22-1939

Os sistemas jurídicos inteligentes e o caminho perigoso até a teoria da argumentação de Robert Alexy

The intelligent legal systems and the dangerous way to the argumentation theory of Robert Alexy

Vinícius Almada Mozetic

Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - (UNISINOS). Membro do grupo de pesquisa do Mestrado em Direito da UNOESC. E-mail: [email protected]

Resumo

A hermenêutica jurídica da tecnologia é resultado da complexidade que se dá por meio de um processo de interpretação daquilo que é influenciado pela tecnologia, não somente e diretamente nos textos, mesmo que virtualizados, mas dos casos tecnológicos baseados em contexto históricos variáveis sob a falsa ideia de eficiência que toma conta do judiciário brasileiro; um caminho que não seja percorrido apenas por um relativismo jurídico, mesmo porque as pré-interpretações desses textos virtuais continuam possibilitando uma nova interpretação e aplicação de uma lei, mesmo que por sistemas jurídicos inteligentes, os quais estão sempre condicionadas a arbitrariedades.

Palavras-chave: Sistemas inteligentes. Tecnologia. Argumentação jurídica.

Abstract

The legal hermeneutics of technology is the result of the complexity that occurs through a process of interpretation. It is influenced by technology, not only and directly in texts, even if virtualized, but of technological cases based on historical context variables under the false idea of efficiency. A path that should not be traversed only by a legal relativism, even as the pre-interpretations of these virtual texts continue to make possible a new interpretation and application of a law, even by intelligent legal system, which are always conditioned to arbitrariness.

Keywords: Intelligent systems. Technology. legal argumentation.

1 Introdução

Quando se trata de produzir simulações em termos de conhecimento num âmbito específico, discutem-se os sistemas inteligentes. O sistema jurídico inteligente é um programa de computador construído/concebido com a ajuda de um especialista em Direito para resolver problemas na área jurídica. É, e também não é de interesse dos juristas a ideia de potencializar a representação do conhecimento na forma de regras, bem como sua capacidade de simular as decisões. Esses programas estão sendo desenvolvidos, a fim de ajudar a resolver, de forma inteligente, os problemas do Direito, ou melhor, dos juízes no Direito. A ideia é ajudar o juiz a julgar sobre um case e escolher a melhor resposta e, em seguida, propor uma solução jurídica compatível com a lei e com sua consciência1, mas, para isso, é preciso superar o positivismo e também aquilo que o sustenta: o primado epistemológico do sujeito (da subjetividade assujeitadora) e o solipsismo teórico da filosofia da consciência (sem desconsiderar a importância das pretensões objetivistas do modo-de-fazer-direito contemporâneo, que recupera, dia a dia, a partir de enunciados assertóricos, o mito do dado. Aí está o problema a ser resolvido aqui. Não há como escapar disso. Apenas com a superação dessas teorias que ainda apostam no esquema sujeito-objeto é que se pode escapar das armadilhas positivistas na era da tecnologia pós-moderna.

2 Qual o significado das novas tecnologias a filosofia no direito?

Surgidas na metade dos anos setenta, a Sociedade da Informação2 e do Conhecimento abriam as portas a um tipo de sociedade caracterizada por um modo de ser comunicacional3, refletindo diretamente em todas as atividades e áreas. Sociedade em que a informação ocupa um lugar relevante e favorece o desenvolvimento das tecnologias, principalmente, de informação e comunicação (TIC). Mas, como era de se esperar, o trabalho dos juristas foi modificado como resultado dessa aplicação tecnológica, ou seja, as novas tecnologias de informação e comunicação para a ciência jurídica. Não restam dúvidas de que essas mudanças implicariam consequências imediatas. Mesmo contra esse caráter dogmático e elitista de conhecimento jurídico, a realidade é crítica, porque

[…] agora todos podem conhecer o Direito, todos podem opinar sobre o Direito em novos espaços virtuais, tais como fóruns ou blogs. A presença de computadores da informática no Direito está ganhando maturidade e os recursos e ferramentas que as NTIC disponibilizam, tanto dos operadores jurídicos como de qualquer pessoa que pretenda acessar a ciência jurídica4.

