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Direitos Humanos e Retórica Pós-Moderna

Human Rights and Postmodern Rhetoric

Narbal de Marsillac

Doutor em Filosofia pela Universidade Gama Filho - UGF (2003). Professor associado da Universidade Federal da Paraíba - UFPB, vinculado ao Departamento de Filosofia e professor do curso de mestrado e doutorado em Ciências Jurídicas e em Filosofia da UFPB. E-mail: [email protected]

Resumo

Com visões diametralmente opostas, Santos e Melkevik defendem, cada um a sua maneira, a dignidade humana e sua promoção global. A aporia dos dois posicionamentos teóricos apenas apura o senso crítico e denuncia os contornos do problema da fundamentação dos direitos humanos em um mundo pós-moderno, globalizado e cada vez mais plural. Se para o primeiro, a legitimidade desses direitos reside na radical dialogicidade e adaptabilidade aos auditórios aos quais são dirigidos, para o segundo, na qualidade de discordante razoável, é a tolerância, a solidariedade e o engajamento discursivo-democrático de uma racionalidade comunicativa que pode e deve mudar a sorte dos vulneráveis através de uma lógica de mosqueteiro que se impõe planetariamente não enquanto dada, mas enquanto força social e se traduz no dever de ser por todos e por cada um a força dos fracos. A proposta aqui é acompanhar em paralelo essas duas reflexões e se deixar influenciar pelo que as duas têm de melhor.

Palavras-Chave: Direitos Humanos. Pós-Modernidade. Retórica. Modernidade Jurídica.

Abstract

With diametrically opposed views, Santos and Melkevik defend, in their own way, the human dignity and its global promotion. The aporia of the two theoretical positions only clears the critical sense and denounces the contours of the problem of the foundation of human rights in a postmodern world, globalized and increasingly plural. If in Santos’s perspective, the legitimacy of these rights lies in the radical dialogue and adaptability to the audiences to whom they are directed, in the Melkevik’s perspective, as a reasonable discordant, is the tolerance, solidarity and the discursive-democratic engagement of a communicative rationality that might and must change the future of the vulnerable people with a musketeer logic that imposes itself globally not as given, but as a social force and is translated into the duty of being for all and for each one the strength of the weak. The proposal here is to accompany these two reflections in parallel and let to be influenced by what the two have the best.

Keywords: Human Rights. Postmodernity. Rhetoric. Legal Modernity.

1 Introdução

Não podemos chegar à sabedoria final socrática de
conhecer-nos a nós mesmos se nunca deixarmos os estreitos limites
dos costumes, crenças e preconceitos em que todo homem nasceu
(Malinowski)

O estudo do direito e dos direitos humanos pelo viés da retoricidade fornece uma chave de compreensão privilegiada da transição paradigmática para a pós-modernidade, já que cada época histórica pode ser analisada a partir do conjunto de topoi que admite e a análise dessas premissas compete a uma perspectiva eminentemente tópico-retórica. A dúvida em saber se se configuram em premissas contingentes, base de raciocínios argumentativos ou em princípios necessários, base de raciocínios demonstrativos, pode ser encontrada, como se sabe, em todos os campos do saber, mas, sobretudo, no campo da filosofia prática e, notadamente, no universo jurídico. A chamada modernidade jurídica foi fortemente marcada pelo iluminismo ou otimismo intelectual que se dissemina ao longo dos séculos XVI, XVII, XVIII e pelo cientificismo do século XIX e ainda se fez fortemente ouvir no século XX. O conhecimento humano tinha supostamente atingido seu auge e se fundava sobre bases principiológicas fortes e inabaláveis. O ideal de conhecimento é, pois, o matemático ao more geometrico cartesiano e todas as pretensas ciências deveriam, da mesma forma, espelhá-lo. Neste sentido, também as teorias do Direito modernas precisariam se fundar em princípios certos e inequívocos, o que exaltou o papel do legislador e tornou o juiz um mero aplicador da norma, como se tal atividade pudesse refletir os mesmos cálculos apodíticos das ciências formais1. Assim, a compreensão do universo jurídico passa a orbitar, em geral, em torno do conceito de demonstração e subsunção às normas legitimadas pelo conceito de contrato social e pelo ideal de soberania popular2.

Contemporaneamente, a crise do dualismo das ciências naturais e culturais e de sua objetividade3, o advento da física da relatividade de Einstein, da física quântica e da astrofísica4, o advento das lógicas não-clássicas e heterodoxas, de matemáticas não-euclidianas, etc, enfraqueceram a crença moderna em um conjunto axiomático de premissas inequívocas, em uma única razão e em uma subjetividade entendida como dada, seja enquanto expressão do sujeito do conhecimento seja um contratante de um pacto social originário5. A argumentação jurídica é que volta a ganhar fôlego e, independente da teoria do Direito adotada, passa a ser fácil admitir que sua consistência depende do alcance variável da validade de seus pontos de partida.

A ambição de elaborar uma filosofia na qual todas as teses seriam quer evidentes quer demonstráveis, de uma forma constringente, tem por consequência a eliminação de toda forma de argumentação, de rejeitar a retórica como instrumento da filosofia6

Neste contexto reconhecidamente pós-metafísico contemporâneo, ou seja, de reconhecimento nítido do caráter retórico das reflexões em geral7, a defesa dos chamados direitos humanos ou fundamentais não pode mais se sustentar em valores ou ideais necessários e universais, independentes de um contexto histórico e social, nem, tampouco, ficarem restritos a raciocínios do tipo apodíticos e cogentes. Tais esforços traduzem bem uma concepção moderna do fenômeno jurídico submetido a uma racionalidade cognitiva e instrumental que procurou assegurar a previsibilidade das relações econômicas pela ênfase na regulação e desprezo pelo elemento emancipatório próprio de um direito justo e razoável, équo e prudencial. Dir-se-ia: retórico!

