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A (re)construção da boa-fé e cooperação processuais no CPC/2015: intersecções sobre alteridade em Emmanuel Lévinas

The (re) construction of good faith and cooperation procedures at CPC / 2015: intersections on alterity in Emmanuel Levinas

Fernando de Brito Alves(1); Daniel Marques Camargo(2)

1 Doutor em Direito Constitucional pelo Instituto Toledo de Ensino – Bauru – SP. Pós-doutorado em Democracia e Direitos Humanos pelo Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20) e Ius Gentium Conimbrigae (Centro de Direitos Humanos) da Faculdade de Direito ambos da Universidade de Coimbra. Professor Adjunto da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Advogado.
E-mail: [email protected]

2 Doutorando (2016) e Mestre (2006) em Ciência pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de Ribeirão Preto - UNAERP (2000). Professor do Instituto de Direito Constitucional e Cidadania (IDCC), em Londrina-PR, do Centro Universitário de Araraquara (UNIARA), em Araraquara-SP e da Graduação em Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos (FIO), em Ourinhos-SP.
E-mail: [email protected]

Resumo

A partir em Emmanuel Lévinas, o artigo aborda a alteridade a partir do respeito e responsabilidade com o Outro, vez que muito da desumanização do ser humano finca raiz no fato de as pessoas manterem foco exclusivo em si (Eu), ensimesmadas, a encorpar uma práxis social (jurídica e processual) individualista e egoística, com descarte do Outro como necessário protagonista para um mundo mais fraterno, justo e solidário. Referida crise afeta o fenômeno jurídico como um todo, especialmente o processo como meio de pacificação e solução de conflitos, pelo que tem relevância a conformação que o CPC/2015 empresta à lealdade ou probidade processual, assim também à cooperação ou colaboração, imprescindíveis a um processo comparticipativo, multiportas e policêntrico. O método de abordagem deste artigo é o analítico-sintético, tendo concluído que o CPC/2015 pode contribuir efetivamente para a construção de um processo judiciário menos autocentrado no indivíduo e mais aberto à cooperação e a alteridade.

Palavras-chave: Alteridade. Boa-fé e Cooperação Processuais. CPC/2015. Emmanuel Lévinas.

Abstract

Based on Emmanuel Lévinas, this articles approaches alterity from the respect and responsability with the Other, since much of the dehumanization of the human being roots in the fact that people maintain exclusive focus on themselves (I), self-absorbed, to incorporate and individualistic and egoistic social (juridical and procedural) praxis, discarding the Other as a necessary protagonist for a more fraternal, just and united world. The aforementioned crisis affects the legal phenomenon as a whole, especially the process as a means of pacification and conflict resolution, reason why it is relevant the conformation that the Code of Civil Procedure 2015 lends to loyalty of procedural probity, as well as to cooperation or collaboration, indispensable to a shared, multiport and polycentric process. The method of approach of this article is the analytical-synthetic, having concluded that the CPC / 2015 can contribute effectively to the construction of a judicial process less self-centered in the individual and more open to the cooperation and the otherness.

Keywords: Alterity. Procedural good faith and cooperation. Code of Civil Procedure 2015. Emmanuel Lévinas.

1 Introdução

O trabalho pretende traçar uma análise da importância da alteridade nas relações humanas e sociais, mais especificamente nas tratativas jurídicas e processuais. Para tanto, serve-se de ensaios diversos sobre a alteridade na visão do filósofo lituano Emmanuel Lévinas, pautando-se, portanto, por suas construções sobre os direitos das pessoas e as relações que unem um ser humano ao outro, como sujeitos éticos.

Adota-se o método hipotético-dedutivo para se questionar e aferir se, com espeque na filosofia e na ética levinasiana, é possível empreender uma práxis processual civil em que juízes, advogados, promotores de justiça, defensores públicos, procuradores e consumidores da Justiça possam se posicionar de modo mais ético e responsável, lastreados na probidade processual e na cooperação ou colaboração, que devem servir de diretrizes interpretativas e aplicativas do direito, sem que isso constitua mera utopia.

