliográfica destinada a estruturar um referencial teórico e, em seguida, uma pesquisa empírica qualitativa sobre a fundamentação das decisões de reconhecimento de repercussão geral. As conclusões sinalizam para uma preponderância atribuída às repercussões sociais e econômicas das decisões.

Palavras-chave: Direito Sanitário. Direito Processual Civil. Direito Constitucional. Recurso Extraordinário. Repercussão Geral.

Abstract

Lawsuits involving access to public health services, as well as medicines and treatments, represent a significant proportion of the cases that today enter the Judiciary daily and that, later, through the appealing, will have access to the higher courts. These cases in general are characterized by their similarity, both in narrative of facts and in legal theses. The institute of general repercussion for the admissibility of extraordinary appeals to the Federal Supreme Court, introduced in the Brazilian Constitution in 2004, seeks to improve jurisdictional activity, determining that only those appeals that prove a general economic, social, legal or political repercussion will be admitted. Several issues related to access to health have now had their general repercussions already recognized. The objective of the research is to identify, in the decisions of recognition of general repercussion, which are the most frequent arguments capable to convince the STF to admit the appeals. The importance of this research is to provide a prospective reference for actions that relate to the right to health in the extraordinary stages of the proceedings. The methodology used was mixed, starting with a bibliographical review aimed at structuring a theoretical framework and then a qualitative empirical research on the basis of the admissibility decisions of general repercussion. The conclusions point to a preponderance attributed to the social and economic repercussions of decisions.

Keywords: Sanitary Law. Civil Procedural Law. Constitutional Law. Extraordinary Appeal. General Repercussion.

1 Introdução

A estrutura piramidal do Poder Judiciário brasileiro contribui para que as cortes superiores, sobretudo o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, recebam o impacto quantitativo de ações homogêneas múltiplas, em sua maioria, com a mesma causa de pedir ou pedido. O acesso à via recursal permite, de regra, uma concentração dessas ações nas instâncias superiores, demandando rapidez e agilidade dos tribunais. Se nas instâncias inferiores essa demanda já provoca um acúmulo de processos, a situação torna-se ainda mais dramática quando se visualizam os escalões superiores do Poder Judiciário.

O fenômeno observado da judicialização da saúde pública colabora para essa concentração de feitos nas instâncias superiores. A má gestão, desequilíbrio no mecanismo de compra e distribuição de medicamentos, assim como a própria demanda superior à oferta, instiga os titulares do direito à saúde a demandarem. Em alguns casos, já flagrados pela doutrina e pela pesquisa jurídica, o fenômeno, na prática, transfere a gestão da saúde pública do Poder Executivo para o Poder Judiciário, com a produção de alguns efeitos nefastos. De um lado, o Poder Executivo repassa informalmente a responsabilidade pela gestão do orçamento ao Poder Judiciário que, por sua vez, assume uma função que não lhe pertence. De outro, o Poder Judiciário, ao interpretar a necessidade e o direito do autor, decide sobre a imputação de ônus a um orçamento público que não é de sua responsabilidade, e acerca do qual não tem qualquer controle sobre a receita. Nesse cenário, a possibilidade de conflitos institucionais é evidente, assim como a oportunidade para atribuição de responsabilidades pelo caos na saúde pública. O Poder Judiciário culpa o Executivo pela má gestão da saúde pública; o Executivo, por sua vez, responsabiliza o Poder Judiciário pela interferência em seu orçamento, o que dificultaria uma ação planejada (veja-se, por exemplo, os casos em que as ações individuais culminam com o bloqueio de recursos públicos para o cumprimento de decisões).

Naturalmente, parte desse descompasso entre as políticas públicas e as decisões judiciais pode ser solucionado com a atribuição de maior segurança jurídica, de interpretações mais homogêneas a respeito do perfil dos direitos postulados e dos meios a serviço do Poder Judiciário para fazer cumprir as suas decisões. Com o propósito de amenizar a concentração de processos nas instâncias superiores e atribuir maior importância às decisões que afetam feitos múltiplos, a Emenda Constitucional nº 45/2004 introduziu o requisito da comprovação da repercussão geral para o conhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, dos recursos extraordinários. Muitas das questões, cuja repercussão geral já foi reconhecida, estão diretamente relacionadas com a judicialização do direito à saúde.