O resgate ou redignificação da tópica, da argumentação e da retórica presente nas contribuições de autores como Perelman, Habermas, Viehweg, Grize e Toulmin apontam, como se vê, para a necessidade de rever o próprio conceito de razão moderna e a repensar as relações históricas entre retórica, argumentação e direito. Diferentemente de Perelman e sua nova retórica, Santos propõe uma novíssima retórica que não esteja mais comprometida, como a primeira, com um caráter técnico-argumentativo, bipolarizado entre orador e auditor. Segundo o autor português, a retórica pós-moderna precisa se pautar numa radical dialogicidade, sem espaços para premissas ou topoi permanentes, o que exige uma adaptação ininterrupta ao auditório, impossibilitando o chamado protagonismo do orador que seria análogo à valorização crescente do sujeito no pensamento moderno. Da mesma forma, o discurso que trata dos direitos humanos mais do que se pautar em supostos princípios indiscutíveis, deve continuamente preocupar-se com os auditores aos quais são dirigidos tais discursos. Como, no caso desses direitos, os interlocutores são plúrimos e multticulturais, qualquer pretensão à universalidade configuraria um desrespeito a esses mesmos direitos. Talvez, em sua pior forma: a que supostamente é fruto de um raciocínio prático, forjando o que Perelman classifica como um novo tipo de depotismo esclarecido que dotaria uma cultura ou nação a determinar para as demais o que seria moralmente correto ou relevante. Melkevik também enfrentou o problema, reconhecendo que a aculturação jurídica comporta “uma certa violência”, e que as contribuições de diferentes perspectivas culturais são desiguais8. Detentor de uma visão crítica da crítica pós-moderna, Melkevik reconhece existir inúmeras formas de pós-modernidade9 e defende que definir sobre qual tipo de posmodernismo se quer discutir pode evitar debates inúteis10. Segundo ele

A pós-modernidade é vista aqui como perspectiva cultural legitimante que, na ausência de reflexão epistemológica, seduziu por sua compreensão aparente dos traços característicos das sociedades modernas. O objetivo do posmodernismo é aqui legitimar os temas desenvolvidos teoricamente pela sociologia jurídica e, notadamente, os temas do pluralismo jurídico, da polifonia ou policentrismo em Direito e do Direito como “geografia”. O tema do pluralismo jurídico adquire uma dimensão normativa como essência mesma da nossa sociedade contemporânea tida por pós-moderna11

Vinculando pós-modernidade ao pós-estruturalismo, Melkevik entende que a nova escola jurídica pós-moderna visa justificar a necessidade da substituição da herança da modernidade jurídica pela injusta imputação a esta última dos grandes fracassos e tragédias humanas do século XX, tais como: o holocausto, o comunismo, o nazismo, o fascismo, etc.12. A pós-modernidade jurídica se configuraria, assim, como o fim das grandes narrativas jurídicas modernas que, fundadas na subjetividade e na consciência, pretendiam interpretar e dizer definitivamente o direito, fruto de uma mesma racionalidade metafísica13. O que impede, segundo o autor norueguês, de se adotar um critério minimamente razoável de diferenciação entre o legítimo e o ilegítimo. Como decidir adequadamente entre diferentes e plúrimas micronarrativas?

O posmodernismo, ao negar todas as considerações da filosofia prática que trata do poder legítimo e ilegítimo, a justiça e a injustiça, a legalidade e a ilegalidade, a normatividade e a faticidade, nos desarma diante das exigências da vida comum, assim também como no plano comunitário, estatal ou mundial. Como não há lugar lógico para tais considerações, nós não temos mais nenhuma instância para lutar contra as forças que atentam contra a humanidade ou que a quer respeitar. Assim, o posmodernismo jurídico abre a porta a todos os arbítrios.14

Lendo-se, assim, dois autores com perspectivas diferentes, salvaguarda-se o papel do discordante razoável que apura o senso crítico, ou seja, se se pensa a partir não de premissas necessárias, mas de pontos de partida contingentes e locais, o alcance de nossas reflexões está sempre circunscrito ao auditório idealizado ao qual se dirige os discursos15. Preservar o caráter razoável do recalcitrante é evitar toda sorte de metafísica acrítica, dogmática e ideológica16. Se as razões apresentadas fossem apodíticas, qualquer discordância seria um escândalo porque, nesse âmbito, os resultados dos raciocínios traduziriam apenas a transferência da necessidade da premissa para a conclusão. Se são necessários os princípios, a subsunção a estes últimos só pode levar a resultados igualmente necessários, unívocos e universais. Nesses casos, os discursos não precisam se adaptar às premissas do auditor e todos os seres de razão são constrangidos a aceitar tais conclusões. Aqui não se argumenta nem se faz uso da retórica. Mas quando falamos de pós-modernidade, falamos de descrença em metanarrativas e, portanto, em premissas necessárias e universais a partir das quais poder-se-ia pensar sem eventuais adaptações a auditores concretos. O presente texto visa acompanhar essas contribuições razoavelmente discordantes e o que elas podem suscitar no aprofundamento do senso crítico pela compreensão retórico-argumentativa do processo de luta efetiva pelo direito fundamental a ter direitos.

Desta forma, em um primeiro momento, procurou-se apresentar o conceito de pós-modernidade e a dificuldade de se definir este conceito. Em seguida, a relação entre pós-modernidade, retórica e direitos humanos também foi evocada, pois a perda do mundo em si, que coagia o pensar objetivo, suscitou a necessidade de se repensá-lo a partir de um processo de homologia, ou seja, de busca de premissas comuns consideradas intersubjetivamente como mais razoáveis. A este processo, os antigos chamavam de rhetorica. Os direitos humanos hoje também podem e devem ser vistos a partir desse prisma reconhecidamente linguístico e não-ontológico. E é justamente isso que se procurou tratar com o conceito de novíssima retórica de Santos e sua relação com o conhecimento-emancipação. Logo em seguida, viu-se o conceito de razão metonímica e de sociologia das ausências do professor português que visam ambos criticar a forma como se produz ausências no diálogo intercultural. E, por último, se problematiza as propostas de Santos a partir das contribuições de Melkevik e sua crítica ao posmodernismo jurídico.

