9-1565

O neoliberalismo “eficientista” e as transformações da jurisdição

The “efficientist” neoliberalism and the jurisdiction transformations

Marcelo Oliveira de Moura(1); Jose Luis Bolzan de Morais(2)

1 Doutor em Direito (Unisinos). Professor Adjundo do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Católica de Pelotas (PPGPS-UCPEL) Advogado Criminal (Lutz e Moura Advocacia).
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2 Doutor em Direito (UFSC). Professor titular do PPGD UNISINOS e do PPGD UIT. Pesquisador do CNPQ. Procurador do Estado do Rio Grande do Sul.
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Resumo

As rearticulações contemporâneas do neoliberalismo têm promovido o aprofundamento das transformações na instituição central da modernidade. O Estado e todas suas instituições, e aqui se destaca o Poder Judiciário, tem passado por importantes redimensionamentos. Neste contexto, o presente artigo, construído por meio de uma revisão bibliográfica interdisciplinar, enfrenta o conjunto de câmbios que passa a jurisdição, dentro do cenário multifacetado de crises estatais. Partindo do reconhecimento de que na globalização tem-se a instauração de uma nova racionalidade que “orienta o mundo”, traz a reflexão sobre a forma como o espaço judicial tem tido redefinidas as funções e a operacionalidade, em face das demandas por uma gestão eficiente. A hipótese de trabalho envolveu a compreensão de que as mudanças pelas quais passa o sistema de justiça estão orientadas por discurso que sacrifica a justiça sob o primado do aumento da produtividade e diminuição das despesas. Assim, a racionalidade econômica-concorrencial passa a impor diretrizes gerencias ao sistema de justiça, o que se repercute no sacrífico da base de legitimidade material de atuação.

Palavras-chave: Neoliberalismo. Crises do Estado. Jurisdição.

Abstract

The contemporary neoliberalism rearticulations has further the deepening of the central institution of modernity. The State and all its institutions, and here the Judiciary Power enhance, has been through important resizes. In this context, this paper, built by an interdisciplinary literature review, faces the exchange set that jurisdiction passes, inside a multifaceted scenario of State Crisis. Starting from the recognition that in the globalization there are the establishment of a new rationality that “guides the world”, brings the reflection about how the shape of the judicial space has been redefined it functions and the operability, in view of demands for an efficient management. The working hypothesis has involved the understanding that the changes that the justice system has been through are guided by a speech that sacrifices the justice beneath increase of the productivity and the reducing expenditure. So, the economic-competitive rationality starts to impose management guidelines to justice system, which impact on the sacrifice of the basic legitimacy of acting material.

Keywords: Neoliberalism. State Crisis. Jurisdiction.

1 Introdução

O cenário contemporâneo de rearticulação da sociedade neoliberal tem provocado inúmeras transformações nas instituições que a modernidade constituiu para salvaguardar as relações sócio-políticas democráticas e garantir os Direitos Humanos. O Estado, de maneira bastante evidente, vem passando por um conjunto de crises que alcançam de forma especial o Poder Judiciário, promovendo significativos redimensionamentos no papel que cumpre.

Desde esta perspectiva, o presente artigo pretende enfrentar o conjunto de câmbios que passa a jurisdição no contexto acima apontado. Assim, partindo do reconhecimento de que na globalização, instrumentalizada pelo discurso neoliberal contemporâneo, tem-se a instauração de uma nova racionalidade (economicista e concorrencial) que “orienta o mundo”, o objetivo é investigar de que forma o espaço judicial tem tido redefinidas as funções e a operacionalidade, em face das demandas do “eficientismo”.

A hipótese de trabalho envolve a compreensão de que as mudanças pelas quais passa o sistema de justiça estão orientadas por discurso que sacrifica a justiça em prol do aumento da produtividade e diminuição das despesas. Fator que acaba por limitar a atividade jurisdicional ao cumprimento de metas e enquadrar o sistema de justiça à lógica autuarial, ou seja, uma tabela numérica capaz de dar resultados a certos cálculos contábeis.