É nesse contexto que emerge o problema sugerido nessa proposta de pesquisa: identificar, nas questões de direito sanitário cuja repercussão geral foi reconhecida pelo STF, quais os argumentos e aspectos considerados relevantes pelo tribunal para o efeito de reconhecer a repercussão geral, ou mesmo rejeitá-la, independentemente do resultado de julgamento de mérito.

Os aspectos metodológicos passam por uma análise das decisões do STF por ocasião do reconhecimento ou rejeição da repercussão geral nos casos relacionados com o direito sanitário, com enfoque específico nas ações cujo objeto é o reconhecimento de direitos de natureza prestacional, sobretudo após a promulgação do novo Código de Processo Civil. Para isso, é necessário, preliminarmente, identificar empiricamente os temas relacionados com o direito sanitário que se encontram submetidos a esse sistema, buscando, posteriormente, os fundamentos adotados pelo STF para reconhecer ou rejeitar a repercussão geral em cada caso. Em seguida, a partir do referencial teórico indicado, a pesquisa propõe uma classificação dos argumentos, conforme tenham enfatizado o aspecto jurídico, econômico, social ou político. A importância consiste em dar uma referência prospectiva para a condução das ações que versam sobre direito à saúde nas fases recursais extraordinárias.

2 O acesso recursal aos tribunais superiores: recursos de fundamentação vinculada

O recurso especial, direcionado ao Superior Tribunal de Justiça, e o recurso extraordinário, ao Supremo Tribunal Federal, compartilham algumas características que, em primeiro lugar, os distinguem dos demais recursos comuns previstos na legislação infraconstitucional e, em segundo lugar, os aproximam entre si, permitindo que os conjugue na terminologia única de recursos “excepcionais”, segundo MANCUSO (2015, p. 129). Conforme o mesmo autor, as principais características que permitem a aproximação dos dois recursos são: a) a necessidade de prévio esgotamento das instâncias ordinárias (CARNEIRO, 2009, p. 24); b) não serem vocacionados à correção da injustiça do julgado recorrido, mas à homogeneização da interpretação da Constituição Federal (recurso extraordinário) e da legislação federal infraconstitucional (recurso especial); c) não se prestam para a revisão de questões de fato, mas apenas de direito (a respeito dessa distinção, WAMBIER, 1998; KNIJNIK, 2005); d) procedimento bipartido ou desdobrado, identificando-se preliminarmente um juízo de admissibilidade e, posteriormente, de mérito; e) seus fundamentos são constitucionais; e, por fim, f) a execução que se processa durante a pendência de sua apreciação é provisória (MANCUSO, 2015, p. 133ss).

Em síntese, essas características especiais de ambos os recursos sinalizam para a sua função diferenciada: não basta a comprovação da sucumbência para a sua admissibilidade, pois o interesse primordial em causa não é o da parte recorrente; o interesse, em certo sentido, é transindividual, e pode ser identificado com a segurança jurídica relacionada com uma aplicação uniforme da legislação federal infraconstitucional e da Constituição Federal. Na lição de MANCUSO (2015, p. 124),

Entre os recursos extraordinário (STF) e o especial (STJ), há um núcleo comum: ambos tutelam o direito federal latu sensu; e uma diferença específica: o extraordinário leva ao STF o conhecimento do direito federal contido na Constituição; o especial leva ao STJ o conhecimento do direito federal, comum, nesse sentido mesmo de não especial, porquanto as controvérsias que relevam à legislação federal diferenciada (CLT, Código Eleitoral, Código Penal Militar) deflagram, respectivamente, as competências dos órgãos judiciários especializados, igualmente postados na cúpula do Poder Judiciário - TST, TSE e STM.

Como já destacado na introdução, no caso específico do recurso extraordinário, introduziu-se um requisito complementar, que é a demonstração da repercussão geral da matéria, cuja ausência tem como consequência um juízo negativo de admissibilidade.

2.1 Os requisitos genéricos de admissibilidade dos recursos extraordinários

Com esse perfil, o recurso extraordinário destina-se à proteção do direito federal contido na Constituição Federal, exigindo, para a sua admissibilidade (juízo prévio), a comprovação, pelo recorrente, de que a decisão recorrida: a) contrariou dispositivo da Constituição; b) declarou a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgou válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição ou d) julgou válida lei local contestada em face de lei federal (art. 102, III, alíneas ‘a’ a ‘d’, da Constituição Federal).