Segundo Nuria, tudo isso não se limita apenas a facilitar o acesso às fontes do Direito, mas também pode estar afetando o próprio Direito. As autoridades públicas estão generalizando e promovendo a aplicação e interpretação do Direito em rede; processo eletrônico, inteligência artificial, juiz eletrônico, acesso eletrônico pelos cidadãos aos serviços públicos que regulam a administração eletrônica.5 Portanto se está na era da comunicação e da informação, e que permite refletir sobre essa expansão tecnológica em todas as áreas, e a que mais preocupa é a do Direito6. Nesse sentido, o que importa discutir aqui é o que pode trazer a filosofia do Direito7 sobre isso? Onde há sociedade, há Direito; de onde proveem e se formam grupos sociais, normas são reconhecidas e aplicadas? Essa vida globalizada está, de alguma maneira, afetando e trazendo consigo problemas, conflitos de interesses que têm a ver com as realidades; também faz rediscutir termos como legalidade e legitimidade. A filosofia destina-se a contribuir, no Direito, para uma melhor compreensão e interação de ambas as dimensões: analisar e discutir sobre as normas válidas e valores éticos, sobre o Direito e até mesmo da justiça.8

3 Hermenêutica jurídica (crítica) da tecnologia como caminho para a teoria da decisão judicial

Ao adentar na discussão acerca da importância da hermenêutica jurídica (crítica) da tecnologia, vale destacar o interesse de Frosini, que se voltava para problemas de grande envergadura, assim como a rejeição da ideologia cibernética por Maurice Merleau-Ponty ou por Herbert Marcuse, para passar à consciência artificial geral daquela nova máquina que se apresentava, chegando, por fim, às relações entre ética, cibernética e Direito já distante de qualquer envolvimento operacional com o uso cotidiano do computador:

Se fosse possível construir um robô com uma consciência artificial, deveríamos considerá-lo, ou não, um sujeito moral? Frosini via como a máquina poderia calcular, racionar, projetar por conta do homem, mas também no lugar do homem: iniciara-se assim a história do homem-autômato, o qual deveria empenhar-se a fundo para manter despertar sua consciência moral9.

É por essa razão que a hermenêutica jurídica crítica da tecnologia se apresenta como um espaço no qual se pode pensar adequadamente numa teoria da decisão judicial na era pós-moderna, livre que está, tanto das amarras desse sujeito em que reside a razão prática, como daquelas posturas que buscam substituir esse sujeito por estruturas ou sistemas, como por exemplo – sistemas jurídicos inteligentes. Nisso talvez resida a chave de toda a problemática relativa ao enfrentamento desse impacto tecnológico, do positivismo e de suas condições de possibilidade.10 Para Streck:

A resposta (decisão) não é nem a única e nem a melhor: simplesmente se trata ‘da resposta adequada à Constituição’, isto é, uma resposta que deve ser confirmada na própria Constituição. [...] Essa resposta (decisão) não pode – sob pena de indeferimento do ‘princípio democrático’ – depender da consciência do juiz, do livre convencimento, da busca da ‘verdade real’, para falar apenas nesses artifícios que escondem a subjetividade “assujeitadora” do julgador (ou do intérprete em geral, uma vez que a problemática aqui discutida, vale, a toda evidência, igualmente para a doutrina). A decisão jurídica – não pode ser entendida como um ato em que o juiz (ou um computador dotado de inteligência artificial), diante de várias possibilidades possíveis para a solução de um caso concreto, escolhe aquela que lhe parece mais adequada. Com efeito, decidir não é sinônimo de escolher. [...] A escolha, ou a eleição de algo, é um ato de opção que se desenvolve sempre que estamos diante de duas ou mais possibilidades, sem que isso comprometa algo maior do que o simples ato personificado em uma dada circunstância11.