2 A Pós-Modernidade

Por pós-modernidade, vemos uma miríade de concepções contemporâneas, artísticas e filosóficas, com características razoavelmente comuns, representadas por teóricos como Lyotard17, Bataille, Derrida e Vattimo, entre outros. Para este último pensador, o que caracteriza esse recente estilo de pensar reside nas marcas estética e retórica de toda reflexão e, por conseguinte, da perda de coercibilidade do mundo e de sua positividade que se mostra, cada vez mais, indigente18; sempre dependente de uma perspectiva hermenêutica específica. Seu conceito de pós-modernidade está relacionado ao fato de vivermos numa sociedade de comunicação generalizada.19 Pois é a veiculação de numerosas culturas e de numerosos weltanschauugen que aprimora e apura uma sociedade transparente20. Assim, o pluralismo se faz regra e as diferentes perspectivas tendem a coexistir num mesmo espaço social e, com elas, uma multiplicidade de racionalidades locais21. O que deveria gerar, segundo o pensador italiano, o reconhecimento e a autenticidade.

Fluidez e pluralismo talvez sejam as melhores palavras para resumir, de forma minimamente razoável, a fase histórica desse início do século XXI22. Através de meios de comunicação cada vez mais rápidos e sofisticados, pessoas do mundo inteiro se conectam, compram, divertem-se, vivem e experimentam, a um clik, formas de vida e culturas distintas e, muitas vezes, impensavelmente distantes de suas próprias. O mundo perdeu suas bordas e seu contornos. Tudo parece pertencer a todos ou, ao menos, a todos ser acessível. A essa absoluta liberdade de acesso à informação alia-se também uma absoluta liberdade de consumo e de produção, difundindo-se, com isso, um capitalismo planetário. O mercado virtual tem sido um dos que mais tem crescido nas últimas décadas o que permitiu que empresas ou indústrias, mesmo preservando seus habituais consumidores, mudassem para países onde a mão de obra é mais barata ou menos regulada23. Aumentando ainda mais a diferença entre os muito ricos e os muito pobres, encarcerando estes últimos do outro lado da fronteira dos indocumentados. A aparente liberdade pós-moderna é concedida aos que detêm o poder de consumir bens e serviços, mas foi negada a uma massa cada vez maior de refugiados e de miseráveis em todo planeta.

Assim, percebe-se aqui as diferentes e igualmente relevantes facetas da pós-modernidade: seja a filosófica, a sóciocultural, a econômica. Da mesma forma, existe uma pós-modernidade na arquitetura, na literatura, no cinema, nas artes em geral, no direito e na política24. O próprio esforço em conceituar de forma definitiva o que seja pós-modernidade é criticado pela postura pós-moderna que não vê com bons olhos a estratificação e o encaixotamento próprio do discurso conceitual. Ou seja, aquela mesma fluidez e indeterminação, deslimitação e incerteza daquilo que entendemos como pós-moderno retorna ao próprio conceito de pós-modernidade, fazendo-nos oscilar entre diferentes autores e suas diferentes perscpectivas. Livros e livros são publicados sobre o tema, mas nenhum consegue determinar categoricamente o que seja afinal pós-modernidade.

Da perspectiva da razão científica ou lógica filosófica, clareza e precisão deveriam ser o único objetivo do pensamento. Mas o posmodernismo, ao contrário, procura muitas vezes apreender o que escapa a esse processo de definição e celebra o que resiste e o desfaz25

Um bom meio de definir a pós-modernidade é demorar-se um pouco mais no “pós”. Depois do quê? Depois da modernidade, claro. Mas se por modernidade entendeu-se o século das luzes e do pensamento, da secularização do saber e da formação das liberdades políticas, pós-modernidade seria contra ou depois disso?

Se a modernidade é a idade do novo, do desenvolvimento e da inovação como do progresso das grandes narrativas e do capitalismo que estende sua rede para capturar culturas isoladas, então é difícil ver essas versões da pós-modernidade como algo diferente do que os últimos desenvolvimentos da modernidade antes do que vê-la como algo qualitativamente diferente26

É também a tese de Callinicos que se questiona se há, com a pós-modernidade, uma ruptura com o capitalismo moderno27. Há na verdade sua radicalização. Ou seja, o capitalismo nacional se converte em multinacional. O capitalismo organizado se converte em capitalismo desorganizado pela desintegração do Estado-Regulador e pela expansão do mercado global dominado por corporações multinacionais que destronam o poder do Estado-Nação28. A desregulamentação e falta de fiscalização de um Estado cada vez menor empobrece a capacidade de barganha da classe trabalhista que fica novamente cada vez mais à mercê de corporações onipotentes.

Outra importante característica revisionista pós-moderna é sua rejeição do sujeito e de sua centralidade na reflexão. Da mesma forma que os iluministas modernos criticaram os medievais e seu teocentrismo pelo seu caráter dogmático, os pós-modernos, em geral, criticam os modernos e seu fundamento injustificado, tido como dado desde sempre e sempre pressuposto: a subjetividade. Talvez o melhor exemplo seja o de Descartes que está tão convencido da clareza e distinção do caráter substantivo da consciência que o pronome ego nem sequer é enunciado em seu cogito29. A certeza de sua reflexão, segundo ele, deveria permanecer para sempre blindada contra qualquer crítica cética futura. Mas bastaram algumas poucas gerações e, primeiro, Hume, para quem sujeito é apenas hábito e, depois, Kant que dirige sua crítica ao dogmatismo da consciência cartesiana e, propondo substituí-lo por uma consciência que teria o caráter meramente transcendental, crê que superou definitivamente o problema. Mas, na verdade, apenas o adiou. Hegel, logo em seguida, apontará o caráter histórico do processo de consciencialização. Em seguida, com o advento do positivismo e da filosofia das ciências, renuncia-se ao questionamento a respeito do sujeito do conhecimento que passa a ser visto como algo dado30. Mas o surgimento dos críticos dos diferentes positivismos aliados à psicanálise recém-surgida denunciam o caráter dogmático de tal pressuposição.