Em termos estruturais, esse ensaio, que é resultado de uma revisão bibliográfica, vai dividido em três partes. Um primeiro item, no qual se recupera a problemática do Estado e da jurisdição. O segundo, com análise das trasformações do sistema de justiça no contexto do neoliberismo. E o terceiro, que traz um aprofundamento da reflexão sobre os impactos da resposta eficientista-neoliberal no âmbito da jurisdição.

2 A globalização neoliberal, a crise do estado e da jurisdição

Como se percebe há muito, no mundo da globalização contemporânea, a instituição central da modernidade vem passando por um processo de erosão em razão de um conjunto de crises, que se desdobram em suas dimensões conceitual, estrutural, institucional, funcional e política. 1 Nesse cenário de potencializada complexidade, a crise do Estado toca de maneira particular todos seus poderes. Seu evidente enfraquecimento transfere-se às instituições e afeta direta e particularmente o Poder Judiciário e a Jurisdição.

Com o redimensionamento das barreiras geográficas, com o desenvolvimento das comunicações e da economia em escala mundial, os limites territoriais do Judiciário foram extrapolados, pois foi estruturado para funcionar sob a égide dos códigos, cujos ritos e prazos são incompatíveis com tamanha expansão. Além disso, frentes fragilidades de ordem econômica, faltam ao Judiciário os recursos materiais que possibilitam acompanhar o mundo da simultaneidade e sua nova noção de tempo2, pois a dimensão funcional do Estado, destinada a possibilitar a realização da jurisdição, também se encontra desgastada.

A perda da centralidade do ente estatal para produzir e aplicar o direito, em decorrência da globalização contribui no sentido acima referido, na medida em que abre o espaço para procedimentos jurisdicionais alternativos como um meio de alcançar maior celeridade na solução dos litígios. Concomitantemente, surgem novas categorias de direitos e de sujeitos jurídicos, coletivos, individuais, homogêneos e difusos que complexizam ainda mais o quadro.

É perceptível, também, que as crises do Estado promovem uma progressiva transferência de deveres sociais do Estado-Administração para o Judiciário, onde os sujeitos intensificam a reivindicação de seus direitos mais básicos que não foram atendidos pelo Poder Executivo. Assim:

Em torno do Poder Judiciário, vêm se criando, então, uma nova arena pública, externa ao circuito clássico “sociedade civil – partidos – representação – formação da vontade majoritária”, consistindo em um ângulo perturbador para teoria clássica da soberania popular. 3

Nesse cenário, que acaba por desqualificar o espaço de debate político tradicional, em especial em seus escassos vínculos associativos e coletivos, reforça-se uma perspectiva simplificada de cidadania, onde o cidadão é sucedido pela sua “versão judiciária: o sujeito de direitos”.4 Como alerta Garapon, “a dimensão coletiva do político desaparece. O debate judicial individualiza os desafios: a dimensão coletiva existe, mas de forma incidente”.5

Em decorrência disso, potencializa-se uma justificação daquilo que se denomina ativismo judicial6, de efeitos desestabilizadores do jogo democrático institucional constituído sob o signo do check and balances. Do mesmo modo, rompe-se com as pretensões de coerência e integridade do sistema jurídico, que tende abrir-se para uma injustificada discricionariedade judicial.7 Nessa linha de reflexão Garapon alerta que:

A viragem judiciária da vida política – primeiro fenómeno – vê na justiça o último refúgio para um ideal democrático desencantado. O activismo judicial, que é um dos sintomas mais aparentes, não passa de uma peça de um mecanismo mais complexo que necessita de outros mecanismos como o enfraquecimento do Estado, a promoção da sociedade civil e, obviamente, a força dos media. Os juízes só podem ocupar tal lugar com a condição de encontrarem uma nova expectativa política que as instâncias políticas tradicionais aparentemente não satisfazem. A sua linguagem é a do direito – dos direitos do homem no nosso continente, dos direitos das minorias na América – e a sua gramática é o processo. O enfraquecimento do Estado é apenas a consequência da globalização da economia: o mercado multiplica os recursos ao jurídico e, simultaneamente, recusa o poder tutelar do Estado. Este duplo movimento – fluxo do direito e refluxo do Estado - é facilmente perceptível e, aliás, constituirá alguma novidade? Os historiadores não teriam provavelmente grandes dificuldades em encontrar precedentes históricos. Porém, tal constatação coloca em risco uma outra ‘explicação para a ascensão do juiz’, menos perceptível, mais antropológica e radicalmente inédita, ao longo da história: o desmoronamento do homem democrático.8 (grifo nosso).

