1812

Positivismo Jurídico e os Direitos da Personalidade Natural

Legal Positivism and Natural Personality Rigths

Igor Henrique dos Santos Luz(1); Jaime Domingues Brito(2)

1 Analista Judiciário (Área Judiciária) da Justiça Federal do Paraná. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina/PR. Pós-graduado em Direito Previdenciário pela Universidade Estadual de Londrina/PR. Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná/UENP.
E-mail: [email protected]

2 Doutor em Direito pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru (ITE), SP. Mestre em Direito pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Professor titular nos cursos de graduação e de Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Professor no curso de pós-graduação de Direito Processual Civil do Instituto de Direito Constitucional e Cidadania (IDCC), de Londrina, PR. Professor do Curso de Graduação em Direito da UNILONDRINA Advogado.
E-mail: [email protected]

Resumo

O presente artigo propõe-se a analisar o quadro geral dos direitos da personalidade, relativos à pessoa natural, dentro da moldura normativa brasileira, e, sob a opção metodológica do positivismo jurídico (lato sensu). Para tanto, situa, brevemente, no tempo e na história, a origem e evolução do complexo de direitos denominados personalíssimos. Analisa o conceito de pessoa, que lhes dá fundamento, tanto em uma perspectiva doutrinária e legal quanto filosófica e antropológica. Explicita as duas principais tendências filosóficas (unitária e reducionista - esta, por vezes, considerada expansionista) utilizadas na definição do conceito de pessoa. Perpassa a implicação/relação das questões éticas sobre a criação e interpretação das leis. Noticia as constantes discussões, controvertidas, acerca de temas como o aborto, a realização de tatuagens, a doação de órgãos, a transfusão de sangue, a automutilação (quando culturalmente aceita) ou a amputação de membros (por recomendação médica), a manipulação genética, e, ainda, a eutanásia. Por fim, destaca a situação vivenciada no contexto do ‘pós-positivismo’, em que a discricionariedade judicial é paradoxalmente utilizada como justificativa para o confronto e para a aplicação da metodologia juspositivista (em especial, nas vertentes do moralismo jurídico e do realismo jurídico).

Palavras-chave: Pessoa. Direitos da personalidade. Positivismo jurídico.

Abstract

This paper aims at analyzing the general framework of personality rights related to the natural person within the Brazilian norm and within the legal positivism (latu sensu) methodological option. Therefore, it briefly situates in time and history the origin and evolution of the so called personal rights. It also analyzes the concept of person in which it is grounded in a perspective both doctrinal and legal as well as philosophical and anthropological. It explains the two main philosophical tendencies (Unitary and reductionist - being the later sometimes considered expansionist) used in the definition of the concept of person. It permeated the implication/connection of ethical issues on the creation and interpretation of laws. It brings the constant controversial debates on topics such as abortion, tattooing, organ donation, blood transfusion, self-mutilation (when culturally accepted) or amputation of limbs (by medical recommendation), genetic manipulation, and also euthanasia. Finally, it highlights the situation experienced in the context of ‘postpositivism’, in which judicial discretion is paradoxically used as justification for confrontation and for the application of legal positivism methodology (especially in the juridical moralism and legal realism aspects).

Keywords: Person. Personality rights. Legal positivism.

1 Introdução

Em um contexto pós-positivista, como o vivenciado pelo Brasil, após a sua redemocratização e a promulgação da Constituição de 1988, cujas normas ostentam forte cunho principiológico, a interpretação e aplicação do direito acabam por sofrer com o decisionismo judicial, em que moralismo e positivismo se interrelacionam.

Com efeito, a pretexto de efetivar-se o conteúdo das normas constitucionais, em especial aquelas de caráter programático ou arroladas como direitos e garantias fundamentais, o subjetivismo do julgador, de âmbito administrativo ou jurisdicional, exsurge sem limitações objetivas à qualquer subsunção.