Assim, cada vez mais, o conceito de consciência foi, ao longo da história das ideias, sendo revisto, ganhando corpo e carnalidade. Da consciência histórica hegeliana surge a pulsional nietzscheana, a sexual freudiana, a desejante, a social. Identidades que se somam umas às outras em processos ininterruptos de subjetivações, dependendo do pensador escolhido. Temos hoje outras formas de subjetividade como cyborgs, supercomputadores cada vez mais inteligentes e autônomos31. Com o abandono gradual do conceito tipicamente moderno de subjetividade, abandona-se concomitantemente o conceito de objetividade e, com esta última, o próprio conceito de mundo enquanto algo dado. É a chamada perda de coercibilidade do mundo que já se fez referência aqui e que redunda na relegitimação da retórica32 e na legitimação do direito enquanto acordos intersubjetivos33.

3 Pós-Modernidade, Retórica e Direitos Humanos

Nesta esteira de raciocínio, uma cultura emergente de direitos humanos também procura seguir a mesma linha e, portanto, defender tais direitos sem recorrer à cogência de qualquer elemento dado enquanto tal ou humanístico, como é costume, ainda comprometido com uma metafísica que reduz tudo ao homem34. O que causa talvez estranheza é o esforço em desvincular os chamados direitos humanos dos conhecidos humanismos do pós-guerra que se configuraram como um esforço internacional, depois de 1948, de se estabelecer critérios normativos comuns para a promoção de uma mesma dignidade humana35, pensada em termos essenciais e transculturais.

Também Boaventura de Sousa Santos procurou pensar estas questões, partindo do multiculturalismo, plural e multifacetado, e do abismo sem fundo provocado pelo que chamou de descumprimento das promessas da modernidade36. Os problemas tipicamente modernos herdados não podem ser solucionados segundo uma cultura moderna37, que dicotomiza sujeito e objeto, que toma como evidência a superioridade das ciências naturais em detrimento das chamadas ciências humanas, que pensa a partir ora do determinismo ora da contingência e que, sobretudo, parte da pressuposição de legitimidade universal de um tipo exclusivo de racionalidade, monológica e apodítica, que interpreta o mundo a partir de uma perspectiva eurocêntrica, centrocêntrica ou, simplesmente, ocidentalcêntrica38.

Uma rápida passagem pela literatura sobre direitos humanos recente pode mostrar, de forma indubitável, como eles estão comprometidos com os valores e perspectivas modernas. A matriz teórico-conceitual fundamental das reflexões sobre esses direitos depende da aceitação prévia dos pressupostos da modernidade. A própria noção, cara para esta tradição, de que tais direitos são universais desconhece por completo e, neste sentido, despreza o outro lado do mundo, já que esses direitos nasceram comprometidos com as revoluções burguesas que nada incorporaram das experiências sóciohistóricas não-ocidentais. Soa como se tais experiências fossem irrelevantes e que, em contrapartida, as que se deram aqui, desse lado do mundo, se configurassem na ultima verba sobre o tema e pudessem, do alto de seu pedestal, definir o que é acertado e moralmente correto a se fazer para todos os cantos do planeta. É a indiferença à diferença39 que se configura num verdadeiro desrespeito aos direitos mais fundamentais.

Por detrás dessas diferentes concepções existem diferentes premissas a respeito do tema. A postura retórica e argumentativa demanda uma plasticidade na adoção das premissas que regem a reflexão. O critério é o auditor ou leitor. Pretender assumir uma única perspectiva é adotar uma postura dogmática. Nela ainda reside uma cultura apodítica que vê nesse gênero de raciocínio o modelo especular e ideal para o pensar, desconhecendo a impossibilidade de se ter, para o âmbito da racionalidade prática, aquelas mesmas premissas necessárias e não-convencionais a partir das quais poder-se-ia inferir o que se deve fazer ou evitar. Quanto mais plurais os contextos, menos fica claro o acordo a respeito das premissas e mais dependente ficamos de um processo de homologização ou homologia que traduz o estabelecimento de pontos de partida razoavelmente comuns a partir dos quais podemos pensar. Significa dizer que, na ausência de um certum, de uma certeza apodítica sobre princípios, reconhecemos, contemporaneamente, o dubium próprio do mundo da vida e precisamos, a partir daí, tentar reconstruir um esboço razoável de premissas comuns40. Neste sentido, retórica é um processo de homologização ou de adaptação do discurso a um auditório que, hoje, reconhecemos, com Perelman, ser sempre particular41. Mesmo seu famoso auditório universal, na verdade, traduz uma idealização daquele que cumpre o papel de orador diante de seu auditório. Assim, não existe um auditório universal de fato, mas apenas de direito42, porque essa assembléia hipercrítica imaginada de mentes razoáveis serve como parâmetro e critério de sinceridade e honestidade43, já que o próprio orador enquanto tal precisa aceitar previamente os argumentos que apresenta, caso contrário, não seria propriamente universal, já que ele mesmo excluir-se-ia. Sobre isso, conclui Alexy que o auditório só é universal para quem o reconhece enquanto tal44.

Com isso se quer dizer que, para Perelman, na medida em que não se concretiza um auditório universal efetivo, o resultado do mais “objetivo” dos discursos fica dependendo da aceitação psicossocial e histórica das premissas, tidas até então como incontestadas, mas não para todo o sempre incontestáveis ou incorrigíveis, o que torna provisória e contextualizada a força ilocucionária de todos os discursos, obrigando-nos à crítica e à tolerância45 permanentes. Como sustenta Santos: “O nosso lugar é hoje um lugar multicultural, um lugar que exerce uma constante hermenêutica da suspeição contra supostos universalismos ou totalidades”46. Os direitos humanos, assim, são revistos e a validade e aceitabilidade de tais discursos se desloca da perspectiva de quem os profere, defende ou promove para aqueles a quem eles se dirigem.