A propósito, cumpre lembrar que o CPC/2015 busca implementar uma cultura de eticidade e cooperação processuais mais efetiva, embora não se olvide que meras (re)formulações legislativas não têm o condão, por si sós, de modificar uma cultura egoística, privatística, imediatista, líquida e que mostra dificuldade do Eu reconhecer e respeitar o Outro em sua inteireza, plenitude e, sobretudo, como sujeito ético.

Em tal contextualização, o artigo segue na abordagem de Lévinas acerca da alteridade, com o escopo de fixar premissas ao fortalecimento de um processo civil em que prepondere a lealdade processual e uma necessária colaboração dos sujeitos envolvidos na relação jurídica e processual. Para tal fim, o trabalho é dividido em quatro capítulos, a seguir descritos.

Com a primeira seção, busca-se uma (re)visitação da obra essencial de Emmanuel Lévinas, naquilo que toca à alteridade como mola propulsora a uma (co)existência social mais sadia, sincera e responsável.

Sequencialmente, segunda seção aborda a boa-fé processual no CPC/2015, suas peculiaridades e novidades, bem assim a (im)possibilidade de que a incorporação de padrões de eticidade possa nortear a conduta dos profissionais do direito, quiçá dos jurisdicionados, passando pela influência (ou não) da visão de alteridade para que haja mais probidade.

Na terceira seção, aborda-se a significação e pretensão no CPC/2015 de um processo com viés mais cooperativo ou colaborativo, mais baseado no policentrismo do que no juriscentrismo preponderante. Além disso, analisa-se como a construção do respeito à alteridade pode influenciar tal norma fundamental do processo civil.

A seguir, na quarta seção, delineia-se a importância de uma conduta processual (pré, durante e pós-processual) que colabore ao fortalecimento da justiça coexistencial efetiva e que dê a cada um, equanimemente, os seus direitos, sem prescindir da compreensão da alteridade e de sua imbricação com a lealdade e a cooperação no processo, para se evoluir e se conjecturar sobre as possibilidades práticas de que tais abstrações se enraízem e se concretizem.

O objetivo do trabalho é demonstrar que o processo civil brasileiro, embora com algumas novidades alvissareiras, não tem potencialidade, por si só, para melhorar um panorama jurídico e processual caótico, individualista, beligerante e pouco cooperativo, a depender mesmo da forma pela qual as relações humanas, sociais, jurídicas e processuais se operam, bem como em quais premissas se norteiam.

O artigo se justifica por conta da importância do tema ora abordado, seja pela sua contemporaneidade, seja pela sua complexidade na prática jurídica. E para alcançar êxito na pesquisa, servem como referencial teórico o próprio Emmanuel Lévinas e diversos outros estudiosos e pesquisadores do indigitado filósofo (destaque a Carlos Eduardo Nicoletti Camillo), além de juristas destacados do processo civil brasileiro, a exemplo de Fredie Didier, Daniel Amorim Assumpção Neves, Eduardo Arruda Alvim, Alexandre Freitas Câmara, José Rogério Cruz e Tucci, José Miguel Garcia Medina, além de autores internacionais, tais como Michele Taruffo, Mauro Capelletti, Bryant Garth, dentre outros.

2 Alteridade na visão de Emmanuel Lévinas

Pode-se pensar que não é preciso muito aprofundamento filosófico para se notar, a partir daquilo que se pode chamar de olhar empírico sobre a realidade, que o ser humano convive (quiçá desde os primórdios) de forma sofrível, egoística, pouco cooperativa e, cada vez mais, conturbada.

Em uma sociedade de mercado, em que a busca pelo sucesso e a ávida luta contra o tempo colocam um contra o outro, a toda sorte transformando o próximo em concorrente potencial, em que os sujeitos são vistos como objetos, falar de alteridade parece mesmo ser algo distante e impossível de ser vivenciado, o que poderia causar aquela sensação indébita de que não compensa esperar mais de si, do outro e da sociedade.

Quando se almeja avistar além daquilo que está posto, e que infelizmente é uma realidade, é preciso encontrar lugar em leituras que cruzem a esquina do senso comum e desvelem, além da realidade, respostas e reflexões para que se constate aquilo que não é visto de inopino, aquilo que somente boas leituras e experiência de vida podem semear no indivíduo. Bem por isso, o presente trabalho utiliza como norte teórico uma síntese da obra de Emmanuel Lévinas intitulada Entre Nós. Nessa obra, Lévinas pontua que é preciso rever o papel da Filosofia, através de uma nova definição das formas de relação que unem as pessoas, com um especial enfoque sobre a responsabilidade do Eu pelo Outro.