2.2 O papel específico do instituto da repercussão geral

Com o objetivo de preservar o Supremo Tribunal Federal de processos sem relevância social, a Emenda Constitucional nº 45/2004 introduziu um novo requisito para o conhecimento de recursos extraordinários dirigidos àquela corte: a comprovação da repercussão geral do tema (§3º). Recentemente, o novo Código de Processo Civil detalhou o instituto da repercussão geral e as suas consequências. Segundo o novo código, “o Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário quando a questão constitucional nele versada não tiver repercussão geral” (art. 1035, caput, do CPC). Conforme o texto legal, a repercussão geral consiste na “existência ou não de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo” (§1º do art. 1035, do CPC).

Não há uma unanimidade com relação aos efeitos positivos do instituto, sobretudo se leva em consideração, primordialmente, o direito postulado pelo recorrente. Parte da doutrina alertou para o risco de uma técnica de “pinçamento”, quer dizer, atribuiu ao Supremo Tribunal Federal o poder de escolha das causas que julgará, sem levar em consideração os interesses dos próprios recorrentes, o que ofenderia os direitos fundamentais à ampla defesa e contraditório (IOTTI VECHIATTI; MELO FRANCO BAHIA, 2011, p. 249). De qualquer forma, o certo é que a nova técnica de seleção de julgados se encontra em plena operação. Na data da conclusão dessa pesquisa (05/10/2017), a consulta ao site do STF dá conta de que já estão acolhidas e julgadas no mérito 353 teses de repercussão geral.

O apontamento da repercussão geral da tese torna-se, portanto, um requisito complementar da admissibilidade dos recursos extraordinários. Além de atender aos requisitos genéricos, cabe ao recorrente apontar a relevância do tema sob o ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapasse o interesse subjetivo do recorrente. Naturalmente, a repercussão geral “é um conceito aberto, a ser preenchido por norma infraconstitucional, que se valeu de outros conceitos jurídicos indeterminados, para que se confira maior elasticidade na interpretação dessa exigência” (DIDIER JR; CUNHA, 2017, p. 365).

Didier aponta que, embora não haja como objetivamente antecipar os casos em que é reconhecida a repercussão geral, é possível apontar indícios, sobretudo nos seguintes casos: a) questões constitucionais que sirvam de fundamento a demandas múltiplas, como aquelas relacionadas a questões previdenciárias ou tributárias; b) causas coletivas que versem sobre temas constitucionais; c) correta interpretação ou aplicação dos direitos fundamentais, ou sua dimensão objetiva (DIDIER JR; CUNHA, 2017, p. 366).

O mesmo autor, na mesma obra, alude à classificação das hipóteses de repercussão geral proposta por Medina, Wambier e Wambier (2005), a saber:

i) repercussão geral jurídica: quando, por exemplo, estivéssemos diante da definição de um instituto jurídico;

ii) repercussão geral política: quando a decisão influenciar a relação do Estado com outros Estados, ilustrativamente;

iii) repercussão geral social: “quando se discutissem problemas relacionados à escola, à moradia ou mesmo à legitimidade do MP para a propositura de certas ações”;

iv) repercussão geral econômica: “quando se discutem, por exemplo, o sistema financeiro da habitação ou a privatização de serviços públicos essenciais” (p. 367).

Além desses indícios de repercussão geral, o novo CPC identificou algumas presunções absolutas de repercussão geral, indicadas no art. 1035, a saber, quando o julgado recorrido tenha contrariado “súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal” ou “ tenha reconhecido a inconstitucionalidade de tratado ou de lei federal”.

A primeira consequência relevante do reconhecimento da repercussão geral a respeito de um tema é a “a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional” enquanto não se decide o mérito da repercussão geral (§5º). Ainda segundo a nova legislação, “o recurso que tiver a repercussão geral reconhecida deverá ser julgado no prazo de 1 (um) ano e terá preferência sobre os demais feitos, ressalvados os que envolvam réu preso e os pedidos de habeas corpus” (§9º).

Dentre as consequências jurídicas do julgamento do mérito de uma tese de repercussão geral encontra-se a inviabilidade de seguimento dos recursos extraordinários interpostos contra decisão de tribunal que tenha se alinhado com o teor da repercussão (art. 1030, I, ‘a’ e ‘b’), assim como a possibilidade de ajuizamento de reclamação ao Supremo Tribunal Federal em casos que tenha sido reconhecida a repercussão geral, após o esgotamento das instâncias ordinárias (§5ª, inciso II).