4 A Novíssima Retórica e o Conhecimento-Emancipação

Na mesma esteira de Perelman, Santos reconhece o caráter retórico constituinte de todo saber, mas propõe o que chamou de novíssima retórica que acrescenta à nova retórica perelmaniana as contribuições de uma teoria crítica pós-moderna e multicultural. Um primeiro passo para compreender sua proposta é familiarizar-se com sua oposição entre conhecimento-regulação, tipicamente moderno, e que traduz o domínio e controle sobre a natureza, a capacidade preditiva, a neutralidade, imparcialidade e objetividade, cujo modelo especular foi, durante os últimos três séculos, a matemática, a física e a astronomia. O oposto deste saber é a desordem, o caos, a realidade plúrima informe. Paralelo a esse tipo de saber, há também, segundo o professor português, um saber que emancipa, que se traduz no que chamou de solidariedade ou no reconhecimento do outro enquanto outro capaz de contribuir para o diálogo. Dir-se-ia, em termos perelmanianos, que consiste na atribuição ao outro da qualidade de ser razoável. Contraposto a este último tipo de conhecimento-reconhecimento estão as diversas formas de colonialismo47.

O domínio global da ciência moderna como conhecimento-regulação acarretou consigo a destruição de muitas formas de saber sobretudo daquelas que eram próprias dos povos que foram objeto do colonialismo ocidental. Tal destruição produziu silêncios que tornaram impronunciáveis as necessidades e as aspirações dos povos ou grupos sociais cujas formas de saber foram objeto de destruição. Não esqueçamos que sob a capa dos valores universais autorizados pela razão foi de fato imposta a razão de uma raça, de um sexo e de uma classe social48

Enriquecendo, assim, a teoria da argumentação de Perelman com o que chamou de sociologia das ausências ou o esforço por fazer falar povos e culturas minoritárias sem que para tal seja evocada a linguagem hegemônica monocultural49 disseminada nos supostos valores universais. As aspirações e necessidades desses grupos sociais tornam-se, com a globalização nos moldes modernos, impronunciáveis e os valores próprios desses grupos, incompreendidos. Sua proposta é a de uma hermenêutica diatópica que suscite, pela aproximação analógica de topoi diversos, a compreensão mútua entre todos. Realizando, desta forma, propriamente o conhecimento-reconhecimento que emancipa pela sua capacidade inerente de se solidarizar com o diferente.

A ampliação do mundo e a dilatação do presente têm de começar por um procedimento que designo por sociologia das ausências. Trata-se de uma investigação que visa demonstrar que o que não existe é, na verdade, ativamente produzido como não existente, isto é, como uma alternativa não-credível ao que existe [...]. O objetivo da sociologia das ausências é transformar objetos impossíveis em possíveis e com base neles transformar ausencias em presenças50

Neste sentido, a proposta do autor lusitano representa uma radicalização daquela concepção de retórica de Perelman enquanto discurso adaptado51 pela também radical adaptação à imagem que se tem de um auditório global, o mais heterogêneo dos auditórios possíveis. Segundo o mestre belga, quando se está diante de um tal tipo de auditório, deve-se compartilhar os discursos em tantos grupos de premissas possíveis52. Assim, paulatinamente, é o localismo que se dissemina e se faz representar no grande diálogo cosmopolita, planetário e pós-colonial, num processo de globalização contra-hegemônica, que vai das antigas colonias para os antigos colonizadores e não ao contrário, quebrando efetivamente um processo longevo de subalternização, mas que apenas pode se realizar a partir da ampliação da representação política e dos processos democráticos domésticos, visando uma normatividade

Construída sem referência a universalismos abstratos em que quase sempre se ocultam preconceitos racistas e eurocêntricos. É uma normatividade construída a partir do chão das lutas sociais, de modo participativo e multicultural53

Solucionando, assim, o problema retórico-hermenêutico contemporâneo neste protagonismo efetivamente mais representativo pela inscrição constantemente renovada dos novos atores sociais e de suas novas perspectivas, cosmovisões inusitadas e demandas paroquiais. E é justamente o caráter plúrimo e multifacetado desta nova forma de protagonismo que impede que se tenha uma única teoria que esclareça, de forma razoável e definitiva, os diferentes anseios sociais. Segundo Santos, os monopólios de interpretação típicos da modernidade, tais como: Estado, religião e família, foram superados pelo discurso científico que se pautava exclusivamente pelo tipo de conhecimento-regulação, assumindo, assim, ele mesmo, a função de interpretar corretamente o mundo e ter sobre ele e, num crescendo, sobre tudo, a interpretação mais correta54. Ou seja, paralela à constituição desse monopólio interpretativo por parte do conhecimento científico exclusivamente regulador, há a renúcia à interpretação por parte dos outros setores supostamente também autorizados nos processos de esclarecimento. O que suscitou a sacralização do discurso aretórico, entendido como aquele que independe de adaptações a contextos circundantes55. O resgate do conhecimento-reconhecimento elimina o colonialismo e constrói a solidariedade que perpassa, pois, pelas aspirações e necessidades de tantas comunidades interpretativas quantas forem as comunidades políticas56. Daí Santos sustentar que o conhecimento emancipatório pós-moderno é retórico57 por se configurar, parafraseando, espaço de mútua cedência e de ganho recíproco58.