A justificativa da escolha de Lévinas como marco teórico se justifica porque, no seu caso, distintamente do que acontece com outros filósofos contemporâneos, o reconhecimento da alteridade não está exclusivamente relacionado ao fenômeno da compreensão (ALVES, 2011, p. 221-240; ALVES; OLIVEIRA, 2017, p. 13-28), mas transcende a questões gnosiológicas para dimensionar a própria existência.

De conformidade com as projeções iniciais de Lévinas acerca da alteridade, na tradução de Fernando Soares Moreira:

O incentivo inicial ao caminho do diálogo sobreveio-lhe principalmente a partir do pensamento de Martin Buber, para o qual o Eu não é substância, mas relação: existe somente enquanto se refere a um Tu, cuja existência é dada pela palavra que dirige ao Eu. Ao contrário, o verdadeiro acesso à alteridade do outro não é uma percepção, mas é tratá-lo por tu, isto é, falar ao outro antes mesmo de falar dele. Se dele falar, já é dilacerar a relação; falar a ele significa fazer com que a sua alteridade se realize (2014, p. 8-9).

É sabido que Lévinas buscou inspiração na sabedoria bíblico-judaica, para consolidar o seu entendimento do Eu humano a partir de uma ideia de responsabilidade. Feito prisioneiro por alemães por ocasião da eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939), talvez a violência nazista o tenha impulsionado (obrigado) a pensar o Outro, de modo a tentar a superação da unidade unificadora e totalizante típica do pensamento ocidental, que tende à exclusão do confronto, do contraponto e da valorização e abertura para a diversidade.

Na visão do filósofo da Lituânia, a filosofia ocidental foi, na maioria das vezes, uma Ontologia: uma redução do “Outro ao Mesmo” (MACHADO, 2013, p. 89). Para Lévinas, é essencial levar o Outro realmente a sério, com responsabilidade, transparência e proximidade. Significa não agir com indiferença à “fome” do Outro, a se consubstanciar uma espécie de consciência moral, sendo que a responsabilidade e o acolhimento do Outro não redundam (nem podem redundar) em uma forma de satisfação do Eu. A responsabilidade não é um mecanismo de satisfação ou gozo do sujeito, a envolver uma relação desinteressada (PIMENTA, 2010, p. 75).

Carlos Eduardo Nicoletti Camillo, em obra referencial sobre a possível influência de Emmanuel Lévinas para o direito, explica:

Egoísta, absoluto, imediatista, materialista: era exatamente assim que Lévinas enxergava o homem contemporâneo e, assim, absolutamente incapaz de superar a subjetividade do ser em si mesmo. Todos esses atributos poderiam ser condensados em um único signo: o individualismo que propicia, inevitavelmente, a ruptura consigo próprio e, por conseguinte, com os valores mais importantes e até mesmo com Deus. A proposta de Lévinas parece radical, mas não é complexa: o homem contemporâneo somente conseguirá superar a totalidade do ser em si mesmo se tiver a grandeza de se abrir à exterioridade, movimentando-se, depondo-se em relação ao Outro, rumo ao infinito. Mas não se trata de uma relação do Eu que enxergue o Outro como Eu, já que isso não concerne ao Outro – mas ao Mesmo.

[...] O Eu e o Outro não se revelam os Mesmos. A partir do momento em que o Eu transcender as suas limitações materialistas e individualistas e movimentar-se fundado na alteridade, ele não somente terá alcançado efetivamente o Outro, mas, sobretudo, compreenderá e enxergará no Outro a si próprio (CAMILLO, 2016, p. 43-44).

Quando a alteridade ingressa no mundo jurídico, para que a justiça não constitua apenas uma retórica de boas intenções, há que se pensar em uma liberdade investida: uma liberdade lúcida, que se conheça o suficiente para saber até que ponto seu exercício pode ser violento, arbitrário e destruidor. Uma liberdade estruturalmente constituída de moralidade, que lhe é anterior, e que legitima o livre exercício da eticidade; há que se evitar, pois, o “Mesmo que apenas si mesmo conhece”, a fim de estruturar uma teoria da justiça (SOUZA, 2017).