O realismo jurídico parece imperar na Teoria da Decisão Judicial, mas não sem uma oposição, por vezes, frequente, dos adeptos do moralismo jurídico, ou ainda, dos jusnaturalistas.

Dentro deste panorama, as normas ordinárias também estão, imperiosamente, sujeitas a um necessário filtro de constitucionalidade. Mas é a baixa densidade normativa das normas deste jaez e, de modo específico, a dos direitos fundamentais, que acarreta a problemática entre a segurança jurídica e os imperativos éticos, que se mostram em constante conflito).

Assim, e, por serem, os direitos personalíssimos, um plexo de direitos considerados de fundamental importância ao indivíduo humano, não se encontra consenso possível na sociedade ocidental deste início de século e virada de milênio, ainda mais, quando o desenvolvimento das biotecnologias e o rompimento de tradições agravam os questionamentos éticos a respeito das posturas passíveis de adoção pelas pessoas, quanto ao seu corpo, ao seu gênero, à sua liberdade, às suas escolhas, ao seu planejamento familiar, aos seus direitos reprodutivos, e, até mesmo, quanto à sua própria vida. Isto, para não adentrar os aspectos jurídicos de suas projeções sociais, que exigiriam o reconhecimento de direitos ou personalidade (extensível) a animais e outras ficções, como, por exemplo, a de espíritos.

Por estas razões, afigura-se necessário o estudo em torno do quadro geral dos direitos da personalidade, e de suas relações com o positivismo jurídico, de modo a tentar encontrar uma saída plausível para o constante choque entre o subjetivismo, o moralismo e o legalismo em questões que afetam, diretamente, a pessoa humana e sua dignidade.

2 O Quadro Geral dos Direitos da Personalidade e sua Relação com o Positivismo Jurídico

Segundo o consenso doutrinário, a teoria dos direitos da personalidade é muito recente, tendo se iniciado com Otto Von Gierke, ainda, no século XIX. E, embora haja resquícios da tutela à integridade (física ou moral) do homem, desde o Código de Hamurabi, o movimento por sua proteção ganhou expressão com o jusnaturalismo grego, a partir da distinção (ou oposição) entre nómos e physis (excesso, injustiça), já, no século V a.C.

Desenvolveu-se, também, entre os romanos, que asseguravam algumas esferas da personalidade, como a integridade física, a honra e o domicílio, através de leis como a Lex Aquilia e a Lex Cornelia, ou ainda, mediante o uso da actio iniuriarium, de que se podia valer a vítima do crime de iniuria.

Francisco Amaral1 chega a afirmar, a propósito, que “a hybris grega e a iniuria romana constituíram ‘o embrião do direito geral da personalidade’”.

Neste período, ainda, surgiu o Cristianismo, propagando a existência de um vínculo ou de uma relação entre o homem (criatura) e Deus (seu Criador), que lhe atribuía um valor inato e inderrogável - gérmen da noção de dignidade humana. Após seu desenvolvimento, também, durante a Idade Medieval, nos pensamentos de Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino, fundou-se a ideia de uma lex divina, superior aos costumes e às normatizações romanas, mas impositiva de dogmas e do respeito ao próximo.

Verificou-se, igualmente, na Idade Média (em 1215), a promulgação da Magna Carta, marco do constitucionalismo e das garantias liberais negativas, que, por consequência, determinavam um certo respeito à personalidade.

No entanto, os direitos personalíssimos se universalizaram, mesmo, com o racionalismo moderno da Filosofia das Luzes, que secularizou a ideia dos direitos fundamentais, através de documentos como o Bill of Rights (1689), dos estados americanos, e, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, promulgada durante a Revolução Francesa.

Aliás, os direitos da personalidade são espécie do gênero direitos fundamentais, que, a seu turno, são espécie do gênero direitos humanos.