Portanto, contemporaneamente, realiza-se um processo de sobrecarga do sistema de justiça, que assume, indevidamente, o compromisso de completar as lacunas que deveriam ter sido providas nas demais esferas (poderes) estatais. Um grande percentual de demandas sociais desatendidas são judicializadas, o que somado a consagração de novos direitos tem como resultado “uma explosão de litigiosidade significativa (em termos qualitativos e quantitativos), realçando ainda mais a incapacidade e as deficiências da estrutura judiciária, que passou a ser requisitada de forma ampla”.9

Dessa forma, inegável que:

as crises da Justiça fazem parte de um quadro cada vez mais intrincado de problemas que são propostos à solução, tendo-se como paradigma a continuidade da ideia de Estado de Direito – e por consequência do direito como seu mecanismo privilegiado – como instrumento apto, eficaz e indispensável para o tratamento pacífico dos litígios, e que se ligam umbilicalmente ao trato do problema relativo à transformação do Estado Contemporâneo.10

Em síntese, as crises que afetam a jurisdição também podem ser entendidas numa multidimensional perspectiva, similar a anteriormente apresentada e relativa ao Estado de forma mais geral. Uma crise da dimensão estrutural (1) que diz respeito ao seu financiamento, a seus recursos materiais, tais como instalações, funcionários, infraestrutura, bem como, ao custo despendido em razão do alongamento das demandas no contexto de afogamento do Judiciário, o chamado custo diferido. A dimensão objetiva ou pragmática (2) que se refere à lentidão dos procedimentos, à burocratização e à linguagem técnico-formal utilizada, que também culmina no acúmulo de demandas. A subjetiva (3) associada à incapacidade tecnológica de construção de novos instrumentos legais e de reformulação de mentalidades, para que os operadores do direito possam adaptar-se à nova realidade fática, pois o modelo atual não atinge as soluções buscadas para resolver os conflitos contemporâneos. A crise paradigmática (4), por fim, que diz respeito ao direito aplicável para o tratamento pacífico dos conflitos. 11

3 Compreendendo a resposta do neoliberalismo “eficientista” frente às crises da justiça

Avançando no enfrentamento do tema proposto pode-se afirmar, com suporte em Saldanha, que a resposta frente à problemática das crises que afetam o Estado Contemporâneo e, especialmente, o Poder Judiciário, localiza-se no contexto da tensão entre a busca da eficiência da Jurisdição e a sua efetividade em termos de valores e aproximação da sociedade. Tal perspectiva está diretamente relacionada à ruptura com a percepção tradicional da Jurisdição e sua unidade, a qual revela um caráter ambivalente das instituições jurídicas e do Poder Judiciário, como um espaço onde explode, na atualidade, o dilema entre quantificar e qualificar. 12

Não resta dúvida, portanto, que as instituições jurídicas, e de maneira privilegiada o Poder Judiciário, apresentam-se como uma arena de disputa, ou seja, de tensão e ambiguidades que podem, na linguagem de Santos, ser instrumentalizadas no sentido emancipatório ou regulatório. O Direito, o Estado e a Jurisdição, segundo o autor português, não são “em si mesmos” lugares de emancipação ou regulação; emancipatório ou regulatório são os usos e práticas que se fazem deles. 13