5 A Razão Metonímica e a Sociologia das Ausências

Em certo sentido, na mesma medida em que todas as culturas tendem a considerar como universais seus valores fundamentais59, todos os seres, conscientes de sua historicidade, tendem a contrair seu tempo presente e dilatar o futuro pela busca do discurso definitivo sobre as coisas, sobre o mundo e sobre si mesmos. É como se permanentemente se pretendesse emitir juízos definitivos sobre tudo e, neste sentido, monopolizar as interpretações corretas. Em outras palavras, há sempre o esforço generalizado de falar exaustivamente sobre totalidades. Mas, como já sustentava Austin no início da década de 60, não existe nenhum tipo ou classe de frases das quais se possa dizer que, enquanto tais, são incorrigíveis60. Ou seja, não existem últimas palavras sobre nada, porque somos todos e todas constantemente atropelados pela história. Significa dizer que pretender proferir a ultima verba sobre todas as coisas é pretender suspender o caráter contingente do presente, é esquecer que também somos história e, como tal, também tornar-se-ão passado todos os nossos mais corretos, elaborados e sofisticados discursos. A isso, Boaventura chamou de razão metonímica61. Por metonímia, entende-se o tropos pelo qual o orador toma o todo pela parte. Em certa medida, pode-se dizer que consiste na alma de toda retoricidade, porque toda argumentação é seletiva62 e, neste sentido, depende da seleção de dados, de sua interpretação e da produção de presença a partir de estratégias argumentativas específicas dos oradores63. Não se pode considerar todos os dados e tê-los constantemente presentes; com isso, faz-se uma seleção parcial que favorece a argumentação e que passa a representar o todo. É como se disséssemos que fatos, por exemplo, são circunscrições razoáveis na faticidade incircunscritível e ilimitada do mundo vivido. O problema surge quando se esquece ou se camufla o caráter meramente trópico-metafórico (desviado) de todo discurso e se produz, com isso, ausências ou silêncios objetivos.

Assim, tende-se a tomar o presente que se vivencia, que é apenas uma pequeníssima parte do longo curso da história, como se traduzisse, em si mesmo, o coroamento e a realização última do processo histórico como um todo e, ao fazê-lo, pudéssemos nos envolver da dignidade do historiador togado64 e julgar todos os demais a partir dessa contração do tempo presente que coagula o passado e que implica na dilatação e, por conseguinte, desconsideração do futuro. É tão somente quando, a partir de uma crítica da razão metonímica, dilata-se o presente e contrai-se o futuro que este passa a ser objeto de cuidado65

O historiador empático e que compreende tudo reune a massa de fatos, isto é, o curso objetivado da história em uma simultaneidade ideal, para preencher, desse modo o ‘tempo vazio e homogêneo’. A relação do presente com o futuro é assim privada de toda relevância para a compreensão do passado: O materialista histórico não pode renunciar ao conceito de um presente que não é transição, mas pára no tempo e se imobiliza. Porque esse conceito define exatamente aquele presente em que ele mesmo escreve a história’66

E é através da sociologia das ausências que se dilata o presente, pela sua desaceleração67, e se evita a completa desconsideração pelas outras culturas e o desperdício de suas experiências históricas distintas, seus valores, suas cosmovisões. Como quis Boaventura: a compreensão de mundo excede em muito a compreensão ocidental de mundo68, pois no afã de falar sobre tudo e de forma exaustiva a razão metonímica

[…] produz a não-existência do que não cabe na sua totalidade e no seu tempo linear. Há a produção de não-existência sempre que uma dada entidade é desqualificada e tornada invisível, ininteligível ou descartável de um modo irreversível. O que une as diferentes lógicas de produção de não-existência é serem todas elas manifestações da mesma monocultura racional69

Pelo contrário, o reconhecimento do caráter plural do protagonismo social evita que se tenha uma única teoria de tudo70 que esclareceria as demandas sociais igualmente plurais. Um diálogo efetivamente multicultural, assim, precisaria despir-se da linguagem hegemônica monocultural que nem sequer é capaz de dizer o que é próprio do outro porque já o desconsiderou em sua formação. Na verdade, em sua gênese mais originária, tal linguagem já surge deficitária e manca, mas, arrogando-se a si mesma como completa e supostamente hábil para falar por todos os povos e culturas, revela toda sua prepotência, que desqualifica e subalterniza, e incompetência, que silencia a verdade do outro.

Quando houve o ataque às Torres Gêmeas em setembro de 2001, inaugurou-se um novo tipo de guerra onde ficou omitida a identidade do adversário. Essa opacidade do inimigo71 nos impediu saber contra quem, afinal de contas, lutamos. Se não temos clareza contra quais adversários me oponho, não tenho também clareza a respeito dos meus aliados, suscitando ora a desconfiança de todos e de tudo ora a aceitação letárgica e acrítica de qualquer um. Um diálogo multicultural que se perfaz segundo a linguagem hegemônica é monocultural porque já tomou como seus inimigos todos os que não compartilham dos mesmos regimes de verdade, silenciando e inferiorizando suas legítimas pretensões. Ao mesmo tempo em que toma como aliados todos os que compartilham das mesmas formas discursivas através das quais se busca consensos. As tomadas de decisão mais acertadas são as que são tidas por mais razoáveis segundo critérios compartilhados por esses mesmos interlocutores, aliados ou sorrateiramente inimigos.

A proposta, assim, da novíssima retórica é que o diálogo multicultural não se perfaça segundo uma linguagem hegemônica, o que inverte a hierarquia tradicionalmente aceita entre orador e auditor que passa a exigir daquele primeiro, além de se adaptar às premissas do segundo, deixar-se influenciar72, numa adaptação não-hegemônica às percepções comuns, influenciando, mas também deixando-se influenciar, modificando o público que se dispõe a ouvi-lo, mas, sobretudo, modificando-se a si mesmo pela evocação permanente de epistemologias locais antes desprezadas pelos parâmetros modernos73, suscitando conhecimento prudente para uma vida decente74. Portanto, longe de uma retórica técnica que pressupõe como constantes as identidades do orador e auditor e que visa, em última instância, uma influência de mão única, a novíssima retórica de Santos não está preocupada com a técnica persuasiva, pura e simplesmente, muito menos crê na preservação de identidades, mas, antes, as vê como processos sociais interrelacionados75. Neste sentido, não há garantias ou espaços privilegiados blindados contra a mútua influência de todos.

O objetivo, segundo Santos, é procurar pensar uma retórica descomprometida com os parâmetros modernos e que não traduza mais o que chama de protagonismo do orador76. Neste tipo de abordagem, o orador conhece sobre o auditor apenas o que há de mais indispensável e que o auxilie no processo do convencimento ou da persuasão, mantendo-os distantes como outrora estavam afastados o sujeito de seu objeto77. A proposta é intensificar a dimensão dialógica intersticial da nova retórica e convertê-la no princípio regulador da prática argumentativa78, forjando, assim, uma comunidade de espíritos que efetivamente compartilhe os mesmos ares, as mesmas inquietudes, os mesmos ideais, fazendo com que o processo de convencimento ou persuasão se torne plúrimo e multidirecional, já que os papéis de orador e auditor cada vez mais se indiferenciam e se reconheçam mutuamente como intercambiáveis e indistintos79.