E o reconhecimento do Direito Humanitário, sabe-se, acentou-se na primeira metade do século XX, com as Guerras Mundiais, exsurgindo, daí, uma categoria universalizante, em âmbito supranacional, de interesses tuteláveis, perfectibilizada e discriminada em documentos como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, e, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, de 1950.

No contexto desse movimento internacionalizante, nasceu uma perspectiva teórica denominada pós-positivismo ou neoconstitucionalismo, que mescla o positivismo jurídico com o moralismo ou o jusnaturalismo, em uma espécie de teoria híbrida, interpenetrável, associada à noção de ‘retomada de valores’.

Sobre este pano de fundo, a propósito, foi promulgada a Constituição de 1988, e desenvolveram-se os Pré-Projetos de Código Civil, que culminaram na edição do Código Civil de 2002.

A compreensão deste escorço histórico afigura-se mais do que necessária, para que se possa tratar das influências do positivismo sobre os direitos da personalidade. Afinal, é a adoção de uma perspectiva naturalista ou positivista, relacionada, ou não, com a moral, que conformará o modus operandi da tutela dos interesses personalíssimos, inclusive, sua própria conceituação.

O positivismo jurídico2 (ou juspositivismo) tem várias Escolas, como as do positivismo legalista, do positivismo histórico, do positivismo sociológico ou do positivismo conceitual, podendo-se destacar, como seus expoentes, Hans Kelsen, Norberto Bobbio e Herbert Hart, dentre outros.

Suas características essenciais, de acordo com Luís Roberto Barroso3, são:

(i) a aproximação quase plena entre Direito e Norma; (ii) a afirmação da estabilidade do Direito: a ordem jurídica é una e emana do Estado; (iii) a completude do ordenamento jurídico, que contém conceitos e instrumentos suficientes e adequados para solução de qualquer caso, inexistindo lacunas; (iv) o formalismo: a validade da norma decorre do procedimento seguido para a sua criação, independendo do conteúdo. Também aqui se insere o dogma da subsunção, herdado do formalismo alemão.

E, seu ponto de intersecção com a teoria dos direitos da personalidade, no Brasil, ao menos, dá-se a partir do modelo normativo adotado pela Constituição de 1988 (denominada Constituição Cidadã), que elegeu um modelo principiológico, de cláusulas abertas, com natureza programática (se bem que já se discute, hoje em dia, estas ‘funções de compromisso’), fundado no valor da dignidade da pessoa humana (art. 1o, III, da CF).

A dignidade humana, assim, passa a ocupar o epicentro do sistema constitucional4, condicionando a criação e a interpretação de suas normas, bem como, as da legislação ordinária, em que se insere o Código Civil. Fá-lo, no entanto, sob imperativos morais, buscando atender aos fins sociais das sobreditas normas jurídicas, cujos conteúdos finalísticos não são declarados ou explicitados nos textos legais, ou então, em reconhecimento a um balizamento naturalista, decorrente da condição inata do ser humano e de seu estado de natureza (individual ou de índole sócio-política).

Desta posição, emergem questionamentos a respeito da atribuição de personalidade jurídica, ou não, ao nascituro, diante do contido no art. 2o, do CC; da extensão da personalidade após a morte, mesmo à vista do contido no art. 6o, do CC; da possibilidade de realizar-se o aborto ou a eutanásia; do possível reconhecimento e adoção de técnicas de melhoramento genético, pela eugenia); da legalidade e moralidade do transplante de órgãos; da legitimidade da transgenitalização etc.

Tais questões se colocam em atendimento aos interesses de diversos grupos sociais, sejam minorias ou maiorias, mas chocam-se com a tendência positivista de aplicação do Direito Brasileiro, herdada de nosso período colonial, e, mantida, intuitivamente, segundo alguns doutrinadores5, até os dias atuais, à contrariedade da proposta constitucional.

