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Alice no país da democracia, ou através do espelho parlamentar da jurisdição constitucional: um diálogo com o professor Eduardo Mendonça sobre o neotribunado da plebe

Alice’s adventures in democracy land, or through the parliamentary looking glass of judicial review: a dialogue with professor Eduardo Mendonça about the neoplebeian tribune

Thiago Aguiar Pádua

UniCEUB e UDF. Doutorando e Mestre em Direito (UniCEUB), membro do CBEC – Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais. Ex-assessor de ministro do STF. Professor das disciplinas Direito Constitucional e Direito Civil (UDF e UniCEUB). Bolsista da CAPES. Advogado. E-mail: [email protected]

Resumo

Este artigo busca dialogar com artigo recentemente publicado pelo professor Eduardo Mendonça, no qual expõe a percepção de que o desgaste da representação político-parlamentar daria lugar a uma atuação do Supremo Tribunal Federal como representante da opinião pública. Discordamos de sua construção teórica a partir de recurso metodológico da argumentação jurídica. Realizamos análise sobre dois documentos contextualizados de nossa historiografia constitucional, advindos as vésperas de dois períodos de exceção, e que também se fundamentavam no mesmo desgaste da representação político-parlamentar: 1) missiva escrita por Monteiro Lobato em 1924 ao presidente Artur Bernardes, e, portanto, as vésperas da revolução de 1930; e, 2) artigo-manifesto escrito por Goffredo Telles Jr em 1963, e assim sendo, as vésperas do golpe de Estado Civil-Militar de 1964. Articulamos discussão de premissas, utilizando o pensamento do jurista e sociólogo argentino Roberto Gargarella, discutindo as causas do desgaste da representação político-parlamentar, constatando que tal desgaste decorre da forma como as instituições foram desenhadas, de maneira a afastar a cidadania das discussões políticas, por temor do fenômeno democrático. Concluímos constatando que ao invés de se realizar empoderamento de um agente decisório, de duvidosa conotação democrática como o STF, mais adequado seria estimular e fomentar o acesso da população à “Sala de Máquinas da Constituição”.

Palavras-chave: Desgaste da Representação Política. Suprema Corte. Opinião Pública. Sala de Máquinas da Constituição.

Abstract

This article is a dialogue with a recently published article by the professor Eduardo Mendonça, which exposes perception that the erosion of political and parliamentary representation would result in a performance of the Supreme Court as a representative body of public opinion. We disagree with his theoretical construction, articulating the critique from methodological analysis of the legal argument. We also analysis two documents of our constitutional history, coming on the eve of two periods of exception, which also were based on the same argument of erosion of political and parliamentary representation: 1) The letter written in 1924 by Monteiro Lobato to President Artur Bernardes, and therefore short before the 1930’s revolution. 2) The article-manifest written by Goffredo Telles Jr in 1963 a few days before the 1964 Civil-Military coup d’état. We articulate a discussion of premises, using the thought of the argentine sociologist and jurist Roberto Gargarella, discussing the causes of the erosion of political and parliamentary representation, noting that such thing arises from the way the political institutions were designed, in order to depart citizenship of political discussions, for the fear of the democratic phenomenon. We conclude noting that instead of performing empowerment of a decision-making agent of dubious democratic connotation, as the Supreme Court, most appropriate would be to encourage and foster the population’s access to “Engine Room of Constitution”.

Keywords: Erosion of political and parliamentary representation. Supreme Court. Public Opinion. Engine Room of the Constitution.

I. Premissas e Pressupostos

O artigo utiliza a metáfora de Alice, no país das maravilhas e através do espelho, para realizar a travessia argumentativa, ora proposta, no sentido de que a inversão de sentido, e o espelho invertido, só eles, permitiriam a identificação da representação da opinião pública através de um órgão não representativo, como o Supremo Tribunal Federal.

Para tanto, a propósito, busca-se dialogar de maneira crítica e contestadora com (e a partir das) fontes que buscam identificar a atuação do Supremo como representante ou vocalizador da opinião pública, quando identificamos momentos de nossa história constitucional, sobretudo momentos de ruptura institucional e de normalidade democrática que possuem como pressupostos os mesmos fundamentos de desgaste da representação política e parlamentar como justificadores de outra forma de representação popular.

Indicamos, teoricamente, que tais momentos de história constitucional nunca permitiram, de fato, o ingresso popular na chamada “sala de máquinas da constituição”, outra metáfora utilizada, a partir da concepção articulada pelo jurista e sociólogo Roberto Gargarella, a significar que apenas pela inversão do espelho de Alice, poderíamos observar o Supremo representando a opinião pública.

II. Introdução

A discussão sobre a identidade do Supremo Tribunal Federal é um dos núcleos centrais da discussão sobre as políticas públicas, ao menos desde 1957 quando Robert Dahl escreveu o famoso artigo sobre a Suprema Corte como tomadora de decisões em políticas públicas.1 No presente artigo objetivamos refletir sobre ideias academicamente fecundas e permeadas de variadas possibilidades discursivas, sobretudo quando tão bem escritas e elaboradas como no texto do professor Eduardo Mendonça, a quem o presente artigo se descortina como uma aproximação dialógica.2

O título do presente artigo poderia sugerir a discussão de algum escrito de Lewis Carrol, pseudônimo do reverendo Charles Lutwidge Dogson, o famoso autor de “Alice no País das Maravilhas” e de “Alice Através do Espelho”3, mas também poderia sugerir, por outro lado, discussão de escritos menos conhecidos do mesmo autor, sobre eleições e métodos de apuração eleitoral (e, portanto, sobre a democracia).4 De certa forma, visitamos Alice, brevemente, mas ela não será a nossa anfitriã exclusiva.

Alice aparecerá neste diálogo como uma imagem filosófica da liberdade e da democracia5, na qual nos inspiramos a partir das reflexões de Finn-Henning Johannessen6 ao analisar as três adaptações do livro original7, com o uso do ferramental argumentativo da “teoria do discurso”, desenvolvida por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, explorando a maneira sobre como os discursos encontrados por Alice, de seu lado da fronteira e no País das Maravilhas, ajudam a modelar a sua identidade.

Para muitas pessoas, o apelo a “Wonderland” (País das Maravilhas) significa possivelmente um espaço ficcional de refúgio, no qual as regras e as estruturas são substituídas pelo absurdo, e a pesquisa acima mencionada perquire a identidade de Alice, aliada a abordagem dos princípios da “teoria da adaptação”, da “teoria do discurso” e da “teoria das fronteiras”.8

Ao sustentar que o desgaste da “representação parlamentar” permitiria a canalização da opinião pública por meio de outros órgãos e instituições, ou “agentes decisórios” (como o Supremo Tribunal Federal), e que tal fato não significaria usurpação de poder ou “intrusão democrática”, mas antes, seria uma adequada forma de se enfrentar problemas complexos que surgem no dia a dia, busca-se uma adaptação do arranjo institucional parlamentar, fazendo o cruzamento de fronteiras constitucionalmente estabelecidas, numa jornada discursiva que, ao menos neste particular, pode ser comparada à observação de Finn-Henning Johannessen sobre a identidade de Alice, ou no presente caso: a liberdade e a democracia.