Sobre tal tema, na perspectiva apresentada por Santos, pode-se sustentar que a modernidade é “um projecto muito rico, capaz de infinitas possibilidades e, como tal, muito complexo e sujeito a desenvolvimentos contraditórios”14, que está assentado em dois pilares fundamentais: o da regulação e o da emancipação. Cada um deles constituído por três princípios. O pilar da regulação é constituído pelos princípios do Estado, do mercado e da comunidade. Já o pilar da emancipação é constituído por três lógicas de racionalidade: a estético-expressiva (da arte e literatura), a moral-prática (da ética e do direito) e a cognitivo-instrumental (da ciência e da técnica). Tais pilares, e seus princípios e lógicas encontram-se ligados por cálculos de correspondência, o que pode permitir tanto uma dinâmica harmônica entre os mesmos, como eventuais desequilíbrios.15

Os rumos assumidos pela modernidade e, mais recentemente pela própria globalização neoliberal (com toda sua lógica excludente), revelam um desequilíbrio entre estes pilares. Num primeiro momento, dá-se uma sobrevalorização dos princípios do Estado e do mercado em detrimento do princípio da comunidade, bem como, uma colonização das demais racionalidades pela cognitivo-instrumental (da ciência e da técnica). Tal desequilíbrio alçou a dimensão da regulação a uma posição de domínio sobre a dimensão da emancipação.

Pode-se afirmar que tal processo foi, em muito, uma decorrência da necessidade do projeto da modernidade enfrentar sua permanente tensão entre a perspectiva de excesso de promessas e déficit de cumprimento das mesmas. 16 A gestão reconstrutiva da tensão entre os excessos e os déficits foi, conforme Santos, “progressivamente confiada à ciência que, no processo, e por critérios de eficiência por ela própria ditados, foi colonizando com sua racionalidade as demais racionalidades em circulação no campo da emancipação”.17

Deste modo, ocorreu a concentração das energias emancipatórias na ciência e na técnica; contudo, a hipercientifização do pilar da emancipação desequilibrou as relações de reciprocidade entre este e o da regulação, favorecendo, também, a concentração do pilar da regulação no princípio do mercado (ajustado às lógicas de eficácia e eficiência), do que resultou uma redução e neutralização da complexidade dos pilares, os quais se entrelaçaram e se interpenetraram até cada um se tornar o duplo do outro.”18

O resultado desse processo constitui uma sociedade ocidental moderna que se pautou com prioridade nos critério da eficiência, redimensionado pela ênfase regulatória do mercado e da ciência/técnica.19

Nesta perspectiva, é viável sustentar, também, como primeira hipótese, que, na atual fase da globalização e de suas crises, a Jurisdição passa por um conjunto de transformações que têm servido para a estruturação de um novo modelo regulatório, que se desenha com o afastamento dos “postulados clássicos e que visa a atender, muito mais, ao postulado da eficiência do que ao da efetividade em termos de qualidade”.20 Resultado da demanda neoliberal que:

facilitou a que o Direito, em geral, e a jurisdição – e o direito processual – em particular, fossem reduzidos a facilitadores do ideário dos interesses estratégicos do mercado. A jurisdição, na sua especificidade, vê se reduzida a barèmisation, à estratégia da quantificação e da solução rápida dos litígios. É a justiça neoliberal que experimenta novos critérios de externalização de suas práticas, sendo o maior deles a eficiência e que insere no grupo mais amplo das instituições reduzidas ao fluxo, ao movimento pendular do mercado, bem ao gosto dos defensores da teoria da análise econômica do direito.21 (grifo nosso).

Garapon afirma que esse novo modelo de justiça neoliberal traz novos critérios delineadores da atividade da jurisdição, destacando a eficiência, como o metavalor que abre a frente de todos os outros. Possibilitando um conjunto de inovações que surgem como reações à explosão da demanda, a massificação dos litígios, e a censura à lentidão, e vem obrigando o sistema de justiça a se repensar em termos de fluxo – a justiça se tornou um bem de consumo corrente. Assim, o problema que é lançado não é tanto saber se o sistema de justiça tem julgado com qualidade, mas se ele “eficientemente” vem evacuando o fluxo de litígios.22