Este descompasso teórico, aliado à baixa densidade normativa6 dos textos legais, ou, à sua abertura interpretativa, é responsável por inúmeras incoerências jurisdicionais. Isto porque, não obstante o juspositivismo aceite o decisionismo7, o distanciamento tomado pelo aplicador da norma8, que, também, caracteriza-se por ser desvinculado de imperativos morais, acaba por dissociar, muitas vezes, o direito efetivado, vinculado às possíveis posturas interpretativas, dos interesses sociais, associados a expectativas diversas, em maior ou menor proporção, alimentadas por um ideal pós-positivista.

As normas do Código Civil, deve-se destacar, são claras, mas, no âmbito de um direito civil-constitucionalizado, acabam por ter de enfrentar um filtro hermenêutico de constitucionalidade, que pode primar por dar-lhes uma conformação moralista ou naturalista. O argumento do naturalismo justifica, de fato, inúmeras tendências9, como a da aceitação da transgenitalização10, da modificação do estado civil do indivíduo (lato sensu), da não escravidão, mas pode, a contrario sensu, justificar a adoção de posicionamentos restritivos, como a não autorização da realização de transplantes de órgãos, a sujeição à lei do homem mais forte, o banimento, a morte prematura do idoso. Tudo, conforme o valor ético-moral que se eleja na sociedade e que seja passível de justificação sob o comando teleológico da norma.

Trata-se, ao que parece, de uma segurança jurídica condicional, e, cujo condicionante passa a ser a ideia de proporcionalidade (no procedimento da ponderação de interesses), ‘rechaçada’ que está, a regra majoritária pura, ao menos, nos sistemas democráticos.

Não há, para uma parcela da doutrina, qualquer estabilidade das relações sociais (fim último do ordenamento jurídico), razão por que o positivismo jurídico deve ser aplicado de modo mais adequado, mediante parâmetros lógico-racionais de aceitação, como forma de combater o hibridismo arraigado na legislação brasileira que tutela os direitos personalíssimos, inclusive, para sua expansão.

Estes parâmetros, consoante a proposta de Dimitri Dimoulis, tomariam por análise:

a) Competência. O Poder Judiciário possui a competência para realizar certa forma de controle ou intervenção? Para responder é necessário examinar tanto as normas que estabelecem a competência formal para certa decisão como os elementos normativos que indicam sob quais condições o Judiciário pode contrariar atos e omissões dos demais poderes.

b) Utilização das fontes. A decisão cita a doutrina e a jurisprudência de maneira completa e ponderada ou limita-se a invocar elementos que corroboram sua tese, silenciando posicionamentos contrários?

c) Interpretação sistemática. A decisão interpreta o direito em vigor de maneira sistemática ou limita-se a indicar normas que favorecem certo posicionamento, ignorando outras?

d) Qualidade da subsunção. A consequência jurídica foi deduzida com rigor lógico de certa premissa ou trata-se de falsa subsunção? Como dissemos, o segundo ocorre frequentemente quando se deduz uma consequência concreta de uma norma principiológica ou de uma ponderação que permite alegar a prevalência de certo princípio de maneira não fundamentada. Sabe-se que da premissa que os homens são mortais não podemos deduzir a data de falecimento de cada um. Da mesma maneira, a premissa que a Constituição garante o direito à saúde não permite deduzir com rigor subsuntivo que certo paciente tem direito a certo tratamento.

e) Qualidade das provas. As afirmações da decisão que invocam fatos ou tendências foram comprovadas de maneira satisfatória ou permanecem retóricas? Quando uma decisão afirma, por exemplo, que a legislação sobre entorpecentes protege a saúde pública e isso justifica a punição de produtores e vendedores de tais drogas, os julgadores devem apresentar comprovação empírica do nexo adequado e necessário entre a punição criminal e a tutela da saúde pública e não privar um cidadão de sua liberdade com base em suposições sem fundamento empírico.