A ética, o sujeito e o comportamento ético exigem uma conduta de respeito à alteridade, sendo a justiça a ética em plena realização como discurso. Outro ponto a se destacar dos ensinamentos levinasianos envolve a imprescindibilidade de reflexão sobre a igualdade entre as pessoas. Por isso tudo que a própria justiça há de ser um mecanismo de realização do Outro, a lembrar, inclusive, as lições de Goffredo Telles Junior, pelas quais se constata que o direito deve mesmo corresponder e respeitar a exata medida da liberdade humana (TELLES JUNIOR, 1980). Imperioso lembrar que a violência estatal, por vezes, pode mesmo se justificar, exatamente como um caminho para garantir as condições, os bens da vida e jusfundamentais do Outro.

Lévinas mostra a tensão entre totalidade versus alteridade, “Mesmo” versus “Outro”, imanência versus transcendência, teoria versus ética, restando claro que o Eu e o Outro não se fundem em uma identidade ontológica ou em uma essência; mantêm-se separados, condição mesma e essencial da relação. Outrem é Rosto, e como tal é único, singular. Não é objeto de universalidade (MACHADO, 2013).

Acerca do Rosto, e ainda em Carlos Eduardo Nicoletti Camillo, constata-se importante síntese do pensamento levinasiano:

Para Lévinas o Rosto é uma metáfora, que encerra uma relação para além do Ser. O Rosto é significação – e não significado – que exige respeito, acolhimento e responsabilidade do Ser pelo Eu. Esse Rosto não é singular, mas plural na sua mais perfeita tradução. Não possui conteúdo, nem jamais se transformará em conteúdo. Mas tem função condutora, porque é por ele que transcendemos o Ser e alcançamos o além.

A relação que se estabelece com o Rosto é necessariamente ética, fundada num discurso assentado na palavra de ordem tu não matarás, que não cria, por si só, a impossibilidade fática do homicídio, mas torna real a humanidade do homem.

Depreende-se que o Rosto exerce uma função peculiar na obra levinasiana, na medida em que ele convoca o Eu ao movimento da responsabilidade ética para com o Outro, viabilizando a alteridade ética do Ser em direção ao infinito. E assim é que o Eu, naturalmente finito, por meio da condução e do discurso ético do Rosto, deixa de ser um sujeito egoísta, materialista e individualista ao perceber e acolher o Outro, essencialmente infinito, numa rara expressão de humanidade do homem (CAMILLO, 2016, p. 47).

Quem então deve ensejar e determinar a alteridade é o Outro, não o Eu. A ética mostrada por Lévinas é anterior, pré-ontológica, pré-intencional, anterior à razão e às estruturas do ser, revelada, portanto, a imprescindibilidade do “evadir-se do ser” (GRZIBOWSKI, 2013). A ética, por conseguinte, consiste em experimentar-se através da transcendência da ideia de infinito que é o Outro (HADDOCK-LOBO, 2010).

Na sequência do trabalho, ver-se-á que as imbricações entre o fenômeno jurídico, especialmente naquilo que respeita a uma hermenêutica da alteridade, são especialmente ricas, complexas e, mais que isso, desejáveis (não obstante posta em prática, por vezes, referida hermenêutica, de modo inconstante e inconsciente).

A propósito de tal assertiva, Carlos Eduardo Nicoletti Camillo consigna que:

A hermenêutica autrement repensa não somente a hermenêutica tradicional, mas sobretudo as fontes do direito, pois nenhuma delas se revela mais consistente que o Outro, especialmente porque, na cadeia de produção de todos os meios pelos quais o direito se revela, o Outro sempre assume – ou deveria assumir – a condição de verdadeiro ícone e protagonista da realidade social (2016, p. 105).