Ora, se a decisão jurídica – não pode ser entendida como um ato em que o juiz (ou um computador dotado de inteligência artificial) diante de várias possibilidades possíveis para a solução de um caso concreto, escolhe aquela que lhe parece mais adequada, como explicar então o caminho que estamos seguindo? Muitos cientistas são da opinião de que a atividade de julgar - legal decision making - é uma tarefa exclusivamente humana, razão pela qual os sistemas jurídicos inteligentes devem funcionar apenas como programas de alívio para a tomada de decisão judicial e, talvez, serem conhecidos como legal advisory system ou legal decision support system12. Mas, o que viria a ser esse alívio? Livrar-se das metas? Constantemente, quando alguém se depara com um problema, procura, ainda que, involuntariamente, na experiência passada, algo que se assemelha a uma situação, e que o ajude na tomada de decisões. Os sistemas jurídicos inteligentes tentam resolver os problemas analisando o caso – hard ou easy – buscam semelhanças com casos anteriores que, obviamente, têm afinidade suficiente com o uso de precedentes ao raciocínio jurídico. Basta ver o Ross, “o primeiro advogado artificialmente inteligente do mundo” construído sobre o computador cognitivo chamado Watson da IBM, projetado para ler e entender a linguagem, postular hipóteses quando perguntas feitas, pesquisar e, em seguida, gerar respostas (juntamente com referências e citações) para respaldar suas conclusões. Ross também vai aprender com a experiência, ganhando velocidade – o fetiche da eficácia – a medida em que você interage com ele.13

Não bastasse o que já foi abordado, existem modelos de argumentação jurídica artificial.14 Influenciados pelas teorias de filosofia, por exemplo a de Jürgen Habermas15 e da Filosofia do/no Direito de Robert Alexy. Alguns autores têm centrado a sua investigação no campo da argumentação como um processo dialético; de negociação; de problema relacionados à aceitabilidade e comparação de argumentos. Pois bem, entende-se que a argumentação jurídica vai desempenhar um papel importante no processo de justificação das decisões judiciais16 e, se a maior parte do objeto de técnicas de inteligência artificial é permitir a existência de modelos de raciocínio jurídico como forma de garantir uma decisão racionalmente justificada, a argumentação jurídica também será considerada como o meio de assegurar essa finalidade.

Tudo isso deriva de uma perspectiva processual da decisão judicial compreendida pela própria inteligência artificial e o Direito, em que o argumento legal é entendido tanto como um elemento de justificação da decisão, conforme apontado acima, como um elemento de explicação no que se refere à relação lógica entre os argumentos e a pretensão. Mas, há um grande problema aqui: onde está a hermenêutica? ROSS compreende o mundo? E, de acordo com a antiga tradição hermenêutica, a compreensão teve três momentos: subtilitas inteligendi, explicandi e applicandi. “Compreender é sempre interpretar”; a interpretação é a forma explícita de compreensão. Mas “compreender é sempre também aplicar”. Em suma, para o Direito, é um processo unitário entre a compreensão, interpretação e aplicação17.

4 Gadamer e os desafios tecnológicos relacionados ao direito

Atualmente, quando se fala em meios de comunicação, pensa-se imediatamente na cultura de massas. Gadamer também pensou sobre esse assunto. Observa o autor que, pelos meios de comunicação, recebe-se diariamente uma quantidade imensa de informações, o que cria uma relação entre os meios de comunicação e a cultura. O que fazer com essa informação? É preciso integrá-la à cultura do Direito. Mas existe um obstáculo que dificulta essa integração entre cultura do Direito e meios de comunicação, que segundo Gadamer gobiernan nuestras vidas. Na verdade, Gadamer busca no perderse en vacías retóricas condenatorias, ni en declamar listas e pérdidas, ni siquiera en abrir una cuenta de posibles ganancias. Diante disso, Gadamer propõe que

[…] la tarea de nuestra reflexión sobre la cultura y los medios de masas debería ser no olvidar que la cultura no es una simple institución, sino que es algo que necesita cultivo. Y lo que hay que cultivar y cuidar es la libertad de juzgar por sí mismo18.

Como mencionado anteriormente, a preocupação de Gadamer é o acelerado e massivo crescimento dos meios de comunicação e suas consequências à sociedade, à cultura jurídica, pois se está sempre exposto a um número infinito de mediações.