O texto intitulado “A jurisdição Constitucional como Canal de Processamento do Autogoverno Democrático”, discute temas bastante caros à democracia, sobretudo no caso brasileiro, tão marcado por rupturas institucionais e democráticas. A este respeito, observe-se que, desconsiderando, por óbvias razões, a república do café-com-leite, e contando apenas de nossa primeira revisão Constitucional no Século XX (1926) aos dias atuais (2015), apenas 5 presidentes concluíram seus mandatos: Dutra, JK, FHC (duas vezes), Lula (duas vezes) e Dilma (atualmente no segundo mandato), e apenas os dois anteriores à atual presidente, em todo o período, receberam a faixa presidencial de seu antecessor escolhido por eleições diretas e a repassaram a um sucessor investido das mesmas condições.9

Como somos copistas relativamente fiéis ao modelo madsoniano, as bases filosóficas do presidencialismo deveriam ter sido mais refletidas entre nós, sobretudo – e apesar de outros arranjos institucionais possíveis, quando a “fórmula mágica” se constitui de um complexo somatório de ideias, todas avessas a democracia, consistentes em uma federação de dois níveis, uma Carta de Direitos, um sistema representativo constituído por um Congresso bicameral e um presidencialismo forte, além de uma Suprema Corte10, em um desenho institucional criado para afastar, e não aproximar os cidadãos da democracia, sendo esta a causa maior do desgaste da representação política.11 A missiva que James Madson escreveu à Thomas Jefferson, em 10 de outubro de 1788, é disso prova robusta.12

A linha descritiva de Eduardo Mendonça, especialmente entabulada a partir do primeiro parágrafo de seu texto, embora não mencionada explicitamente, vincula-se a premissa de que estaríamos a presenciar um jogo complexo, daquele mesmo tipo que possui – ou abriga – aquilo que Mark Tushnet denominou de “constitutional hardball13, sem equivalência exata em nosso idioma, mas que poderia ser traduzido livremente como uma “bola difícil [no direito] constitucional” (ou bola constitucional difícil), atrelado muito especialmente a alta polarização ideológica dos dois maiores partidos políticos americanos, e sobre a qual se fez ressalva contra possível caráter schmittiano num jogo politicamente perigoso.14

Ressalte-se, a título de provocação preliminar, que a proposta de Mark Tushnet para resguardar a democracia americana contra os perigos do jogo, seria o surgimento de um terceiro partido, que estaria ladeado aos partidos Republicano e Democrata15, como forma de equilíbrio. Sem muitas certezas, mas imbuídos de muitas intuições, quer-nos parecer que a proposta de transferir certa parcela de representação popular para o Supremo Tribunal Federal assemelha-se com uma sugestão de que a Suprema Corte atue institucionalmente como uma espécie de Partido Político16 que representaria o equilíbrio sugestionado.

Tal arranjo de ideias não é difícil de se imaginar, quando observamos que no Brasil, ao menos no âmbito federal, o eleitor elege seus representantes para a Câmara e para o Senado, mas não escolhe os presidentes destas casas legislativas, que possuem poder de agenda extremadamente forte. São os próprios representantes eleitos que escolhem os presidentes destas casas, assim como os ministros do Supremo, embora não eleitos, são indicados pelo Presidente da República, e sabatinados pelo Senado, que de certa forma os escolhem de forma semelhante – indireta – ao que ocorre com as presidências das duas casas legislativas, com suas peculiaridades.

Imagine-se, por um instante, que a Câmara e o Senado são um Partido Político, também em nível macro, composta de variados partidos que buscarão exercer seu controle. Neste arranjo rudimentar, o Supremo Tribunal Federal poderia, também ele, ser vislumbrado como um Partido Político, uma instituição que congrega pessoas em torno da discussão de temas políticos, com decisão por maioria e quórum especial para determinadas votações, que realizará uma espécie de “diálogo institucional”.

Mas imaginar que esse “Partido Político Especial”, chamemo-lo assim, seja um canal de vocalização popular é tão crível quanto imaginar que a População elegeria Eduardo Cunha e Renan Calheiros para às presidências de suas respectivas casas legislativas em eleição direta, se lhes fosse permitido realizar tal escolha juntamente com a votação para a presidência da República. Mas não é só isso.

Trata-se de ingenuidade, por um lado, pois se a própria democracia pode ser vista como um “Partido Político”, em sentido macro, composto de vários Partidos que buscarão chegar (e se manter) no poder, assim como ocorre com os próprios Partidos, que possuem várias “alas” que buscam fazer prevalecer a vontade de um determinado grupo. Por outro lado, não seria apenas ingenuidade, mas uma aposta que não parece adequada à nossa historiografia constitucional pelo simples fato de que estaríamos apenas, e tão somente, ornamentando um filtro (mais um) à vontade popular (admitida a hipótese de que um Tribunal não eleito possa vocalizar a vontade popular17).

No presente diálogo, buscaremos demonstrar que muito embora as ideias do autor com quem se dialoga sejam importantes no que se refere ao olhar arejado sobre a função da jurisdição constitucional, quer nos parecer que pontos históricos importantes foram deixados de lado, motivo pelo qual buscaremos complementar esta discussão a partir de elementos que sugerem a necessidade de fortalecimento popular para amadurecimento da democracia, e não o fortalecimento de uma outra camada de filtragem institucional do poder, que de certa forma revive uma espécie de “Tribunado da Plebe”18, do Direito Romano. Mais do mesmo (em essência desejada), e com pouca densidade democrática, pois estruturalmente distinto.19

Não se esquece aqui que “Direito e História” mantém muitas vezes uma relação equivocada, numa metodologia mais criadora e menos descritiva, como discurso legitimador e de conteúdo apologético20; observe-se, no entanto, que no presente contexto, as referências históricas e o uso da historiografia se destinam a contestar o status quo e a defesa realizada por Eduardo Mendonça, neste diálogo que se pretende apenas uma breve, porém respeitosa manifestação pontual do necessário embate de ideias, e apenas delas. Por tais razões, cuidaremos aqui, embora de maneira breve, de refletir sobre algumas nuances históricas com projeção crítica da defesa que se realiza no presente.

Neste sentido, revisitamos alguns argumentos do jurista e sociólogo argentino Roberto Gargarella e suas análises sobre a “crise de representação política”21, bem como sobre o Constitucionalismo Latino-Americano, a sugerir que, fundamentalmente, nosso problema democrático seria a falta de acesso à “Sala de Máquinas da Constituição”22, e portanto, também a uma eventual “Sala de Máquinas da Jurisdição Constitucional” (Ou “Sala de Máquinas do Neotribunado da Plebe”), para nos referirmos a uma imagem que poderia ser criada para refletir sobre o texto de Eduardo Mendonça.

Ainda, é preciso não esquecer que o controle concentrado de constitucionalidade nasceu em 1907 em Portugal para apoiar a ditadura de João Franco, em razão de um juiz de primeiro grau se negar a reconhecer os decretos ditatoriais23, e que entre nós, no Brasil, o controle concentrado e abstrato de constitucionalidade, levado à cabo através da EC 16/1965, auxiliou o duplo centralismo da ditadura militar: federativa e orgânica.24 Tribunais e Cortes Supremas também possuem desgastes, muitas vezes mais complexos do que os dos Parlamentos em si mesmo considerados.