Incontroverso, por conseguinte, que pensar o e no Outro, representa conduta ética desejável não apenas no âmbito social e filosófico, mas em especial no mundo jurídico, e não somente no fenômeno abstrato e de formulação do direito, mas verdadeiramente através de uma interpretação e aplicação jurídicas emancipatórias, libertadoras, pelo caminho contrário ao do individualismo imperante, de modo a fortalecer as premissas e rumos da alteridade levinasiana.

3 Boa-fé no CPC/2015 e alteridadade

Importa ressaltar, desde já, que os hábitos, as condutas e o modo de vida das pessoas em sociedade vão repercutir, ao fim e ao cabo, no mais das vezes, na forma como os sujeitos processuais lidam entre si e para com o Estado-Juiz no curso do processo, ou seja, não é crível admitir um processo em que efetivamente vigore a boa-fé, se no seio social não se a prestigia, assim como a lealdade e a honestidade nas relações interpessoais, ainda que corriqueiras. Daí a importância da alteridade.

Não obstante, como norma fundamental do processo civil e a inaugurar as disposições respectivas no CPC/2015, o artigo 5º dá conta da premissa do comportamento de conformidade com a boa-fé que deve nortear todos aqueles que de qualquer forma participam do processo.

Não se pode olvidar a constatação de Daniel Amorim Assumpção Neves no sentido de que:

[...] é inegável que as partes atuam na defesa de seus interesses, colaborando com o juízo na medida em que essa colaboração lhe auxilie a se sagrarem vitoriosas na demanda. Acreditar que as partes atuam de forma desinteressada, sempre na busca da melhor tutela jurisdicional possível, ainda que contrária aos seus interesses, é pensamento ingênuo e muito distante da realidade.

Negar a característica de um jogo ao processo é fechar os olhos a uma realidade bem evidente, vista diariamente na praxe forense. O processo, ao colocar frente a frente pessoas com interesses diametralmente opostos – ao menos na jurisdição contenciosa – e no mais das vezes com ânimos exaltados, invariavelmente não se transforma em busca pacífica e cooperativa na busca da verdade e, por consequência, da justiça, que fatalmente interessa a um dos litigantes, mas não ao outro (2017, p. 29-30).

Contudo, não pode haver exageros no exercício dos direitos e faculdades processuais, isto porque o fair play processual deve preponderar como um fator de equilíbrio e contenção de excessos, de desvirtuamentos ímprobos e de buscas pelo resultado no e pelo processo a qualquer custo. Imperioso, por conseguinte, reconhecer a existência do Outro, até porque o Eu ou Mesmo de hoje poderá estar em momento subsequente na mesma posição do Outro, visto pelo seu Rosto.

O artigo 5º do CPC/2015 reconhece um dever de eticidade objetivamente, independentemente de perquirições subjetivas e de intencionalidades. É preciso, pois, agir com transparência, responsabilidade, ética, a evitar a torpeza e a conduta contraditória, pela simples consideração de que existe um Outro que merece consideração e respeito (sem prejuízo das sanções respectivas).

Consoante José Rogério Cruz e Tucci, em tratativa específica do indigitado artigo 5º do CPC/2015, e a retratar o extrato constitucional da comentada boa-fé:

O fundamento constitucional da boa-fé decorre da cooperação ativa dos litigantes, especialmente no contraditório, que devem participar da construção da decisão, colaborando, pois, com a prestação jurisdicional. Não há se falar, com certeza, em processo justo e équo se as partes atuam de forma abusiva, conspirando contra as garantias do devido processo legal (2017, p. 10).

Sendo o processo, por sua própria natureza, essencialmente dialético, é inadmissível (e também punível) quando as partes dele se utilizam de modo a estampar a falta do dever de verdade, agindo irresponsavelmente, em completa desconsideração do Outro, assim também empregando ardis, artifícios, enfim, ações ou omissões fraudulentas. Incontroverso que o processo é um instrumento posto à disposição das partes não apenas para a eliminação de seus conflitos e para obtenção de respaldo às suas pretensões diversas, mas também e principalmente é um veículo ético para a pacificação social e melhor atuação do direito (CAMARGO, 2015, p. 78).