A postura de Gadamer não deixa de ser utópica, por duas razões: 1ª) a tensão e o estresse do cotidiano faz com que se deseje o imediato e o eficaz e se viva mais no mundo do Ser em si mesmo; 2ª). Como demostrou Ricouer, o contato com o outro jamais é direto, buscá-lo-ia pelo discurso. No pensamento de Gadamer existe uma tensão entre a tecnologia e a hermenêutica humanista, cujos conceitos básicos são: informação, senso comunicativo e a capacidade de julgar, por exemplo. O que muda em sua forma de pensar é a tensão entre o humanismo e os meios de comunicação.19

Portanto, não se trata somente de demonizar a técnica e os meios de comunicação, sua função no Direito e mesmo os problemas que advêm desse impacto tecnológico, mas domesticá-lo, ou seja, humanizá-lo, colocá-lo a serviço do homem, do sujeito, do intérprete. Gadamer não está mais interessado no mundo da vida contextualizada e objeto de ação-condição; porém, como condição do conhecimento científico e da tecnologia, algo que pode ser experimentado e articulado linguisticamente. Isso pode ser reduzido em uma única palavra: o que pode ser mediado. Esse pensamento será de suma importância ao Direito porque a hermenêutica Gadameriana é uma fenomenologia das mediações. O sentido do mundo – jurídico também – tem suas conexões e que só podem ter experiência por meio de mediações; por isso a busca pela verdade hermenêutica, que passa a ser uma verdade mediada na era tecnológica – mediada e interpretada.

É oportuno salientar a afronta Gadameriana frente aos desafios de uma mentalidade tecnológica relacionada ao Direito. Esse conhecimento da situação continua a ser determinado pelo lugar que a mente científica desempenha no mundo; Gadamer enfrenta o desafio da mentalidade tecnológica. Uma falsa responsabilidade do intérprete e que não é apenas aquela que esquece a própria situação histórica do processo, mas tudo a sua volta [...] abandona os técnicos, especialistas, cientistas, o futuro de uma humanidade que é também o futuro da liberdade20; é isso? ROSS vai nos libertar e retirar a capacidade de compreensão de mundo? Muitos dos projetos atuais em inteligência artificial e da lei, no que dizem respeito ao argumento desenvolvido, a partir da implementação de diálogos dos jogos - dialog games -, são a forma mais adequada de capturar a natureza dialética do processo argumentativo:

Desde un punto de vista técnico, los juegos se convierten en el medio para reducir la complejidad del proceso argumentativa hasta hacerla abarcable por un sistema informático. Y ello es porque, aunque los jugadores conocen desde el início las reglas y los elementos del juego, ignoran cual será el comportamiento del o de los oponentes. El número de estrategias que podemos considerar sin conocer cuál sea el comportamiento del otro jugador es muy limitado y po ello sus jugadas no resultan imprescindibles para poder seguir el curso de nuestro propio razonamiento.21

Na visão de Magalhães,

[…] lo mismo sucede con los procedimientos argumentativos que reducen la complejidad frete al argumento que se aportan con el diálogo, condicionando los ‘movimientos’ de los participantes como contrapartida de argumentos, al mismo tiempo que delimitan un campo de discusión. Muchos de los modelos dialógicos que se propusieron estaban basados en las teorías de Toulmin y Alexy. El Pleading Games de T. F. Gordon, por ejemplo, se basa en la teoría argumentativa de Alexy que difiere de otras teorías principalmente en lo que se refiere a la definición de las reglas de formación de los argumentos, que prescinden contenido del argumento y de las hipótesis de partida. Para este autor la racionalidad del proceso de raciocinio, sobre el cual se funda la validez de la argumentación, debe ser vista desde el punto de vista procedimental22.

No entanto, Streck defende a ideia que:

A contaminação pelo ‘instrumentalismo’ é visível não somente em discursos exógenos como também na legislação e nos respectivos projetos que buscam reformar os mecanismos processuais em terrae brasilis. É como se o direito e tudo o que ele representa em termos institucionais, históricos e factuais dependesse da sua utilização como um objeto, um instrumento, algo manipulável pelo intérprete. Ou, de forma reducionista, venhamos a pensar que o ‘problema da crise do direito ou da crise da operacionalidade do direito’ se deva à incapacidade de gestão por parte dos magistrados. Na verdade, está-se diante de um sincretismo ad hoc: quando interessa ao establishment dogmático (aos detentores da fala), lança-se mão da filosofia da consciência; quando já não há como ‘segurar’ esse ‘estado de natureza hermenêutico’ decorrente dessa ‘livre convicção’, ‘livre convencimento’, ‘íntima convicção’ (e suas decorrências, como o pranprincipiologismo, o axiologismo, o pragmatismo, etc.) apela-se ao mito do dado... E tudo começa de novo, como um eterno retorno...!23