3 A Repercussão Geral nos casos relacionados com o Direito Sanitário

O exame das ações judiciais em que se pleiteia uma prestação perante o Estado é um campo fértil para estudos qualitativos de natureza jurisprudencial, sobretudo pelo seu volume, vale dizer, número de ações ajuizadas, mas também por se tratar de ações geralmente homogêneas, com pouca variação fática ou de fundamentos jurídicos. Mormente as ações que postulam medicamentos e tratamentos têm chamado a atenção da comunidade acadêmica, gerando uma linha de pesquisa própria e em ascendência (ver, a título ilustrativo, ZAGO, 2016; DIAS BARROS; GOUVEIA PIRES DE CASTRO, 2016; ZENKNER; DOS REIS CARVALHO JUNIOR, 2016; WANG et al., 2014; PEPE et al., 2010; TRAVASSOS et al., 2013; VENTURA et al., 2010; NUNES ALVES PAIM et al., 2017; ASENSI, 2010; REIS DE SOUZA SOARES; DEPRÁ, 2012). Por isso, o que se propõe, agora, é a identificação dos casos submetidos ao Supremo Tribunal Federal com esse perfil e, posteriormente, a identificação dos fundamentos das decisões para o efeito de reconhecer a repercussão geral.

3.1 Hipóteses de reconhecimento da repercussão geral

Nesta segunda parte do trabalho, foram identificados os casos submetidos ao Supremo Tribunal Federal que tiveram a repercussão geral reconhecida. Para tanto, empregou-se, no buscador do próprio tribunal, a sua identificação, utilizando-se as palavras-chave “saúde”, “Anvisa” (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), “medicamento” e “tratamento”. Listados os casos relacionados com essas palavras-chave, foram descartados todos os que não se relacionavam diretamente com a postulação de uma prestação de saúde, medicamento ou tratamento, diretamente ao Estado. Foram desprezados, portanto, os precedentes, por exemplo, que envolviam planos de saúde ou relações intergovernamentais.

Atualmente, na esfera da judicialização do direito à saúde, foram identificados os seguintes casos cuja repercussão geral já foi admitida, porém ainda não apreciado o mérito:

    a. legitimidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública que tem por objetivo compelir entes federados a entregar medicamentos a portadores de hipotireoidismo e hipocalcemia (Tema 262);

    b. bloqueio de verbas públicas para garantia de fornecimento de medicamentos (Tema 289);

    c. o dever do Estado de fornecer medicamentos não registrados pela Anvisa (Tema 500).

    d. o dever do Estado de fornecer medicamento de alto custo a portador de doença grave que não possui condições financeiras para comprá-lo (Tema 006);

    e. melhoria do tipo de acomodação de paciente internado pelo Sistema Único de Saúde – SUS – mediante o pagamento da diferença respectiva (Tema 579);

    f. conflito entre a liberdade religiosa e o dever do Estado de assegurar prestações de saúde universais e igualitárias (Tema 952);

    g. responsabilidade solidária dos entes federados pelo dever de prestar assistência à saúde (Tema 793).

3.2 Análise dos argumentos determinantes para o reconhecimento da repercussão geral

Adotando o referencial teórico acima mencionando (MEDINA et al., 2005), os argumentos que fundamentaram o acolhimento da repercussão geral em cada um dos temas supracitados são, agora, identificados, sendo enquadrados, então, na repercussão geral social, econômica, política ou jurídica:

    Tema 262 (legitimidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública que tem por objetivo compelir entes federados a entregar medicamentos a portadores de hipotireoidismo e hipocalcemia): a repercussão geral foi reconhecida por decisão monocrática proferida pelo ministro Marco Aurélio nos autos do Recurso Extraordinário nº 605.533/MG, em 26 de fevereiro de 2010. Na decisão, destacou o ministro que a tese jurídica ultrapassava o mero interesse individual do paciente, pois envolvia a legitimidade do Ministério Público para a tutela de interesses difusos e coletivos. O tema é discutido à luz dos artigos 2º, 127, 129, II e III, 196 e 197 da Constituição Federal. Nesse caso concreto, a ênfase é na repercussão social do tema;