Tal previsão deve ser vista, interpretada e aplicada como uma norma fundamental de conduta. Acerca do tema, Guilherme Pimenta da Veiga Neves, nos Comentários ao Código de Processo Civil, assinala que:

Com essa inovação, a Lei Adjetiva Civil evoluiu, não para extirpar o caráter subjetivo da boa-fé processual, mas para condicionar, em maior grau, a postura dos personagens do processo em prol da confiabilidade, efetividade e lealdade nas relações judiciais. Antes, um ato processual de patente deslealdade não poderia ser imputado como de má-fé, acaso não se comprovasse a intenção lesiva do agente, mas, a partir de 18 de março de 2016, sob a égide do art. 5º do NCPC, na sua perspectiva objetiva, as partes e auxiliares da Justiça responderão, em casos tais, por má-fé, com eventual anulação dos efeitos do ato e/ou aplicação de multa, quando não se tratar de hipótese de mera advertência do Juiz processante (2016, p. 59).

O hermeneuta, intérprete, aplicador e trabalhador do direito, ao integrar em si e para si uma práxis autrement, com lastro no discurso da filosofia e da ética levinasiana, há de fortalecer, encorpar, enriquecer e estabelecer uma ética jurídica e processual que tem matriz na responsabilidade pelo Outro, que passa a ser acolhido de forma mais intensa pelo sistema jurídico, em benefício direto aos detentores de direitos, às pessoas de carne e osso, aos jurisdicionados, aos consumidores da Justiça.

4 Cooperação no CPC/2015 e alteridade

O princípio da cooperação ou colaboração processual é indissociável da boa-fé, e também da mínima noção de alteridade e respeito ao Outro, por isso todos os sujeitos processuais devem cooperar entre si à obtenção, em tempo razoável, de uma decisão de mérito justa e efetiva (artigo 6º do CPC/2015).

O mesmo raciocínio anteriormente esposado, acerca da dificuldade das partes cooperarem efetivamente, pelo simples fato do seu antagonismo e da inevitável e costumeira dialética processual, impõe-se também no que concerne ao princípio da cooperação.

A cooperação, no aspecto técnico e processual, é bem delineada por Daniel Amorim Assumpção Neves nos termos seguintes:

A colaboração das partes com o juiz vem naturalmente de sua participação no processo, levando aos autos alegações e provas que auxiliarão o juiz na formação de seu convencimento. Quanto mais ativa a parte na defesa de seus interesses mais colaborará com o juiz, desde que, é claro, atue com a boa-fé exigida pelo artigo 5º do Novo CPC.

A colaboração do juiz com as partes exige do juiz uma participação mais efetiva, entrosando-se com as partes de forma que o resultado do processo seja o resultado dessa atuação conjunta de todos os sujeitos processuais. O juiz passa a ser um integrante do debate que se estabelece na demanda, prestigiando esse debate entre todos, com a ideia central de que, quanto mais cooperação houver entre os sujeitos processuais, a qualidade da prestação jurisdicional será melhor (2017, p. 33).

No que toca à cooperação pelo viés dos órgãos jurisdicionais, a preocupação efetiva dos juízes e tribunais com o resultado no, pelo e do processo, assim também a preocupação legítima com o Outro, pode e deve contribuir para uma prestação jurisdicional mais qualitativa, e ainda à minimização do juriscentrismo, a caminho de um policentrismo decisório e de reconhecimento do Outro.

Naquilo que concerne em especial ao aspecto cooperativo entre as partes, José Miguel Garcia Medina delineia o seguinte entendimento:

As partes, por sua vez, também são responsáveis pelos resultados do processo – ainda que defendam interesses pessoais. Deve haver colaboração entre as partes, e não apenas das partes com o juiz, ou deste para com aquelas. Evidentemente, as partes têm interesses contrapostos, em relação ao desfecho do processo. Mas o dever de colaborar “para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio”, como afirma o art. 266 do CPC português, diz respeito também à relação entre as partes. Isso corresponde “à introdução de uma nova cultura judiciária que potencie o diálogo franco entre todos os sujeitos processuais, sem desprezar, evidentemente, a distinção da dimensão que tem o princípio, na relação entre juiz e partes e entre as partes (MEDINA, 2016, p. 133).