Agregando assim ao processo argumentativo uma plasticidade ainda impensada e uma atenção especial ao surgimento, manutenção e desaparecimento dos mais variados tipos de auditórios no sistema mundial que altera constantemente os papéis de orador e auditor e que, naturalmente, sempre questiona as premissas acordadas.

Como, pois, nesta perspectiva pensar os direitos humanos? Como esforço em substituir os antigos topoi por novos que possam satisfazer os anseios da era pós-moderna80. Os topoi são reconhecidamente epocais e circunscritos, sempre negociáveis e sem apelo à realidade última das coisas. Neste sentido, não são metafísicos, mas justamente ao contrário, são sempre perspectivas provisórias que refletem relações sociais dominantes numa dada comunidade ou auditório. Como sustenta Santos:

Não pode haver emancipação sem uma tópica de emancipação. E isso pressupõe a substituição, no espaço doméstico, de uma tópica patriarcal por uma tópica da libertação da mulher; no espaço da produção, a substituição de uma tópica capitalista por uma tópica eco-socialista; no espaço do mercado, a substiutição de uma tópica do consumismo fetichista por uma tópica de necessidades fundamentais e satisfações genuínas; no espaço da comunidade, a substituição de uma tópica chauvinista por uma cosmopolita; no espaço da cidadania, a substituição de uma tópica democrática fraca por uma tópica democrática forte; no espaço mundial, a substituição de uma tópica do Norte por uma do Sul81

Os direitos humanos pensados assim traduziriam uma nova tópica geral emancipatória, compartilhada por diversos grupos sociais ao longo do planeta, realizando melhor as demandas por solidariedade e reconhecimento por poder espelhá-las em seu próprio bojo. Mais do que satisfazer os anseios pelo progresso, tido como um topos da modernidade, nesta perspectiva, ele é convocado a se justificar, perdendo aquele estatuto de topos inquestionado82 e obrigado a se confrontar com outros argumentos, igualmente razoáveis, que procuram sustentar um futuro mais solidário pela pressuposição que todo conhecimento-reconhecimento é autoconhecimento e que, portanto, somos todos co-responsáveis pela produção de um futuro melhor para todos e todas.

6 Em Defesa de uma Modernidade Jurídica em Contínua Reconfiguração

Fortemente influenciado por Habermas e sua razão comunicativa e discordando razoavelmente, Melkevik assume uma perspectiva bastante distinta. Parte da recusa de se pensar a modernidade jurídica como algo a ser superado pela crítica jurídica pós-moderna e vê esta última com desconfiança pelo seu caráter dogmático e irracional, meio ideológico de mobilização de ressentimentos identitários83. Tais concepções de direito são enviesadas e inadequadas, traduzindo um ideo-direito que explora, magistral e sedutoramente, o irracionalismo84. Se se pergunta, por exemplo, se há um limite para a adaptação do discurso que trata dos direitos humanos, temos um problema de difícil solução. Se um determinado grupo social distante tem, como premissa e valor social, matar sumariamente crianças com problemas mentais ou extrair o clitóris de jovens adolescentes, um discurso a respeito dos direitos humanos deveria se adaptar a tais premissas locais? Até onde se pode aceitar os localismos? Quais os limites de uma hermenêutica diatópica? Deveria haver um outro critério de legitimação desses direitos que impedisse abusos e desrespeitos e que efetivamente protegesse os mais vulneráveis através de um procedimento racional de elaboração de normas protetoras dos direitos humanos. A proposta é pensar uma outra teoria do direito que incorpore apenas parcialmente a crítica pós-moderna, mas que preserve, ao mesmo tempo, os ideais modernos de liberdade, de razão e de autonomia sem, no entanto, se recorrer aos fundamentos reconhecidamente dogmáticos de pensadores modernistas.

Na perspectiva de Melkevik, o posmodernismo se pauta pela morte do homem e pela impossibilidade de se ter uma única interpretação dos textos normativos85. Estes passam a ser vistos por um viés estético subversivo e sua interpretação é sempre vista como contextualizada. O papel narrativo é ressaltado e seu poder persuasivo se limita à beleza e sentimentos que pode provocar86. É a literatura pretendendo substituir um direito visto como moribundo. Mas tal concepção é incapaz de satisfazer as exigências da sociedade e de uma situação de vida comum.87

Os aportes de uma racionalidade comunicativa nos moldes habermasianos pode mais facilmente responder essas questões. Da mesma forma que a fábula do mundo ganha densidade quando acordada por todos os concernidos, o direito e, mais precisamente, os direitos humanos têm a sua legitimidade garantida quando fruto de consenso intersubjetivo de uma determinada situação ideal de fala em que os interlocutores não são coagidos e a todos é garantido igualmente o direito de fala. Neste sentido, o fenômeno jurídico passa a se sustentar sobre a base de uma teoria normativa e sobre uma ancoragem empírica e social88. São falantes concretos que mediante instituições legítimas deixam de buscar exclusivamente seus próprios interesses e passam a se submeter a um procedimento de validação intersubjetiva de seus enunciados o que marca o caráter sempre procedimental do modelo comunicacional. O fato de poder falar e agir numa dada sociedade nos confere uma competência comunicacional que confirma o caráter comunicacional de nosso mundo da vida em comum.89

Ou seja, se o mundo perdeu sua coercibilidade, como se viu, não se perdeu, com isso, a capacidade de comunicação. Entender e ser entendido. Usar a linguagem. O mundo assim passa a ser uma construção comum não-aleatória ou irracional, mas fruto de acordos comunicacionais que orbitam em torno da busca intersubjetiva dos melhores argumentos. O que se sabe do mundo é permanentemente testado empiricamente diante de outros usuários da mesma linguagem90. E é este o a priori da comunicação. Significa dizer que não há nada que preceda o dizer propriamente dito. Não há sujeito, racionalidades estanques ou fundamentos metafísicos. Tudo se dirige para seres capazes de se comunicar e de ponderar mutuamente as razões dos discursos. É esta ação comunicativa que pode emprestar racionalidade para nossas escolhas éticas e políticas, o que destranscendentaliza a concepção tradicional de razão e a faz encarnar e habitar no mundo da vida.