5 A teoria da argumentação e os sistemas jurídicos inteligentes

Alexy afirma que a procedimentalidade da teoria da argumentação jurídica é vinculada aos limites de um modelo procedimental de quatro graus: o discurso prático geral; o procedimento legislativo; o discurso jurídico; e o procedimento judicial. É com base nesse Direito posto que a argumentação jusfundamental, especialmente com as formas e regras da interpretação na justificação externa, chega ao seu objetivo: a determinação de direitos definitivos a partir dos direitos prima facie assegurados pela declaração principiológica dos direitos fundamentais. Isso porque os princípios jurídicos apresentam-se como mandamentos de otimização passíveis de cumprimento em diferentes graus, sendo a determinação de certo direito fundamental como direito definitivo somente possível na realização do caso concreto.24 Todo esse percurso para a determinação, no caso concreto trazido ao procedimento judicial, de direitos definitivos a partir de direitos prima facie apenas se faz discursivamente, seguindo-se, de maneira imprescindível, às formas e regras da argumentação jurídica para ser tida como racional, ou seja, como correta.

Parece cristalino o fato de que Alexy delega aos sistemas jurídicos inteligentes essa possibilidade [...]. Quando ocorre de a decisão25 de um caso singular não se seguir logicamente nem das normas pressupostas nem de enunciados solidamente fundamentados de um sistema qualquer - justamente com enunciados empíricos -, nem poder ser fundamentada definitivamente com a ajuda das regras da metodologia jurídicas, então, resta ao intérprete um campo de ação senão terá de escolher entre várias soluções26 – pela inteligência artificial, a partir de normas jurídicas, regras metodológicas e enunciados de sistemas jurídicos inteligentes será possível ponderar.27 O recente desenvolvimento de sistemas de aprendizagem computacional (Computer Based Learning Systems) resultou, em alguns países, uma alteração significativa na forma como encaram o processo ensino-aprendizagem de uma inteligência artificial e do Direito, e se justifica porque tais sistemas suportam o desenvolvimento capaz de construir e organizar um argumento que é, por sua vez, uma das principais qualidades exigidas na resolução de litígios pela ponderação28. Bem, alguns teóricos de inteligência artificial e de Direito têm tomado a distinção de justiça feita anteriormente por Rawls para afirmar a natureza processual do argumento jurídico. Leenes, Lodder e Hage29 afirmam que julgar casos deveria ser comparado ao processo de jogos de azar, já que não haveria maneira de se estabelecer uma decisão única e correta.

Mas, até que ponto a teoria jurídica pode suportar um modelo estatístico para a solução de hard cases ou easy cases? Os métodos estatísticos que estão no cerne das redes artificiais neurais são capazes de abraçar a natureza complexa do raciocínio jurídico? E se sim, em que medida a teoria jurídica concorda com uma visão essencialmente procedimentalista do Direito?30 Que implicações isso tem para a formalização simbólica do Direito? Nesse momento, não se pode considerar a inteligência artificial e os sistemas jurídicos inteligentes além do que meros sistemas de apoio e suporte às decisões; muito menos substitutos do juiz e com capacidade para julgar. Para Nuria:

O projeto de um juiz robô ou uma máquina de decidir ou mesmo um legislador cibernético, continua a ser uma utopia mais sobre a ideia de substituir o governo de pessoas por máquinas. Como assinala D. Bourcier, a IA, como um ramo da ciência da computação, tenta reproduzir as funções cognitivas humanas, como raciocínio, memória, sentença ou decisão, e, em seguida, confiar parte desses poderes, a computadores. No entanto, é duvidoso que a evolução do computador tem sido capaz de chegar a representar adequadamente toda a complexidade envolvida no Direito e, mais especificamente, uma decisão legal. Uma linguagem formal pode ser modelo conceitual profundo o suficiente para representar objetos de uma forma flexível e natural, especialmente os conceitos de textura aberta citado por Hart (open-structured concepts, open textura of language); E os conceitos jurídicos vagos? E quais as lacunas jurídicas? Para isto deve ser adicionado que situação é a protecção dos dados pessoais (LOPROD 15/1999, de 13 de dezembro) dos potenciais réus (estado civil, situação bancária, registos criminais, propriedade, educação e muitos outros aspectos permanecendo sob a capa do direito à privacidade. Base de dados do computador pode conter todas as informações31.