Desse modo, a eficiência neoliberal vem contribuindo para uma redefinição da justiça, a qual se torna um produto desta “imensa empresa de serviços” que está se transformando o Estado. Modelo de compreensão que apresenta o efeito perverso de reduzir toda avaliação da justiça por aquilo que é mensurável: pelo tempo e pelo dinheiro.23 Importante lembrar aqui, que “enquanto o lucro e a eficiência do processo produtivo comandado pelo capital podem ser quantificados (ou reduzidos ao quantificável), a qualidade de vida é essencialmente qualitativa.” 24

Nesta onda pode-se dizer que o modelo neoliberal:

substitui traiçoeiramente aos princípios da justiça clássica, por outros critérios como a eficiência, as vantagens comparativas ou a segurança. Nessa competição entre o direito e a eficiência, essa última tem uma vantagem certa, haja vista que ela é metamoral. Como consequência, ela conserva seu próprio princípio de justiça: O princípio do interesse ou da utilidade se apresenta como o princípio normativo supremo, como o único natural, o único possível, o único evidente. Ele se impõe às sociedades e aos homens e deve se tornar o guia da reforma geral das instituições. [...] A racionalidade neoliberal instala, inevitavelmente, uma laicização das instituições, revaloradas com uma racionalidade que lhe é totalmente estranha – a concorrência e o empreendimento.25

Sob o olhar de Hinkelammert pode-se ver esse fenômeno a partir de um quadro de critérios que orientam, em termos axiológicos, o mundo as relações modernas, quais sejam, valores da competitividade, da eficiência, da racionalização e funcionalização dos processos institucionais e técnicos: os valores da ética do mercado. Diretrizes que marcam uma racionalidade reduzida à dimensão económica que se “han impuesto en nuestra sociedad actual con su estrategia de globalización como nunca antes en ninguna sociedad humana, inclusive el período capitalista anterior”.26 Aquilo que pode ser sintetizado como valor do cálculo de utilidade própria, que parte do pressuposto de monetarização de todos os espaços da vida, no qual tudo é transformado em objeto – tudo é reduzido a um preço. Tal cálculo surge no interior da contabilidade empresarial onde impera uma visão do mundo como mecanismo de funcionamento: a empresa e seu cálculo de custos e benefícios. 27

Este surgimiento de los mecanismos de funcionamiento da al cálculo de utilidad propia una nueva especificación. Surge ahora como cálculo de perfeccionamiento de estos mecanismos y este perfeccionamiento se llama eficiencia. Aparece como cálculo de eficiencia en función del perfeccionamiento del mecanismo de funcionamiento, que opera por medio del cálculo de costo y beneficio. Surgido desde la empresa económica, transforma toda la institucionalidad. 28 (grifo nosso).

Nesse contexto, todas as instituições são mecanismos de funcionamento por aperfeiçoar. Não apenas a empresa, mas o Estado, a família, a Igreja, também todos os indivíduos em suas relações: todos calculam suas possibilidades de viver em termos de custo benefício.29 Assim, o Estado em todas as suas dimensões passa a ser colonizado pelo discurso da gestão empresarial, pautado por uma visão formal, abstrata e hedonista da eficiência, que despreza qualquer elemento que transcende a esfera econômica e monetária30. Vale registrar com Gaiger, que no quadro do capitalismo revigorado no contexto da globalização contemporânea, “a eficiência refere-se essencialmente à exigência de otimizar-se a relação custo/benefício, pela decisiva incidência desta sobre a rentabilidade ou a taxa de lucro dos negócios”.31

4 Neoliberalismo, direito e economia e a afirmação do metavalor da eficiência

O discurso neoliberal que dá primazia às preocupações relativas à eficiência – reduzida à lógica custo/benefício – em detrimento da equidade ou justiça, vai contaminar pensamento jurídico, especialmente, desde recepção contemporânea das propostas do movimento Law and Economics32 que sugerem a análise do Direito a partir de metodologias e pontos de vista econômicos e pragmáticos.33