Revisitamos, exemplificativamente, dois episódios de nossa história institucional, como demonstrativos de que nosso “problema democrático”, às vésperas de duas ditaturas (1930 e 1964), teria sido apontado como o povo (que participava da democracia) e o divórcio entre este e seus representantes eleitos, com resultados posteriores de ruptura institucional, e com “soluções de força” implementadas por ocupantes de instituições, mas o elemento democrático inserido em importantes documentos sobre um regresso democrático posterior a tais períodos são pouco revistados: manifesto dos mineiros25 (1943) e carta aos brasileiros26 (1977).

Os dois episódios a que nos referimos são, respectivamente, a Carta que Monteiro Lobato escreveu27 ao então Presidente da República Artur Bernardes (devidamente respondida28), em 1924, na qual atribui ao povo ignorante e empobrecido os problemas de democracia, bem como o artigo escrito pelo então professor da Universidade de São Paulo, Goffredo Silva Telles Jr, na Revista de Direito da USP, chamando o golpe civil-militar de “Revolução” que “teve que pegar em armas para salvar o Brasil”, culpando o sufrágio universal de cariz liberal pelos problemas então vivenciados, utilizando pejorativamente a expressão “amassadeira do sufrágio universal”.29

Com tal abordagem queremos dizer que ambos estavam equivocados: o escritor e o professor. E estavam equivocados pelo singelo fato de que, como observa Roberto Gargarella, as engrenagens do sistema madsoniano foram criadas, e por nós largamente copiadas, para afastar o povo dos debates democráticos. Uma leitura democraticamente adequada nos leva a observar que é necessário, mais do que qualquer outra coisa, o fortalecimento da participação popular, concedendo o tão aguardado acesso à “Sala de Máquinas da Constituição”.

Passemos ao diálogo propriamente dito com artigo de Eduardo Mendonça, para que sequencialmente discutamos os documentos referidos de modo a permitir as considerações finais, mas que no presente ensaio são apenas provisórias.

III. O artigo de EBM

Em seu artigo, com o qual ora dialogamos, o professor Eduardo Mendonça analisa a “interação contínua entre os mecanismos políticos e jurídicos de decisão coletiva”, alegando-se, de fato, uma fronteira nem sempre muito clara entre os campos da política e do direito, destacando-se, ainda, uma relação dinâmica entre eles.30

Observa que o “âmbito das zonas constitucionais de penumbra” possuiria delimitação que não pode ser deixada a cargo “da opinião de quem quer que seja”, vale dizer, o estabelecimento do que venha a ser “desenvolvimento político e concretização jurídica” deve ser estabelecido pela interação entre os Poderes, a ser mediada (e permeada) por estímulos emanados da própria sociedade.

Defende, coerentemente, que institucionalmente ocorrerão protagonismos diferidos entre os distintos “agentes decisórios”, que não podem ser de antemão estipulados, pois segundo suas próprias palavras, “impor uma jurisdição constitucional forte, ignorando atuações consistentes do legislador”, seria “tão voluntarista quanto podar artificialmente o campo de atuação dos tribunais a partir de uma idealização não apenas do processo legislativo, mas também da percepção social sobre ele”.31

No item que denomina de “Representação Política e Jurisdição”, realiza indagação provocativa, de modo a colocar em xeque a ideia sobre um lugar comum na discussão acerca da legitimidade da jurisdição constitucional: “seria preciso limitar a jurisdição constitucional porque ela restringe a vontade legítima dos representantes do povo, mesmo que os representados não estejam de acordo com a ideia?” e prossegue: “Melhor nem consultá-los, aliás, para evitar uma eventual surpresa desagradável”.

Uma primeira observação neste diálogo aberto, franco e crítico, resgata o fragmento da entrevista entre Terry Eagleton e Pierre Bourdieu sobre pessoas que internalizam a opressão através do sofrimento, e, contudo, se sentem felizes, motivo pelo qual o primeiro autor pergunta ao segundo: “não seria o caso de argumentar que elas não podem ser realmente felizes se são oprimidas?32

O parágrafo citado do ensaio de Eduardo Mendonça é construído para delinear espectro argumentativo sobre a chamada “dificuldade contramajoritária”, ressaltando o autor que o Supremo Tribunal Federal em particular, e o Poder Judiciário em geral, seriam melhores avaliados pela população em determinada consulta de opinião, mencionando-se que o mesmo processo de percepção positiva ocorreria nos Estados Unidos e na Alemanha, e que o desgaste da representação parlamentar estaria relacionada, de alguma maneira, com algum prestígio da jurisdição Constitucional.33

Utiliza lateralmente dados de uma pesquisa conduzida pelo IBOPE, em 2012, para apontar que o Supremo34 estaria à frente do Congresso (54 a 39, numa escala que vai de 0 a 100). Aqui, de fato, há um argumento denso a ser aportado. O Instituto Chileno de Pesquisas Latinobarómetro vem realizando investigações, e perguntando desde 1995 a nós e a nossos vizinhos na América Latina, se concordamos com a afirmação de que “a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo?35, e os resultados devem ser analisados conjuntamente com a suposta preferência pela Jurisdição Constitucional.

Aponta-se que o Brasil, além de não estar entre aqueles que vem aumentando seu apoio à democracia (no período compreendido entre 1995 e 2013), é considerado “um dos países que possui o mais baixo apoio à democracia da região”, sendo que o ponto mais baixo foi em 2001, quando apenas 30% das pessoas responderam afirmativamente à pergunta acima, e em 2013 esse número era ainda muito baixo (49%), ao tempo em que, também em 2013, 19% dos entrevistados apoiavam um regime autoritário.36

Isso quer dizer, apenas e tão somente, que uma sociedade altamente propensa a regimes autoritários prefere o Supremo Tribunal ao Parlamento (em determinado momento histórico, e vinculado a determinada espécie de atuação), mas este fenômeno é mais complexo do que aparenta, por dois motivos em particular, sobretudo no Brasil: 1) a fragilidade de nossa democracia37, e, 2) a vedação de acesso à “Sala de Máquinas da Constituição”, decorrente de arranjo institucional cuja historicidade é tatuada nas costas de nossas instituições com tintas fortes do alto déficit democrático, justamente porque desenhadas para manter a cidadania do lado de fora das decisões importantes, desenho este que previa filtros ao clamor popular consistentes na formulação de um “sistema de poder de estado federado em dois níveis, planejado para prescindir dos acessórios da monarquia, infundindo equilíbrio de poder entre o presidente, o Congresso e a Suprema Corte”.38

Um dos vários pontos de aclive argumentativo encontra-se na chave interpretativa do que menciona ser a “fórmula mágica” de todos os tribunais que se disponham a exercer o papel que o Supremo Tribunal Federal exerce, com o deslocamento das expectativas sociais, deixando o Tribunal mais permeável à opinião pública. Neste sentido, o argumento que pretenda que a Suprema Corte seja um dos estepes da democracia, simplesmente porque permeáveis à opinião pública, ou publicada, não pode passar ao largo do desenho institucional que o previu como filtro a vontade da cidadania, aliado a outros vários filtros, como a representação parlamentar.