As sombras projetadas sobre a parede da caverna, como quis Platão, não têm então nenhuma importância. Trata-se antes de abrir os olhos sobre o sentido que queremos todos construir juntos, aqui na nossa “caverna”, que seja unicamente humana e social91

Mais do que abandonar a modernidade jurídica, a proposta é assim levá-la à plenitude, evitando o erro de colonizar o mundo da vida com uma razão instrumental que deveria tratar apenas da produção do mundo concreto e não estender seus tentáculos para além de seus limites, ameaçando o projeto moderno de autonomia através da razão. São diferentes instâncias dialógicas e espaços sociais onde se legitimam os discursos políticos pela garantia institucional de um processo igualitário de deliberação. Salvaguarda-se, assim, a esfera de autonomia e a inviolabilidade do cidadão ao mesmo tempo em que se garante, a partir de uma concepção procedimental e discursiva dos direitos humanos, a participação racional e comunicativa na produção das normas jurídicas.

Toda compreensão do social é em consequência situada a um nível de diálogo onde ninguém deve, em princípio, ser excluído, sob o risco de mutilar a realidade mesma. Daí se conclui que uma compreensão se faz pelos indivíduos que falam uns com os outros, que expressam mútua e notadamente seus medos, suas preocupações, seus desejos, suas crenças e suas idiossincrasias, mas sobretudo que submete aos outros o resultado de suas pesquisas, suas compreensões preliminares, afim de formar juntos, mútua e empiricamente uma comunidade que teste as compreensões para estabelecer, se possível, uma compreensão compartilhada92

Outro ponto trabalhado por Melkevik é a relação entre solidariedade e vulnerabilidade. Defendendo a solidariedade como a força dos fracos93, ela consistiria no processo de reconhecimento do outro e de suas fraquezas, o que nos faz sentir como parte da humanidade, fazendo da solidariedade, entendida, assim, como uma ampliação de nós mesmos, uma identidade imaginativa mais ampla. Parece-nos hoje mais interessante, em termos políticos e morais, concentrar nossas energias no intuito de eliminar todas as formas de humilhação e crueldade, ampliar em nós o sentimento de co-pertencimento a toda humanidade, mobilizando-se diante da dor e da humilhação do outro. O que faz da solidariedade não um dever moral ou jurídico, mas uma força social que é, antes de tudo

Uma questão de engajamento, da capacidade de dizer sim ou não, de se organizar e propor os arranjos sobre o plano das normas, de direitos e de instituições, em favor do homem ferido, do indivíduo vulnerável [...] (onde) os fracos procuram adquirir a força necessária para agir em um espaço público94

Fazendo da solidariedade um dos elementos principais na constituição do tecido social, não enquanto um dado fático, como quis Durkheim, nem tampouco como um dever que pretenderia substituir a noção de caridade95, mas enquanto processo de socialização e de aprendizagem do papel que cada indivíduo deve ter na sociedade. Sendo o oposto da indiferença96, a solidariedade traduz assim um engajamento prático e efetivo em prol dos vulneráveis de um determinado grupo social e se consusbstancia em política de consolidação normativa de solidariedade97. O que dota de importância singular os movimentos ditos de solidariedade que passam a ser essenciais na luta pela democracia98 e pela defesa efetiva da dignidade humana, já que não faz sentido falar de solidariedade sem falar de sua consolidação através de instituições, de políticas próprias, de leis e organismos com esse fim específico. Os direitos humanos traduziriam, assim, normas e políticas próprias de solidariedade no plano internacional.

7 Conclusão

O que parece ficar cada vez mais claro nestas abordagens é que, com as teorias tradicionais de direitos humanos, ocorreu, segundo Santos, aquela mesma canibalização do conhecimento-reconhecimento pelo conhecimento-regulador99 e a preocupação com a regulação se tornou mais cara e essencial que a preocupação com a emancipação propriamente dita. Neste sentido, da mesma forma que o direito moderno teve como principal função garantir a ordem e previsibilidade para justamente assegurar a cultura capitalista moderna, configurando-se a si mesmo como ciência pela sua sujeição a um tipo de racionalidade cognitivo-instrumental, também os direitos humanos foram pensados a partir de critérios ou topoi de quantidade sem relacioná-los necessariamente a sua capacidade de emancipar. Pensá-los hoje a partir de uma teoria crítica pós-moderna, retórica-tópica-casuística, propicia uma compreensão de sua realidade que pode efetivamente nos levar ao que Santos chamou de repolitização global da vida coletiva100 pela disseminação do direito humano mais fundamental de participação no diálogo intercultural hodierno. Mas, ao mesmo tempo, há que se reconhecer o que há de emancipador no próprio conceito de modernidade jurídica e, mais do que ser abandonado ou superado, precisaria ser antes reconfigurado pelo conceito de racionalidade comunicativa. Autonomia, liberdade e tolerância religiosa e política, conceitos tipicamente modernos, não podem ser esquecidos quando pensamos hoje em diálogo cosmopolita e multicultural. O que há de bom na modernidade e o que há de ruim na pós-modernidade precisa ser apontado e ponderado com mais vagar do que compreensões ressentidas e ideológicas podem supor.

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Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, vol. 13, n. 3, p. 318-341, Set.-Dez., 2017 - ISSN 2238-0604

[Received/Recebido: Dez. 02, 2017; Accepted/Aceito: Jun. 27, 2017]

DOI: https://doi.org/10.18256/2238-0604.2017.v13i3.1674

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