    Tema 289 (bloqueio de verbas públicas para garantia de fornecimento de medicamentos): nesse tema, cuja repercussão geral foi reconhecida pelo STF, em decisão conduzida pela então ministra Ellen Grace (RE 607582), está em debate a possibilidade de bloqueio de verbas públicas para garantir o fornecimento de medicamentos, em contraste com o previsto no artigo 100, §2º, da Constituição Federal, que trata das preferências nos pagamentos dos precatórios, e artigo 167, II e VII, da mesma norma, que trata da realização de despesas não previstas no orçamento. A decisão de admissão da repercussão geral, embora tenha ratificado precedentes anteriores do mesmo tribunal no sentido da viabilidade do bloqueio de verbas, aludiu, sobretudo, o argumento deduzido pelo recorrente (Estado do Rio Grande do Sul) no sentido da preservação do equilíbrio orçamentário. Nesse teor, preponderaram, aqui, considerações de natureza econômica. Pelo teor da decisão, o acento é na repercussão econômica do precedente;

    Tema 500 (o dever do Estado de fornecer medicamentos não registrados pela Anvisa): no Recurso Extraordinário nº 657.718, conduzido pelo min. Marco Aurélio, acolheu-se a repercussão geral para o efeito de apreciar se é possível, à luz da Constituição Federal, obrigar o Estado a fornecer medicamento não registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa. Nos dizeres do relator, “no tocante à repercussão geral, anota a relevância econômica e social da questão, cuja importância requer que o Supremo examine o tema do direito fundamental à saúde quando há necessidade de fornecer-se medicamento imprescindível ao bem-estar e à vida de um cidadão”, o que sinaliza para uma ênfase na repercussão econômica e social;

    Tema 006 (o dever do Estado de fornecer medicamento de alto custo a portador de doença grave que não possui condições financeiras para comprá-lo): nesse tema, suscitado no Recurso Extraordinário 566471, relatado pelo min. Marco Aurélio, o tribunal a quo (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte) negou provimento à apelação, assentando a obrigatoriedade de o Estado fornecer medicamento de alto custo. Segundo o relator,

Este tema tem-se repetido em inúmeros processos. Diz respeito à assistência do Estado no tocante à saúde, inegavelmente de conteúdo coletivo. Em outras palavras, faz-se em jogo, ante limites orçamentários, ante a necessidade de muitos considerada relação de medicamentos, a própria eficácia da atuação estatal. Em síntese, questiona-se, no extraordinário, se situação individual pode, sob o ângulo do custo, colocar em risco o grande todo, a assistência global a tantos quantos dependem de determinado medicamento, de uso costumeiro, para prover a saúde ou minimizar sofrimento decorrente de certa doença. (RE 566471).

Destacou a decisão, dessa forma, o impacto social e econômico da concessão, por via judicial, de medicamento de alto custo, à luz dos artigos 2º; 5º; 6º; 196; e 198, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal, o que indica a prevalência da repercussão social e econômica;

    Tema 579 (melhoria do tipo de acomodação de paciente internado pelo Sistema Único de Saúde – SUS – mediante o pagamento da diferença respectiva): nesse tema, além de manifestação sobre a repercussão geral, o STF já julgou o mérito, consolidando a tese segundo a qual “é constitucional a regra que veda, no âmbito do Sistema Único de Saúde, a internação em acomodações superiores, bem como o atendimento diferenciado por médico do próprio Sistema Único de Saúde, ou por médico conveniado, mediante o pagamento da diferença dos valores correspondentes” (tese consolidada). No Recurso Extraordinário original, nº 581488, conduzido pelo min. Dias Toffoli, por ocasião do reconhecimento da repercussão geral, acentuou o relator que

A questão posta em discussão nestes autos apresenta densidade constitucional e extrapola os interesses subjetivos das partes, sendo extremamente relevante para a Administração Pública, que pode deparar-se com a multiplicação de demandas semelhantes a esse objeto do presente recurso, no qual se postula o acesso à internação pelo SUS com a possibilidade de melhoria do tipo de acomodação recebida pelo usuário mediante o pagamento da diferença entre os valores correspondentes. Por isso, bem se vê que se cuida de discussão que pode vir a se repetir em inúmeros processos, fato a exigir uma definitiva manifestação desta Suprema Corte sobre todos os aspectos envolvidos nesta ação. (RE 581488).