Não obstante, menciona o autor, com base em Barry Friedman39 e Corina Barret Lain40, que nos Estados Unidos, uma parte significativa da literatura convergiria “no reconhecimento de que a Suprema Corte consolidou a sua autoridade a partir de movimentos muito claros de alinhamento com o sentimento social dominante” que seriam marcados por “pequenas ousadias que a sociedade estaria disposta a tolerar”.41

Dois aportes se fazem necessários no presente ponto, um sobre cada autor utilizado, e poderíamos invocar aqui, ainda, outros dois (Robert Post e Reva Siegel). Em primeiro plano, as observações e as ideias de Robert Post e de Reva Siegel no difundido artigo “Roe Rage: Democratic Constitucionalism and Backlash42 afirmam que não importa se a Corte irá expressar uma visão constitucional, pois o que passa a ser importante é qual a visão constitucional que irá influenciar a Corte. Trata-se de nítida preferência partidária, goste-se desta afirmação, ou não, expressa por um Tribunal Político, dentro do contexto já desenhado de que se pretende que a Suprema Corte represente o “Terceiro Partido” americano.

Uma outra observação deve ser realizada sobre a visão expressa por Corinna Barret Lain, no artigo “Upside-Down Judicial Review” , uma vez que o modelo de controle de constitucionalidade, adotado no Brasil não é bem exatamente do mesmo tipo que se pratica nos Estados Unidos, e a dificuldade contramajoritária de que ela fala, e a Suprema Corte sobre a qual discorre, não encontram espaço na realidade brasileira, exceto o fato de que o Senado brasileiro, no Império, é o “agente decisório” que mais se aproxima da descrição teórica esboçada por esta acadêmica43, que busca desenhar sua exposição com a afirmação de que dois órgãos eleitos (Câmara e Senado) exercem a vontade popular, e um órgão não eleito, a Suprema Corte, exerce o peso contra essa vontade, e que quando isso é invertido, os órgãos eleitos não exercem essa vontade, e o órgão não eleito sim, virando de cabeça pra baixo o conceito de “judicial review”.44

Por outro lado, no que se refere a Barry Friedman45, fato é que sua interpretação para a sintonia entre a Suprema Corte e a opinião pública está baseada, ao menos inicialmente, no fato de que a tentativa de empacotar a Suprema Corte (Packing Court Plan) tentada na década de 1930 pelo então presidente Franklin D. Roosevelt “funcionou” de modo a sintonizar a Corte com a opinião pública que se ladeava ao “poder presidencial”, mas esta forma de chantagem e ameaça de aposentadoria dos Juízes da Suprema Corte, tentada nos Estados Unidos, e realizada no Brasil pelo menos em 3 momentos distintos, parece revelar que, como forma de disciplina, o emparelhamento entre a vontade popular e a Corte maior é um argumento que entre nós, no Brasil, é muito mais complexo e não encontra paralelo.46

Admitir que a Suprema Corte possa ser achacada como forma de doutrinação, a fim de que se adeque às vontades de um ditador de plantão, não importa se lhe damos o nome de Presidente da República, que alberga grande parcela da representação popular, é atitude que causa espécie. Por outro lado, admitir que a Suprema Corte não invalide um ato normativo, proposto ou oriundo da Presidência da República (apenas para lembrarmos de FDR e o exemplo utilizado por Barry Friedman), pelo argumento de que possui “apoio popular”, não faz muito sentido se compararmos tais questões com o texto Constitucional brasileiro.

Por outro lado, Eduardo Mendonça prossegue com a argumentação sobre a difícil localização das fronteiras entre Direito e Política, aliado ao constructo de que “a história não registra qualquer caso real de juristocracia”, estofado com a carga argumentativa complementar de que haveria, em verdade, uma situação contrária, pois segundo o autor, “a experiência demonstra que os regimes autoritários não costumam encontrar maior dificuldade em limitar a influência do judiciário ou mesmo moldá-lo à sua imagem e semelhança, cooptando-o para seu próprio esforço de legitimação”.47

Neste particular nossa divergência é pontual, mas fática, uma vez que quando um Tribunal Supremo cria uma norma à força, como a modelação da fidelidade partidária, chamada por Oscar Vilhena Vieira de Supremocracia, e no último capítulo sobre a fidelidade estendida apenas aos cargos de eleição proporcional, liberando para a infidelidade os cargos de eleição majoritária, é um pequeno fragmento de juristocracia real48, para ficarmos em apenas um exemplo, que permite a estranha figura de “Senadores, Prefeitos e Governadores Zumbis”, isto é, sem “partido tradicional”.49

Além disso, a única facilidade notável sobre a relação entre as ditaduras e o judiciário, em caso extremo, foi quando da proclamação da república, através de um golpe militar em 1889, quando o único poder a não ser tocado foi o judiciário, que se mostrou dócil e adesista, nas palavras de Aliomar Baleeiro50, mas nos demais golpes (1930 e 1964), as ditaduras se viram obrigadas a aposentar ministros do Supremo e muitos outros juízes e variados servidores, encontrando alguma dificuldade, muito embora a docilidade e receptividade se faça presente da mesma forma que se manifesta em partidários dos “novos donos do poder”, como membros do legislativo e do executivo. Não há diferença.

Com vistas a demonstrar alguma semelhança no discurso sobre a crise de representação política, utilizado como forma de justificação para que se proponha que outros agentes decisórios sejam formas de canalização da vontade popular, retomemos no item subsequente a carta escrita em 1924 por Monteiro Lobato para o então presidente Artur Bernardes, e a manifestação do professor Goffredo Telles Jr as em 1963, e, portanto, duas manifestações feitas as vésperas de Golpes de Estado.

Tal percurso tem a finalidade de pavimentar uma outra via de acesso, que antes de recomendar uma “nova filtragem” da vontade popular, sugere que o caminho democrático melhor se faz com o fornecimento de cópia aos cidadãos da chave mestra que abre a “Sala de Máquinas da Constituição”.

IV. O Escritor e o Professor

No presente item refletiremos sobre um escritor e um professor, respectivamente, Monteiro Lobato e Goffredo Telles Jr, em manifestações realizadas em 1924 e 1963, as vésperas, portanto, de golpes de Estado, de maneira a observar, através dos fragmentos que serão ressaltados, certa semelhança de argumentos que se baseiam no “desgaste da representação popular”, o mesmo utilizado por Eduardo Mendonça para propor a tese sobre o “Supremo como vocalizador da opinião pública”.

Ao escrever uma missiva ao então presidente Arthur Bernardes, datada de 09 de agosto de 1924, o escritor Monteiro Lobato expressou toda a sua verve de desconforto com a possibilidade de todas as pessoas poderem votar, especialmente os “pobres e menos instruídos”.51

Tal missiva representa um verdadeiro monumento contra o voto popular. Lobato, escrevendo ao então presidente no dia de seu aniversário, dizia ter realizado uma “fotografia do estado de espirito do povo brasileiro” em momento chamado de “doloroso”, afirmando ter “sondado” gente de todas as classes sociais (“ricos e pobres, patrões e operários, gente de baixo e gente de cima”), tendo atentado ainda para o fato de que, “como a maior parte dos homens tem duas opiniões, uma de uso social e outra íntima”), sua narrativa descartou a primeira e ficou com a segunda.52

Afirmou ter constatado o estado de espírito de franca revolta, que segundo sua mensuração, abrangeria aproximadamente 90% dos entrevistados. A decorrência desta revolta era o “completo divórcio entre a política e a opinião pública”, num quadro em que as opiniões mais comuns supostamente refletiriam o horror à política e à classe política, respectivamente tidos como “a arte de explorar o tesouro” e “usurpadores indignos”, o que seria a causa do “completo desinteresse da nação pela política”.53