Partindo da premissa de que a ciência do direito encontra-se defasada em termos de cientificidade e se mostra incapaz de dar contar das demandas impostas a ela, em especial, decorrentes das crises que afetaram o Estado Contemporâneo, o Movimento da Análise Econômica do Direito propugna a transformação da ciência jurídica em uma “verdadeira ciência, racional e positiva, mediante a análise e investigação do Direito de acordo com os princípios, categorias e métodos do pensamento econômico”.34

Cumpre destacar que o Law and Economics tem origem nos EUA, mais precisamente na Escola de Chicago, a partir dos estudos de Guido Calebresi, quem se pode denominar como fundador. Tem seu desenvolvimento inicial por parte Aaron Director e Ronald Coase, assim como, ganha especial importância com Richard A. Posner. Centrada na realidade do sistema common law, em sua história revela-se bastante heterogênea encontrando-se, no entanto, uma unidade ideológica em torno da “implementação de um ponto de vista econômico no trato das questões que eram eminentemente jurídicas”35.

Segundo Rosa e Aroso Linhares, o movimento propõe um olhar sobre o Direito em duas perspectivas. Uma primeira (positiva), levando em “os impactos das normas jurídicas no comportamento dos agentes econômicos, aferidos em face de suas decisões; e “bem estar”, cujo critério é econômico de “maximização de riquezas”, e a segunda (normativa) relativa “as vantagens (ganhos) das normas jurídicas em face do “bem estar social”.” Dito de outra maneira, as reflexões do movimento envolvem dois questionamentos: a) quais os impactos das normas legais no comportamento dos sujeitos e das instituições?; e, b) quais as melhores normas?.36

Assim, desde uma compreensão de que o sistema jurídico/ judicial não pode ser um obstáculo para o desenvolvimento econômico dos países, o Movimento da Law and Economics faz eco à demanda neoliberal37. que propõe um ajuste estrutural e realinhamento dos países a nova ordem mundial. No que tange a realidade brasileira e da América Latina em geral, destaca-se que com a recepção desse movimento,

o sistema jurídico é acusado de ser um dos principais obstáculos ao crescimento econômico, especificamente pelos custos necessários para o contractual enforcement e o contratual repudiation, ou seja, de se constituir um obstáculo ao bem-estar do Mercado na ótica neoliberal. O custo país, entendido como todos os custos acrescidos ao da transação, aponta para a ausência de maior eficiência do Poder Judiciário na garantia dos dogmas (propriedade privada e contrato), já que estes elementos seriam fundamentais para o perfeito funcionamento do mercado. A deficiente qualidade do Sistema de Justiça é apontada como um dos fatores responsáveis pela estagnação econômica, demandando, assim, um realinhamento à nova ordem mundial.38

Neste contexto, consagra-se a eficiência, entendida como melhor alocação dos recursos na lógica do mercado (custo/benefício), como critério para a avaliação das instituições estatais e, mais especificadamente, do Poder Judiciário. Uma apreciação que encontra vínculo com a “teoria da justiça eficientista” de Richard Posner, a qual resume a ideia de justiça à maximização de riqueza da sociedade. As instituições jurídicas e políticas, inclusive, as regras jurídicas individualmente tomadas, para Posner, devem ser avaliadas em função do paradigma de maximização da riqueza ou de valor econômico39. Aliás, riqueza e valor econômico para o autor são sinônimos. Assim, as regras, as instituições e as interpretações jurídicas que promovam a maximização da riqueza – eficiência – podem ser consideradas justas. Portanto, a “eficiência”, é fundacional ao direito, sendo um critério ético decisivo.40

No mesmo sentido, avultando o papel central da eficiência/maximização da riqueza, pondera Salama que:

o critério de maximização da riqueza, alçado à condição de fundação ética para o direito, possui duas idéias centrais. Primeiro, sua definição parte de uma base monetária. Justiça e aumento da riqueza medida em dinheiro se entrelaçam. Implícitas estão, portanto, as seguintes noções: (i) a de que todas as preferências podem ser traduzidas em termos monetários; (ii) a de que cada indivíduo é capaz de avaliar as conseqüências monetárias de suas interações econômicas; e (iii) a de que as preferências relevantes são aquelas registradas em mercado. Segundo, a maximização da riqueza repousa sobre uma idéia de consentimento dos indivíduos como indicação do valor dos bens. 41