Entende-se que não importa o quão completo é o sistema de apoio à decisão, tanto tecnicamente como juridicamente descrevendo, uma máquina não pode substituir a apreciação feita pelo juiz. Também não se pode motivar a sentença, como faz um juiz (o tal do sujeito solipsista). Um sistema de decisões artificiais, como o proposto pela IBM’s Cognitive Computer Watson – ROSS - não está se limitando a calcular32, mas racionaliza, proporcionado por um resultado que teve por base um direito positivado cheio de vícios; é o caso do Brasil.

6 Considerações finais

Um sistema jurídico inteligente não pode integrar todos esses elementos, que são essenciais para se chegar a uma decisão33. Os sistemas de auxílio às decisões são passíveis de críticas, porque se entende que atendem exclusivamente ao modo e critérios aplicados pelo seu criador: o programador. Mas, quem é ele? Por isso é que o resultado das decisões continua fortemente influenciado pelos valores, crenças e convicções – o sujeito solipsista que cria o programa de computador, utiliza, seja inteligência artificial, ou sistema artificial neural. Realmente há, nessas teorias, verdadeiros equívocos. Sobre o tema, Alexy entende que:

A decisão tomada em qualquer nível da fundamentação é, assim, uma decisão sobre o que deve ou pode ser feito ou omitido. Com ela, a ação ou comportamento de uma ou várias pessoas é preferido em relação a outras ações ou comportamentos seus, isto é, um estado de coisas é preferido em detrimento de outro. Na base de tal ação de preferir está, contudo, a enunciação da alternativa eleita como melhor em algum sentido e, portanto, uma valoração ou juízo de valor.34; 35; 36 (grifo do autor).

Então, cria-se uma torre de valores associada às tecnologias de inteligência artificial e neural. Por mais que se conheça o Direito e como ele funciona, não importa quão objetivo e imparcial tente estar um programa de auxílio para a decisão, será difícil alcançar um resultado impecavelmente justo e equitativo, ou como alguns arriscam dizer: ROSS terá a melhor resposta para o caso concreto. Tal como destaca P. Heritier37, parece que se está diante de um debate científico e filosófico “o problema hermenêutico tecnológico”, em que a filosofia do Direito e informática jurídica se fundamentam. Esse desenvolvimento da tecnologia com as questões de ordem filosófica, social e jurídica são complexas e trazem a ideia de manipulação ou mesmo o surgimento do ciberespaço e da chamada realidade virtual; talvez seja uma espécie de ponte entre a filosofia do/no Direito e a informática jurídica. Mesmo porque não é possível continuar a pensar sobre a informação jurídica como disciplina essencialmente técnica, mas, sim, como contribuição crítica significativa, de caráter filosófico e jurídico. Streck reconhece,

Junto com Ernildo Stein, que só fazemos filosofia – inclusive filosofia no direito – se essa filosofia é uma filosofia de standard de racionalidade. Isso significa que, para que o filosofar tenha resultados profícuos, é necessário que o filósofo (jurisfilósofo) possa se movimentar no interior de um paradigma filosófico ou de algo que, com Lorenz Puntel, podemos chamar de quadro referencial teórico. É a partir desse quadro referencial teórico que o trabalho filosófico irá articular suas construções no que tange a uma teoria da verdade, uma teoria da realidade, uma linguagem e uma ideia de método38.

Por essas razões, é que a filosofia do/no direito do século XXI, com todas as contribuições já alcançadas, pode e deve fornecer a saída para as teorias da argumentação, da ponderação39, através da hermenêutica jurídica crítica da tecnologia, apesar dos riscos que compõem do conteúdo artificial e técnico pós-moderno. O que não se pode fazer é deixar a filosofia no pequeno reduto da metodologia jurídica, da lógica computacional ou para a “inteligência artificial”.

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[Received/Recebido: Jun. 23, 2017; Accepted/Aceito: Dez. 12, 2017]

DOI: https://doi.org/10.18256/2238-0604.2017.v13i3.1939

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