Segundo as afirmações tendenciosamente preconceituosas de Monteiro Lobato, a elite da nação seria a melhor parte dela, descrita como “rica e culta”, (o cérebro pensante), e, portanto, segundo afirma, “nobre por excelência”, e, a ojeriza desta classe pela arte da política seria a razão da perplexidade do escritor, que teriam motivado sua procura pelas “causas mais profundas” de tal situação.54

Não menos causadoras de perplexidades, hodiernamente, seria o diagnóstico de Monteiro Lobato, transmitido ao presidente Artur Bernardes. As causas seriam um “vício tão grave”, que se não fosse corrigido levaria o país a total ruína: seria o “regime eleitoral de censo baixo”, pois segundo ele, na história da humanidade, a experiência demonstraria que o sistema representativo só traria resultados benéficos se fosse acompanhado de “censo alto”, uma vez que neste último caso representaria o “controle da política pela elite da nação”, representada pela metáfora seguinte: “a lei natural de todos os organismos é a parte cérebro desempenhando suas funções de cérebro, e a parte músculo (massa bruta, populaça, gente rural sem cultura nem capacidade de discernimento) subordinada ao cérebro”.55

Monteiro Lobato afirmou ainda que isso causaria a presença de uma capacidade artificial de voto, pois os votantes de “censo baixo” votariam não por dever cívico guiado por discernimento, mas pela troca do voto por bugigangas ou dinheiro em espécie, e aqueles que deveriam votar (a elite e os nobres) acabariam se afastando da política, trazendo como consequência disso (chamado pelo escritor de “absurdo”) o fato de que a política acabaria dominada pelos políticos profissionais, que fazem da política um meio de vida, do qual se afastariam a elite e os nobres com base no seguinte fragmento: “o raciocínio geral é este: se meu voto, estudado, ponderado, calculado, livre, tem de ser anulado pelo voto do meu jardineiro, que é um imbecil, sem discernimento nem cultura, prefiro ficar na moita”, o que acabaria por afastar das urnas “os possuidores do direito natural de voto”.56

O remédio proposto por Lobato, através de um raciocínio evidentemente datado e distorcido, foi a sugestão da implementação do voto secreto e não obrigatório, pois segundo o pensamento deste escritor, eliminaria o voto por pressão e o voto por dinheiro, os únicos dois motivos que, segundo ele, levavam os eleitores de “censo baixo” às urnas. No dizer de Monteiro Lobato, não instituir o voto secreto, e, por conseguinte, afastar o eleitor de “censo baixo”, seria “incubar eternamente o ovo da revolução”.57

Esta carta foi devidamente respondida, em correspondência que Artur Bernardes enviou à Monteiro Lobato, a 6 de setembro de 1924, que o então presidente disse que recebeu “com prazer”, dizendo concordar inteiramente com as observações sobre a necessidade da adoção de medidas que privilegiassem um “censo alto” dos eleitores.58 Simplista e antidemocrática a discussão entre o escritor e o presidente, ao dizerem, em termos claros, que o problema da democracia seria o povo que dela fazia parte.

No período que vai da proclamação da república, de 1889 aos dias que se seguiram até a ditadura do Estado Novo Varguista, em 1937, são turbulentos e nos quais se presenciou importantes fatos de levante e repressão, como a Guerra de Canudos (1893-1897), as revoltas dos tenentes (1922, 1924, 1926 e 1930), o levante comunista de 1935, indicadores de “que com a industrialização e a urbanização, as lutas de classes aprofundaram-se, adquirindo novas características nas cidades”, num universo em que a “boa vontade dos políticos” não era suficiente para transformar a massa crescente de excluídos em cidadãos.59

Pouco tempo depois irromperia o golpe de estado, e em um momento seguinte Goffredo Telles Jr., professor da Universidade de São Paulo, às vésperas de outro golpe de Estado, apresentaria seu diagnóstico sobre os problemas da democracia então vigente, argumentos esses que serão recordados a seguir.

Goffredo Telles Junior, professor formador de inúmeras gerações de juristas que comporiam os quadros do poder paulista e nacional, em texto antigo e esquecido, admitia o uso da força para resistência a governos ilegítimos em casos raros e excepcionalíssimos, desde que a reação fosse, concomitantemente: legítima, necessária, útil e proporcional.60

Em outra manifestação, essa reação seria mais explicitada, no artigo escrito de 1963 intitulado “Lineamentos de uma democracia autêntica para o Brasil”, longo, extenso e revelador do ideário de uma geração inteira de juristas, com uma nota de rodapé possuidora do seguinte teor: “Este trabalho foi escrito muito antes da Revolução de Março. A necessidade de recorrer às armas para salvar o Brasil veio confirmar as críticas feitas nestas páginas”.61

Que críticas foram essas? As de que nenhuma de nossas constituições tinham o “cheiro de Brasil”, em trocadilho atribuído a Lenin sobre a Revolução Soviética, criticando o fato de que os ideólogos de nossas instituições e constituições foram se abeberar das águas europeias de países que estavam em franca transformação e mudança de paradigmas, o que teria feito, segundo Goffredo, com que adotássemos a “doutrina burguesa do liberalismo”, e que, ao se atrelar a democracia ao liberalismo acabaria por trazer consequências que iriam caracterizar a democracia como um regime de pressupostos, preconceitos e ficções, falseando a vontade do povo e confundindo este com “massa”.62

Há crítica pesada aos partidos na sua impossibilidade de transmitir a real e concreta vontade do eleitor, bem como formula-se crítica ao sufrágio universal da democracia indireta, perguntando: “que povo será tão imbecil a ponto de achar que somente por depositar seu voto na urna já pode se achar soberano?”, e a crítica que se segue é incisiva:

Pode o povo, é certo, no dia do pleito, durante algumas horas, devanear e fantasiar-se de soberano. Mas já no mesmo dia, ao cair da noite, uma vez fechadas as urnas, que povo será tão imbecil a ponto de acreditar, que, tendo votado, esteja ele no governo? Poderá o homem da rua, que retorna à sua casa e a seu reles ramerrão, continuar envergando sua fantasia de soberano? Poderá ele crer, que o ‘representante do povo’, é de fato, seu representante? 63

O próprio Goffredo, ele mesmo um ex-parlamentar que critica a atividade do “representante do povo” de maneira áspera, praticamente “entrepolegares”, alegando que os deputados, em sua grande maioria, não conhecem a constituição e estão mais interessados em seus próprios interesses. Vai buscar em Rousseau, no contrato social, a afirmação de que a “vontade geral não se representa”, e que toda lei deve ser ratificada pelo povo em pessoa, sob pena de nulidade.64

Os olhos com que se devem ler tais manifestações não são de acusação, mas de apreensão para compreensão de uma época. Neste sentido, observa-se, tal como hoje, (e mesmo em 1924) extremado desgaste do Parlamento e dos Parlamentares. Goffredo recorda que já naquela época o povo votava por favor, por troca, por graça, como nos casos da eleição de um bode em Pernambuco e de um rinoceronte em São Paulo, na interpretação de que o povo, achando de pouco valor o Parlamento, tenta transforma-lo em um “circo”, e o autor reconhece que quem critique o sufrágio universal será acusado de pecador e de tocar em um “tabu da democracia”.65

O legislador vai ser colocado em um pote etiquetado por Goffredo de “homens vulgares e ignorantes”, lembrando a manifestação anterior de Monteiro Lobato, em 1924, demonstrando a baixa conta em que já se tinha o Parlamento, havendo ainda a dicotomia destacada entre “país real” e “país falso”, bem como acusa-se o legislador de estar a construir um “império da corrupção”.66

A linguagem de Goffredo é um misto de quase misticismo e simbolismo radical, com toda a força dos espíritos que convoca. Diz ele que naquele país falso, “como que por magia do demônio” haveria desabrochado “toda a escória social”, concluindo:

Animaram-se os desonestos. Estimularam-se os inescrupulosos, os afoitos, os vigaristas. Incentivaram-se os intrujões, que ostentam honestidade, mas somente para melhor ludibriar os incautos. E então, ocupando postos chave, começaram a ser vistas figuras desprezíveis de ladinos, de safados, de venais.