Acrescenta-se, neste ponto, que o estabelecimento do critério da eficiência na avaliação do Poder Judiciário, em Posner, abarca dupla perspectiva, levando em conta a maximização da riqueza. Primeiro, no âmbito macro, da organização e administração da justiça, mais especificamente, no plano legislativo e organizacional do ordenamento jurídico; e, segundo, no plano micro, da decisão judicial strictu sensu. Nestas abordagens há uma rearticulação interna do direito pela intervenção externa da economia, para além da mudança de critério, promovendo um imbricamento das tradições common law e civil law42, o que tem como consequência a unificação de discursos. Nesse contexto, tem-se de um lado a recomendação “de ajustes estruturais no Poder Judiciário, com formas alternativas de resolução de conflitos (arbitragem e mediação), por outro, a partir do pragmatic turn, a proposição de uma nova teoria da decisão judicial “orientada pelo critério da maximização de riqueza, levado a efeito por agentes racionais implicados num processo de desenvolvimento social”. 43

Quanto aos ajustes estruturais e a contaminação do Poder Judiciário no Brasil pelo ideário neoliberal eficientista, as análises das reformas processuais produzidas no país, especialmente na Emenda Constitucional nº 45, deixam claro, que vem como uma resposta a demanda internacional do neoliberalismo global, alinhando-se as proposições da law and economic e constituindo-se numa estratégia de reforma, desde as orientações do Banco Mundial.44 Tais modificações, buscando uma padronização das concepções de Judiciário e de justiça na América Latina, segundo Saldanha se dão circunscritas ao âmbito das recomendações do Bando Mundial. “Sob um discurso aparentemente neutro”, a agência internacional indica como valores para o “aprimoramento” da prestação jurisdicional os seguintes: a) previsibilidade nas decisões; b) independência; c) eficiência; d) transparência; e) credibilidade; f) combate à corrupção; g) proteção à propriedade privada; h) acessibilidade e; i) respeito aos contratos; j) mudança no ensino jurídico.45

Importanta salienar com Hofmam, que esse modelo efientista chega ao direito brasileiro por meio da positivação constitucional do princípio da eficiência administrativa no art. 37 da Constituição Federal. A partir daí, passa a administração pública e, por conseguinte, a administração da justiça a funcionar orientada pelo paradigma da eficiência econômica. Desse modo, opera-se a troca/confusão de significados e significantes confundindo eficiência e efetividade confirmando a lógica custo-benefício.

Acrescenta ainda o autor, que isso obscurece as diferenças atinentes à prática administrativa pública e privada.46 Confirma-se, dessa maneira, o modelo gerencial no espaço da administração pública que é transferido para o cenário jurídico, e, especialmente, para as práticas processuais-decisórias: preocupadas, desde então, com o oferecimento ao jurisdicionalizado/cliente de uma prestação jurisdicional rápida e com baixo custo econômico. Objetivo pretendido em duplo sentido: a atender ao sujeito-jurisdicionado, e, sobretudo, ao mercado que prima por uma resposta, rápida, econômica e justa – para si.47

5 Considerações Finais

Do processo de globalização, em suas caraterísticas neoliberais contemporâneas, decorre um conjunto de transformações que abarca diferentes dimensões – interconectadas – da realidade: tecnológica, econômica, política, cultural e, obviamente, jurídica. No âmbito jurídico-político, especialmente no recorte proposto no trabalho, ganham relevância as complexidades relacionadas com as crises que afetam o Estado e, consequentemente, seu braço jurisdicional.