Nesse sentido, a decisão indica para a ênfase na repercussão social e econômica;

    Tema 952 (conflito entre a liberdade religiosa e o dever do Estado de assegurar prestações de saúde universais e igualitárias): nesse caso concreto, suscitado nos autos do Recurso Extraordinário nº 979.742, com relatoria do min Roberto Barroso, o tema a ser decidido, e cuja repercussão geral foi reconhecida, é se, à luz dos princípios constitucionais da isonomia e da razoabilidade, a possibilidade de o direito à liberdade religiosa, assegurado no inc. VI do art. 5º da Constituição da República, justifica o custeio de tratamento médico indisponível na rede pública. O precedente dava conta da postulação da parte de um procedimento médico compatível com as suas convicções religiosas, indisponível no serviço público. A parte, que precisava se submeter a tratamento cirúrgico, por razões religiosas, recusava-se à transfusão de sangue, exigindo tratamento alternativo, não disponível na rede pública. Nos dizeres do relator,

A questão constitucional em exame se restringe a definir se a liberdade de crença e consciência, prevista no art. 5º, inciso VI, da CF, pode justificar o custeio de tratamento médico indisponível na rede pública. O acórdão recorrido afirmou que o direito social à saúde não se limita à garantia de sobrevivência, sendo o dever do Estado mais amplo e relacionado à provisão de condições que assegurem uma existência digna. Afirmou, assim, que não basta ao Poder Público dispor de rede de assistência médica se os serviços de saúde existentes não são compatíveis com as convicções religiosas dos pacientes. Em outras palavras, entendeu-se que equivaleria a uma omissão do Estado não possuir serviço de saúde adequado às convicções do paciente. A questão constitucional trazida neste recurso extraordinário exige a determinação da extensão de liberdades individuais. É certo que a Constituição assegura, em seu art. 5º, inciso VI, o livre exercício de consciência e de crença. E é igualmente certo que essa liberdade acaba restringida se a conformação estatal das políticas públicas de saúde desconsidera essas concepções religiosas e filosóficas compartilhadas por comunidades específicas. Afinal, dizer que o direito social à saúde é apenas aquele concretizado por uma concepção sanitária majoritária traz em si uma discriminação às percepções minoritárias sobre o que é ter e viver com saúde. A capacidade de autodeterminação, i.e., o direito do indivíduo de decidir os rumos da própria vida e de desenvolver livremente sua personalidade acabam constrangidas pelo acesso meramente formal aos serviços de saúde do Estado que excluem conformações diversas de saúde e bem-estar. No entanto, admitir que o exercício de convicção religiosa autoriza a alocação de recursos públicos escassos coloca em tensão a realização de outros princípios constitucionais. (RE 979742).

Embora o relator tenha destacado a relevância social, econômica, política e jurídica do tema, certamente os aspectos mais evidentes estão relacionados com o impacto econômico e social da questão;

    Tema 793 (responsabilidade solidária dos entes federados pelo dever de prestar assistência à saúde): o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral da questão sobre, à luz dos arts. 2º e 198 da Constituição Federal, a existência, ou não, de responsabilidade solidária entre os entes federados pela promoção dos atos necessários à concretização do direito à saúde, tais como o fornecimento de medicamentos e o custeio de tratamento médico adequado aos necessitados. A questão foi deduzida no Recurso Extraordinário nº 855178, relatado pelo min. Luiz Fux, que reconheceu a relevância do tema sob o ponto de vista econômico, político, social e jurídico.

4 Conclusões

O exame pormenorizado dos precedentes em que se reconheceu a repercussão geral em temas relacionados com o Direito Sanitário sinaliza para uma preponderância ao acolhimento de argumentos relacionados com o impacto econômico e social das decisões. Embora não tenha sido recusada em nenhum momento a presença de argumentos jurídicos e políticos, o certo é que as considerações de natureza econômica e social têm sensibilizado com maior eficácia o Supremo Tribunal Federal, o que certamente sinaliza para os operadores de Direito em geral, e interessados no tema, a ênfase a ser empregada no acesso à corte superior.

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[Received/Recebido: Outubro 10, 2017; Accepted/Aceito: Agosto 29, 2019]

DOI: https://doi.org/10.18256/2238-0604.2019.v15i1.2186

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