Mas a que postos-chave Goffredo se referia? Não há uma menção expressa, mas é possível inferir. Menciona-se que a moralidade teria sido “amortecida”, e que “o suborno se fez rotina a tal ponto de tudo ter preço, tudo poder ser comprado”, momento no qual insere nova nota de rodapé com uma segunda advertência, parecida com a primeira: “repetimos: este trabalho foi escrito muito antes da revolução de março. A Revolução visou banir, da vida nacional, precisamente os erros calamitosos que aqui se apontam”.67

Repete-se o discurso de que não mais causava espécie “as torpezas cometidas às custas da nação”, acusando-se que “negociatas seriam realizadas a sombra do gabinete presidencial, nas antessalas dos ministérios e nos corredores da câmara”, invocando a necessidade de se inquirir a “pureza e a sinceridade” das leis, acusando o Parlamento de formar bancadas suspeitas de interesses alienígenas, e ainda, que o contrabando estaria sendo praticado escancaradamente, inclusive de armas a interesse de “grupos subversivos”, e que neste estado de coisas a política não teria um lugar para os “homens bons” que seriam atropelados pela “amassadeira do sufrágio universal”, pois os candidatos mais preparados, idôneos e competentes não ganhariam as eleições e a cada eleição o país estaria piorando.68

Observa-se similaridade entre a carta de 1924, de Monteiro Lobato, e o discurso de Goffredo Telles Jr., em 1963, culpando-se a “democracia liberal”, com fundamentos claramente temerosos da democracia, mas nenhum deles propõe aprimoramento que fortalecesse a participação popular, antes, propõem críticas à massa, ora como “não detentoras de um direito natural de voto” (1924), e ora como “amassadeira do sufrágio universal” (1963): o culpado acaba sendo o sufrágio universal.

Menciona-se, ainda, na pretensão de exprimir um retrato fiel do sentimento da maioria da nação, que esta assistiria aflita ao retraimento forçado de suas “elites morais” e de sua “aristocracia intelectual” que estaria sendo substituída por “aventureiros”, “malandros”, “desavergonhados”, “trapaceiros” e “larápios”.69 Neste ponto, também há extremada semelhança com relação a missiva de Monteiro Lobato, em 1924, para o presidente Artur Bernardes.

Sustenta-se que reformismo não seria suficiente para mudar o quadro desenhado, pois um retorno ao parlamentarismo, com a delegação de poderes e adoção do sistema distrital seriam meros paliativos, pois segundo o autor, carregamos “cadáver de ideias mortas”, uma vez que o “mal seria profundo” a exigir “remédio heroico”. Fala-se em “reformular a democracia brasileira” que exigiria apenas “ser verdadeiro”, a exigir a afirmação de que “democracia liberal não é democracia”.70

Neste sentido, Goffredo fala de democracia, fornecendo sobre ela o seu ideário, ingressando no perigoso terreno da legitimidade. Conceitualmente, a propósito, diz que democracia seria o regime político que asseguraria a permanente penetração e influência da vontade dos governados nas decisões legislativas dos governantes. Por outro lado, menciona que a fórmula democrática nacional perpassa pelo encontro de uma “autêntica representação política” que afaste mitos constitucionais, uma vez que uma tal constituição não deve ser inventada, não deve ser imposta de cima para baixo, antes, deve brotar “espontaneamente” de baixo para cima e assim “refletir a ordem própria das coisas”.71

Em outra passagem reveladora de uma época e de um ideário, admite-se pluralismo jurídico, mencionando-se que a Constituição então em vigor (1946) seria a culpada pelo abismo criado entre o governo e o povo, pois no Brasil o povo não seria “massa”, e o culpado, mais uma vez seria o sufrágio universal, que não produziria um verdadeiro regime representativo. Aliás, a expressão metafórica é recorrente: o sufrágio universal seria uma “amassadeira”, partindo do pressuposto de que o termo “massa” seria uma das “ficções do liberalismo”.72

Não menos reveladora é a afirmação sobre a “ditadura”, pois segundo Goffredo, a expressão “vontade dos governados” não significaria a vontade deste ou daquele especificamente, pois se assim fosse estaríamos diante de uma ditadura, uma vez que esta se caracterizaria exatamente por ser uma forma de governo que impõe a todos a vontade de determinados e específicos indivíduos.

Dizendo isso em uma das mais prestigiadas revistas jurídicas do país, a Revista de Direito da Universidade de São Paulo, às vésperas do golpe de estado (1963-64) enviava uma mensagem mais ou menos cifrada da necessidade de um golpe de estado, ao final chancelado, e que estaria anuída pelas duas notas de rodapé mencionadas na qual chama o golpe de “Revolução” que pegaria em armas para salvar o país”.

Mas o ser humano Goffredo justifica a fama de humanista ao fazer, no auge da ditadura, alguns anos depois, uma declaração (Pronunciamento) também publicada pela Revista da Universidade de São Paulo, e lida na congregação dos professores da faculdade de Direito em fevereiro de 1968, defendendo-se da acusação de comunista e de marxista, mas dizendo também que não era adepto do capitalismo, deixando clara a guerra surda que repetia o estado novo de caça às bruxas contra o comunismo, fazendo uma corajosa manifestação no sentido de que era chegada “a hora de um cuidadoso exame de consciência”.73

Seria também o mesmo Goffredro quem capitanearia a famosa “Carta aos Brasileiros”, lida no pátio das arcadas do Largo de São Francisco no dia 8 de agosto de 1977, um documento que pedia a volta do estado de direito, fazendo distinção entre estado de fato e estado de direito, constrangendo a ditadura e exigindo um retorno à democracia.74

As observações de Monteiro Lobato (1924), de Goffredo Telles Jr. (1963) e Eduardo Mendonça (2015), possuem em comum o fundamento de que há intenso desgaste da representação política, embora proponham soluções distintas para os problemas que avistam. O primeiro propõe o “censo alto”, como forma de a elite voltar a ter o domínio dos destinos da nação.