Só haverá, no entanto, legítima e efetiva colaboração ou cooperação processual, a partir do instante em que naturalmente o Eu reconheça, pela simples imperiosidade e necessidade de tal reconhecimento, o Outro e suas exigências, a gerar uma troca mais saudável e a (cons)ciência de que o Eu de uma dada relação pode estar (e por certo estará) em breve exatamente na posição do Outro.

José Rogério Cruz e Tucci bem delineia os sentidos da cooperação entre Eu e Outro, pelas seguintes lições:

Na verdade, inspirando-se na moderna doutrina que já adotara entre os princípios éticos que informam a ciência processual o denominado “dever de cooperação recíproca em prol da efetividade”, o legislador procura desarmar todos os participantes do processo, infundindo em cada qual um comportamento pautado pela boa-fé, para se atingir uma profícua comunidade de trabalho. E isso, desde aspectos mais corriqueiros, como a simples consulta pelo juiz aos advogados da conveniência da designação de audiência numa determinada data, até questões mais complexas, como a expressa previsão de cooperação das partes ao ensejo do saneamento do processo (CPC/2015, art. 357, § 3º). Trata-se aí de cooperação em sentido formal (2017, p. 11-12).

Trata-se, não há dúvida, de objetivo ou escopo de difícil consecução, a exigir inclusive uma formação jurídica e acadêmica que ultrapasse as barreiras do rigorismo técnico e do positivismo estrito, a fim de que bases filosóficas e éticas sejam (re)introduzidas para formar uma manancial de trabalhadores jurídicos mais (cons)cientes de seu mister.

De qualquer modo, vale como mais um elemento a indicar a relevância e a imprescindibilidade da probidade processual e do respeito ao Outro, quiçá a influenciar, gradativa e positivamente, os profissionais do direito e, ainda como um consectário indispensável, as partes diretamente envolvidas nas lides (CAMARGO, 2015, p. 78).

Não se pode, conforme mencionado acima, olvidar que as mudanças positivas levam um tempo para se consolidarem na sociedade, porque carecem muito mais de mudança do ser, do que da regra.

5 É possível um processo civil mais ético e eficiente pelo viés da alteridade?

A resposta ao questionamento é por certo afirmativa. Mais que isso: é imprescindível que se concretize uma práxis processual mais respeitosa, transparente, pensada, interpretada, aplicada e praticada pelo viés do Outro. E não se trata de utopia nem de subjetivismo, menos ainda de permissão ao solipsismo ou decisionismo, ou ainda agressão à ordem jurídica, até porque a Constituição Federal, em seu preâmbulo, apregoa e impulsiona que o exercício de todos os direitos e bens jusfundamentais deve ser revelado e caracterizado pelos valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

Para tanto, é salutar jogar luzes na cegueira reinante. Acerca da reconstrução do pensamento e da práxis jurídica e processual pelo caminho autrement, Carlos Eduardo Nicoletti Camillo consigna:

[...] a interpretação autrement faz repensar não somente a hermenêutica ou os meios de integração da norma jurídica, mas, sobretudo, as fontes do direito: norma jurídica, costumes, jurisprudência, doutrina, princípios gerais do direito, pois nenhuma delas se revela mais consistente que o Outro, especialmente porque, na cadeia de produção de todos esses meios pelos quais o direito se revela, o Outro sempre assume – ou deveria assumir – a condição de verdadeiro ícone e protagonista da realidade social. A verdadeira fonte do estado social e, pois, do direito é o Outro. À luz da alteridade, as fontes do direito não passam de referenciais instrumentais em relação ao Outro (2016, p. 95-96).

Extraídos da obra singular de Carlos Eduardo Nicoletti Camillo, há muitos exemplos de interpretação autrement no direito brasileiro, a exemplo dos direitos da criança e do adolescente, do jus postulandi na Justiça do Trabalho, da questão das cotas nas universidades, da utilização de células-tronco embrionárias para fins de pesquisa e clonagem terapêutica, da chancela constitucional da família homoafetiva, da substituição temporária do útero (barriga de aluguel), da ortotanásia e testamento vital, do direito à identidade de gênero e da transexualidade.