Nessa orientação, é inegável que a instrumentalização neoliberal da globalização vem promovendo, de forma otimizada, a desconstrução exaustiva da instituição central da modernidade, desenvolvendo um processo de erosão que comtempla um conjunto de crises que invade as esferas conceitual, estrutural, institucional, funcional e política do Estado. Na mesma direção, pode-se dizer que esse complexo de crises do Estado, projeta-se de maneira particular para todas suas instituições e poderes, com destaque, para o Poder Judiciário. O processo de globalização tem como um dos resultados a falência do sistema de prestação jurisdicional estatal, comprometendo sua capacidade de apresentar respostas eficazes no tratamento da conflitualidade social, o que se tem traduzido numa crise envolvendo a própria democratização do acesso à justiça.

Nesse cenário de corrosão do Estado e da Jurisdição, surge um conjunto de transformações que encontram vinculo àquilo que podemos denominar de resposta neoliberal e eficientista. Demandas que visam à estruturação de um modelo judicial a serviço dos interesses do mercado, que faz da Jurisdição um espaço de afirmação da estratégia de quantificação e da solução rápida dos litígios.

Nessa orientação, onde o valor da justiça é equiparado ao critério fundamental – metavalor – da eficiência, vai impor-se ao sistema um redimensionamento, tendo como elemento que confere legitimidade de suas operações a eficiente e rápida evacuação do fluxo de litígios, descuidando, desse modo, da qualidade dos processos de tratamento dos conflitos e de seus resultados.

Esse discurso “neoliberal eficientista” atrelado à lógica custo/benefício, que soterra a equidade e a justiça, vai conformar-se com apoio nas propostas do movimento Law and Economics, que mensuram todos os aspectos da vida pelo tempo e pelo dinheiro, monetarizando o sistema de justiça e buscando otimizar sua atuação em termos “empresarias” de maximização da riqueza (rentabilidade e taxa de lucros).

Essa perspectiva de gestão e ajustamento é adotada como agenda internacional e vem orientando o alinhamento dos países com o sistema econômico global. Com base nessas diretrizes, especialmente para a América Latina, tem sido imposto pelo Banco Mundial, um novo modelo para as instituições estatais, vendido como alternativa de modernização das suas estruturas, consideradas arcaicas e obstaculizantes da adequada dinâmica econômica. Assim, essa agência internacional traz um conjunto de valores para o “aprimoramento” da prestação jurisdicional: previsibilidade nas decisões; independência; eficiência; transparência; credibilidade; combate à corrupção; proteção à propriedade privada; acessibilidade; respeito aos contratos; e a mudança no ensino jurídico.

No Brasil a influência desse movimento é verificada na Emenda Constitucional nº 45 e seu conjunto de reformas do Poder Judiciário e encontra albergue também na Constituição Federal, na positivação do princípio da eficiência administrativa em seu artigo 37, que consagra o paradigma da eficiência econômica e o modelo gerencial no âmbito da administração pública, o qual se transfere para o espaço jurídico e, especialmente, para as práticas processuais e decisórias que começam a delinear-se como serviços prestados ao consumidor-jurisdicionalizado, considerado como um cliente que deve ter a sua disposição uma prestação rápida e com baixo custo econômico.

Como expressão clara do que se descreve, pode-se ver, por parte do Conselho Nacional de Justiça, o estabelecimento de um conjunto de “Metas” cujo objetivo é tornar o Judiciário capaz de dar respostas num ritmo cada vez mais acelerado. Motivo pelo qual a preocupação com a qualidade deixa de ser um critério importante.

Assim, observa-se no Poder Judiciário brasileiro claramente o implemento de metas de caráter político gestionário comprometidas, exclusivamente, com o aumento da produtividade decisória, o que, redunda na imposição de padrões de eficiência ao procedimento e ao próprio processo de decisão acerca dos conflitos, que compromete o caráter de atividade-meio por ele desempenhada, onde se assume como escopo a solução dos problemas do próprio sistema e o resgate de sua legitimidade social perdida na crise.

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Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, vol. 13, n. 1, p. -195, Jan.-Abr. 2017 - ISSN 2238-0604

[Artigo convidado]

DOI: http://dx.doi.org/10.18256/2238-0604/revistadedireito.v13n1p177-195

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