O segundo propõe solução que combina atribuição de iniciativa de lei aos grupos sociais, proposta de legislação através das corporações, como forma de permitir a penetração da vontade destes grupos nas decisões legislativas, mas com a ampliação de iniciativa legislativa do Presidente da República, com o estabelecimento de um órgão técnico coletivo que faria a análise técnica das leis, em colegiado composto por membros designados através do “censo alto”, e perante o qual funcionariam os “Procuradores das Corporações”, que seriam contratados, e não eleitos, exercendo o papel que antes eram dos deputados da liberal democracia, mantendo-se, no entanto, uma “Câmara dos Deputados sem função legislativa”, aliado à eleição direta para a Presidência da República, após os candidatos serem escolhidos por um “Colégio Eleitoral” 75 formado em dois graus e composto por pessoas especiais76, que lhes aferisse a idoneidade.77

O terceiro, propõe que um órgão não eleito, composto por pessoas que são dotadas de predicados que fogem ao comum do povo, seja um canal de vocalização popular, de forma que a “jurisdição constitucional atenue distorções e limitações intrínsecas da democracia representativa, tornando-a mais palatável para pessoas imersas em uma cultura individualista de direitos fundamentais”.78

Embora cada proposição seja peculiar, repita-se, os três partem de ao menos uma premissa comum, qual seja, o desgaste da representação política, e as soluções que propõe não parecem tonificar ou robustecer a democracia e nem incentivam a participação popular nas decisões do país.

Na realidade, é importante que se diga, ao propor que a solução do diálogo institucional através da Suprema Corte seria minimamente um consolo para que os grupos sociais e as partes possam ter seu dia na corte, ao menos para deduzir razões (“forma de ouvir e fazer ouvir sua própria voz”), estamos diante de “karaokê institucional”, que de democrático não possui nada, pois até nas condenações criminais à pena de morte se permite a formalidade de que o réu escolha sua última refeição após deduzir suas razões perante um órgão julgador, e ao que consta, deduz razões e se expressa, ouvindo e fazendo ouvir sua própria voz.

A proposição que fazemos é por uma solução institucionalmente mais ambiciosa e socialmente mais efetiva. Para utilizar a última imagem, para que a voz de comando do cidadão seja ouvida e ecoada dentro da “Sala de Máquinas da Constituição”, tema do item seguinte, como forma de efetivamente ajustar o problema do desgaste da representação política.

V. O Modelo brasileiro e a Sala de Máquinas da Constituição

O diagnóstico do nosso déficit democrático foi realizado de maneira minuciosa por Roberto Gargarella, que realizou uma vasta pesquisa sobre o Constitucionalismo Latino Americano, entre 1810 e 2010, constatando que a grande maioria dos países Latino-Americanos entraram no século XX com constituições liberais-conservadoras, para dizer com isso constituições que foram resultado de um acordo político entre conservadores e liberais.79

No caso brasileiro é particularmente verdadeira esta observação, conforme recorda José Afonso da Silva, na composição do acordo entre o Partido Liberal e o Partido Conservador, no Brasil Império, e estas “formações partidárias revezaram-se no poder durante o Segundo Império”, constatando-se ainda que entre eles havia “pouca distinção ideológica”.80

A maioria de tais negociações foram firmadas na segunda metade do século XIX, ao tempo em que o liberalismo e o conservadorismo representavam as duas maiores forças políticas da região, mas seu acordo constitucional, contudo, era inesperado em razão de que ambos os grupos teriam aparecido como candentes inimigos políticos durante a primeira metade do século XIX. Com efeito, após muitos anos de duríssima disputa política, os dois rivais de tais facções políticas uniram às forças para forjar uma aliança que permaneceria intacta durante as próximas décadas.81

As Constituições forjadas pelo acordo entre liberais e conservadores – neste período - apareceram “como sínteses imperfeitas de aspirações legais de ambos os grupos”, vale dizer, essas novas constituições latino americanas refletiram o pacto por um sistema de pesos e contrapesos e para declarar neutralidade – especialmente referente à tolerância religiosa - que pareceu caracterizar as aspirações do grupo liberal, embora por outro lado, tais constituições também tenham representado “o compromisso com um sistema de autoridade concentrada - centralização regional e perfeccionismo moral - que caracterizou as aspirações do grupo conservador”, representando a combinação da Constituição dos Estados Unidos, bastante influente entre os liberais, e a Constituição Chilena de 1833, que representou a Constituição de maior influência conservadora durante o século XIX, em modelos constitucionais representativos de tolerância religiosa, mas sem necessariamente afirmarem neutralidade estatal, e definidoras de um sistema de freios e contrapesos, que teria sido, entretanto, parcialmente desequilibrado em favor do presidente, estabelecendo ainda um modelo de federalismo centralizador de organização.82

Estas constituições “liberais-conservadoras” teriam ainda rejeitado a incorporação de cláusulas sociais favorecedoras dos menos avantajados, e também sem a introdução de iniciativas em favor da participação das massas no espaço público, significando que o pacto “liberal-conservador” teria sido um pacto excludente que implicava o deslocamento da maioria das iniciativas institucionais então propostas por grupos radicais - geralmente inspiradas por Anglo-Americanos radicais. Durante esses anos, de fato, grupos radicais avançaram inúmeras propostas constitucionais, as quais incluíram eleições anuais, o direito à revogação do mandato (recall), rotatividade do mandato e instruções obrigatórias. Adicionalmente, grupos radicais promoveram diferentes reformas objetivando alcançar a “questão social”. Contudo, o triunfo do projeto liberal-conservador repeliu implicitamente todas essas iniciativas.83

Roberto Gargarella observa que ocorreram muitas e inúmeras mudanças nas constituições dos países da América Latina, seguidos de períodos relativamente bem delineados de Constitucionalismo Social (1910-1950), Multiculturalismo e Direitos Humanos (1950-2010), com inúmeras reformas constitucionais, mas nenhuma delas teria logrado êxito em permitir a grande camada da população o acesso à chamada “Sala de Máquinas da Constituição”, metáfora utilizada para dizer que as reformas foram concessivas de direitos, mas não de acesso aos efetivos mecanismos de controle de poder. Observou o autor que:

Exemplos como esses, [de reformas constitucionais por direitos] demonstram não apenas a importância, mas também as limitações dos afazeres das reformas constitucionais. Reformadores legais não podiam, ou não queriam ir longe demais para assegurar que as constituições reformadas alcançassem as características transformadoras que proclamavam. […] Nos últimos anos (embora - e isso é um problema - apenas nos últimos poucos anos), os países da América-Latina que tem adotado Constituições socialmente mais robustas desenvolveram uma interessante e imaginativa prática judicial de cumprimento dos direitos sociais.84

No entanto, parece evidente que tais reformas foram, na melhor das hipóteses, bastante limitadas em seu escopo e também nas suas conquistas, e uma das principais razões para isso se explicaria pelo fato de que os reformadores pareceram concentrar suas energias na seção dos direitos, sem levar em conta o impacto que a organização do poder tende a ter sobre aqueles mesmos direitos que então estavam protegidos, vale dizer, os reformistas dedicaram a maior parte de seu trabalho criando “novos direitos”, mas deixou a organização dos poderes basicamente intocada, pois segundo o Gargarella:

Agindo dessa maneira, reformistas legais mantém fechadas as portas da “sala de máquinas” da Constituição: o núcleo da maquinaria democrática não é modificado. A máquina da Constituição não se transforma no objeto de atenção principal dos reformadores. É como se a sua missão estivesse concluída com o trabalho nas seções dos direitos, como se os controles principais somente pudessem ser tocados pelos aliados mais próximos daqueles que estão no poder. 85

É verdade, no entanto, que Roberto Gargarella não exclui o implemento de direitos sociais por meio do poder judiciário, e nem a atuação da jurisdição constitucional do aspecto democrático, falando-se de democracia deliberativa mais justa e robusta.86 O caso não é esse. Trata-se de fazer uma distinção entre aprimoramento da democracia através de mecanismos da democracia direta e do controle do poder, que não são considerados como parte da jurisdição constitucional.