A começar pela ideia de um juriscentrismo exacerbado, assim também aquela deletéria posição dos profissionais do direito (Eu), em geral como o centro do universo jurídico e das aspirações do, no e pelo processo, fato é que atualmente se vive as consequências do individualismo e do narcisismo, a encorpar o aspecto prático, utilitarista, egoístico e individualista das pessoas.

Induvidoso, em tal palmilhar, que o sistema jurídico pode (e deve), como produto cultural e ético da humanidade que é, superar algumas de suas deficiências e questões desumanizadoras. A propósito de tal assertiva, novamente em Carlos Eduardo Nicoletti Camillo se encontra que:

O sistema jurídico é fruto da atividade intelectual e cultural do jurista e sua concepção é mais ampla que a de ordenamento jurídico, que pressupõe um agrupamento de normas, emanadas de autoridades competentes e vigorantes no Estado.

Para Emil Lask, o sistema jurídico não se resume com o sistema normativo, e também abrange outras ciências afins, tais como a ciência do direito, a teoria social do direito, a antropologia jurídica e a hermenêutica jurídica (2016, p. 102).

Normas jurídicas, por si sós, tomado como exemplo e ilustração mais recente o CPC/2015, em vigor desde 18 de março de 2016, por mais bem formuladas e estruturadas que sejam, não têm a potencialidade e a plenitude para mudar uma cultura jurídica também líquida (BAUMAN, 2007), descartável, individualista e beligerante, daí a proposta em Lévinas de um olhar mais atento à alteridade como mecanismo propulsor de mais responsabilidade, lealdade, colaboração e ética processuais.

6 Considerações finais

O trabalho apontou um breve discurso sobre a filosofia de Emmanuel Lévinas no que concerne à alteridade como mecanismo para criar supedâneo ao entendimento e impulsionamento de relações humanas e sociais mais transparentes, éticas e responsáveis. É buscar o conhecimento, visitação e acolhimento da pessoa humana pelo Outro, por uma visão e prática autrement.

Em seguida, discorreu-se sobre a imbricação entre alteridade e a boa-fé processual, com espeque nas premissas esculpidas no CPC/2015 acerca do tema, assim também no que respeita à harmonização ou influência entre alteridade e cooperação ou colaboração processuais, visando uma práxis processual em fuga do imediatismo, do individualismo, da superficialidade, do desrespeito ao Outro e do juriscentrismo.

Não por outra razão, o trabalho se enveredou pela tratativa da importância de uma visão de alteridade mais substancial, com especial enfoque nas lições filosóficas de Emmanuel Lévinas e de estudiosos de seus trabalhos, como mola propulsora a uma coexistência processual mais qualitativa, eficiente e responsável.

O direito e o processo não podem perseverar (ao menos não tanto) como veículos de dominação e de afirmação dos valores egoísticos da humanidade, que teima em uma ontologia totalizante, unificadora e criadora de alheamento, de não respeito e responsabilidade pelo Outro.

Não se trata, aqui, por mais óbvio que possa parecer, de abdicar dos direitos em prol do Outro, mas sim de respeitar o adversário, o oponente, respeitar aquilo a que se denomina, por empréstimo, de fair play processual, sem perder a essência do processo, isto é, o confronto de pretensões resistidas. A verdade é que, cada vez mais que se tenha um processo cooperativo, colaborativo, e que observe, de fato, a boa-fé e a alteridade, ter-se-á, paulatinamente, uma maior abertura para a efetiva participação das partes, dentro de uma sistemática processual mais democrática, co-participativa, policêntrica e multiportas.

E neste sentido, diante de uma sociedade cada vez mais egoísta e distante da alteridade, pensar no Outro talvez seja mesmo um ato de ousadia, o que por certo tornará o ser mais essencialmente humano, também a permitir que o direito e o processo sejam um ambiente de trocas mais solidárias e justas, a permitir que brote minimamente o “ser-para-o-outro”.

Nesse cenário desejado, harmônico e de respeito mútuo, o artigo se encerra com uma provocação acadêmica em sentido positivo: seria viável pensar (e praticar) que os direitos humanos constituiriam na verdade, em essência, profundidade e inteireza, os direitos do Outro, isto é, a fonte de todos os meus direitos?

Referências

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[Artigo convidado]

DOI: https://doi.org/10.18256/2238-0604.2018.v14i2.2833

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