A propósito, em seu livro que trata sobre o “caráter contramajoritário do poder judiciário”, observa que a forma de indicação e composição do tribunal importa bastante para o caso de “permeabilidade das demandas de justiça emanadas de grupos com menor poder de influência na sociedade”, apesar das boas intenções que possam animar alguns juízes, aliado ao fato de que uma das propostas de democratização da jurisdição constitucional é a de que ela não possua mais a última palavra, pois a dificuldade contrajamoritária está intrinsecamente atrelada ao fato de juízes não eleitos decidem fatos sensíveis da vida cotidiana sem estarem submetidos a eleição por parte dos cidadãos e sem que haja mecanismos de responsabilização imediata.87

O tipo de justiça institucional defendida por Roberto Gargarella, evidentemente, requer um diálogo coletivo aberto e persistente, incluído o diálogo entre as autoridades, mas deve ser muito mais do que isso, uma vez que tal diálogo público necessita reservar um papel central, e não um papel marginal para a cidadania, e um projeto de igualitarismo que busque afastar o “drama constitucional” da desigualdade econômica e política deve reconhecer que a democracia política é contraditada pela concentração de poderes existente, e que, da mesma maneira, a democracia econômica parece ser contraditada por uma situação fática em que “apenas alguns poucos decidem em nome dos demais”, e que cada uma dessas desigualdades alimenta e reforça a outra. Para minorar a questão é preciso que o cidadão ingresse dentro da “Sala de Máquinas da Constituição”88, ou na “Sala de Máquinas da Jurisdição Constitucional”.

VI. Considerações Finais: Alice em Transe

Uma democracia como a brasileira, frágil e com linhas de força muitas vezes ocultas e invisíveis, precisa ser permanentemente observada e estimulada. Como um campo de força, construído ao derredor de instituições e cidadãos, permite o complexo arranjo institucional da representação popular, ao tempo em que deixa patente o seu desgaste.

Tal desgaste não é novo entre nós, e já se faz um velho conhecido, como aqueles visitantes incômodos que entram na sua casa, chegam sem avisar, e abrem a geladeira sem cerimônia em busca de alguma coisa que só eles parecem ser capazes de dizer. Mas este fato permite que observemos de perto este velho conhecido, nos possibilitando rascunhar seus traços característicos para uma reclamação franca e aberta.

A crise de representação política se dá num contexto em que os partidos políticos e as instituições foram desenhadas justamente para afastar a cidadania dos debates democráticos. Vale reforçar a recordação de que nós copiamos com fidelidade o modelo criado pelos delegados constituintes da convenção da Filadélfia de 1787, razão de regozijo dos norte-americanos em reuniões públicas, mas “é realmente estranho seu silêncio sobre um fato simples: os republicanos que defenderam o modelo de governo da Filadélfia, apesar de suas visões políticas sobre uma ampla gama de temas, não eram entusiastas pela democracia em nenhum sentido”.89

Não se controverte a originalidade histórica do modelo, uma vez que o mundo conhecia pela primeira vez o que James Madson chamaria de “república composta”, representada por um “sistema de poder de estado federado em dois níveis, planejado para prescindir dos acessórios da monarquia, infundindo equilíbrio de poder entre o presidente, o Congresso e a Suprema Corte”, numa república que privilegiaria o domínio da lei e as eleições periódicas, procurando nutrir nos cidadãos um respeito por suas liberdades civis e políticas.90

Contudo, muito embora tenha sido uma inovação notável e com elevado potencial democrático, esta afirmação serve tão somente para aumentar a ironia de que “todo o edifício foi construído para deter a continuidade da democracia, num contexto que alguns membros daquela construção institucional se opunham tão severamente à democracia que hodiernamente seria embaraçoso, como a observação de George Cabot, político de Boston, para quem a democracia seria “o governo dos piores”.91

Mesmo radicais como Thomas Paine, autor do famoso “Common Sense”, seu panfleto revolucionário pela independência, observava que “as repúblicas podiam facilmente sucumbir à tirania populista”, assim como o principal autor da Constituição Americana, James Madson, um proprietário de escravos e proprietário de plantações de tabaco, para quem a democracia deveria ser temida.92

Não que “o povo”, este ente mágico das democracias, não fosse invocado nos debates constituintes de 1787. Era, e muito, mas o curioso é justamente a famosa fórmula “Nós o Povo” (“We the People”) que inicia a Constituição Americana, diferentemente da Constituição Brasileira, que invoca a fórmula “Nós, representantes do Povo”. A disputa entre “Nós, o povo” e “Nós, os representantes do povo” permanece viva, e da qual o instigante estudo de Eduardo Mendonça é prova inconteste.

Para retomarmos Alice (a do título, e do País das Maravilhas), a democracia pode representar, neste momento, um local que se acessa através da toca do coelho branco, e a disputa por seu sentido, pela criação e pelo estabelecimento de uma identidade é discursiva.93 Busca transpor uma fronteira separada por uma linha de giz rabiscada no chão. De fato, dois discursos: um, do lar de Alice, em que a democracia significaria o empoderamento do cidadão (Acesso à Sala de Máquinas), e o outro do País das Maravilhas, em que a democracia pode ser o quiser, inclusive o empoderamento substitutivo das instituições e dos “agentes decisórios”.

“Faz de conta”, e, portanto, fantasia, é a expressão favorita de Alice94, da mesma forma que é fantasiosa a pretensão de que um “agente decisório” não eleito possa, de fato, vocalizar e canalizar a opinião pública, suprindo as deficiências causadas pelo desgaste da “representação política”. Como na narrativa de “Alice Através do Espelho”, que inverte as posições que refletem, tornando-as o contrário do que aparentam ser, observam-se neste espelho a jurisdição constitucional e o parlamento: um representa a opinião pública, porque, bem ou mal, legitimado pelo voto, enquanto o outro é o seu oposto: caráter contramajoritário.

Se a jurisdição constitucional olhar pelo espelho, vera a imagem da representação parlamentar, sendo tentada a acreditar na imagem de um espelho que distorce e inverte a imagem original. Mas se ela fechar os olhos e observar mental e nostalgicamente a imagem que tem de si mesma (ou que dela fazem), observará que suas vestes ou fantasias são similares ao Tribunado da Plebe, do direito Romano.

No primeiro caso, uma inversão da realidade. No segundo, o desejo de retorno para aquela efervescência cultural, marcada pela concessão que os patrícios fizeram aos plebeus para evitar que estes fundassem uma nova cidade95, que seria rival de Roma, mas que pertence a um outro tempo, de priscas eras, e que precisaria permitir que a sociedade fizesse indicação de juízes para a suprema Corte, o que ainda não acontece. Mas o discurso permite falarmos em uma espécie de “Neotribunado da Plebe”.

Resta concluir neste diálogo, parabenizando uma vez mais a pesquisa do professor Eduardo Mendonça, sem estabelecer convicções inabaláveis de tudo quanto foi dito, mas propondo que o remédio para o desgaste da representação política seja o robustecimento da cidadania e da força da população, fornecendo-lhe as chaves de acesso a “Sala de Máquinas da Constituição”.

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[Received/Recebido: Ago. 11, 2015; Accepted/Aceito: Jul. 28, 2016]

DOI: https://doi.org/10.18256/2238-0604.2017.v13i3.1014

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