A questão reflete com tanta força, que traz divergências e limitações à própria definição dos direitos da personalidade. Seriam, eles, direitos naturais do homem11 ou direitos positivados12? Os direitos incidem sobre a pessoa humana (enquanto objeto) e seus elementos, ou, derivam da pessoa humana e de seus elementos?

Conforme as respostas, pode-se entender pela legalidade do suicídio, se o indivíduo tiver direito ao seu próprio corpo, ou pelo impedimento do aborto, se o embrião for considerado elemento potencial13 da pessoa, ou então, pela concessão de personalidade a objetos e animais14, ou, pela retirada da personalidade de determinadas pessoas consideradas disformes15.

E vai tornando-se ainda mais complexa, se perquirida a possibilidade de reconhecimento da existência de direitos personalíssimos após a morte do indivíduo, ou, até mesmo, de sua própria personalidade16, após o óbito, tendo em vista que o jusnaturalismo, a priori, não abrangeria, senão em um plano metafísico, mencionadas possibilidades. O juspositivismo, todavia, pode levar a cabo tais ficções.

Por fim, cabe destacar, da análise do influxo do positivismo jurídico sobre a teoria dos direitos da personalidade, a necessária conceituação do que venha a ser, justamente, a personalidade jurídica, no contexto do direito positivo.

O conceito, no entanto, é apresentado pela doutrina de Francisco Amaral17:

Pessoa é o ser humano ou entidade com personalidade, aptidão para a titularidade de direitos e deveres.

Titularidade de um direito é a união do sujeito com esse direito. Não há sujeitos sem direitos, como não há direitos sem titular.

Ser pessoa é ter a possibilidade de ser sujeito de direitos, de relações jurídicas, como credor, devedor, pai, cônjuge etc.

[...]

Com uma visão mais atualizada, pode-se dizer que pessoa traduz a qualificação jurídica da condição natural do indivíduo, em uma transposição do conceito ético de pessoa para a esfera do direito privado, e no reconhecimento de que são inseparáveis as construções jurídicas da realidade social, na qual se integram e pela qual se justificam.

Hoje, personalidade jurídica e capacidade jurídica não se confundem, mas interrelacionam-se, sendo a capacidade a medida da personalidade18. Esta distinção, porém, inexistia no direito romano, e, igualmente, inexistiu no Brasil, por longo tempo (até o Código Civil de 1916)19, de maneira que considerava-se pessoa, o sujeito de direitos e deveres capaz de exercê-los.

E, quanto ao conceito na legislação civil brasileira, o mesmo parece não guardar, sob uma leitura rápida, qualquer ressalva, confundindo-se com o indivíduo nascido vivo20. Ou seja, com aquele que foi separado da mulher, findo o período gestacional (ou em etapa que possibilitasse a sobrevida extrauterina), e que, assim, se mantém até sua morte21.

O quid jus ganha outros contornos, se confrontada com a proibição ao aborto, estabelecida nos artigos 124 a 127 do Código Penal. Isto porque a prática do aborto atinge, por interrupção, o ciclo de desenvolvimento do embrião ou do feto, que são as figuras precedentes à do nascido22.

Neste ponto, a leitura, com via interpretativa, realizada sobre a legislação civil brasileira, ao combinar-se com as demais normas do ordenamento jurídico, em especial, com a ideia de inviolabilidade do direito à vida, constitucionalmente assegurado (art. 5o da CF de 1988)23, aprofunda-se, e perde sua simplicidade. A interpretação passa, pois, a ser sistemática.

Assim, porque a própria legislação, em sua integralidade, parece contraditória, haja vista que, mesmo considerando que a personalidade civil começa do nascimento com vida, põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro; mas quais direitos, e, qual a sua natureza: patrimonial ou moral? Os alimentos gravídicos, instituídos pela Lei no. 11.804/08, também, como exemplo, destinam-se, explicitamente, à mulher gestante (art. 1o), e não, ao feto, porém, a verba alimentar fixada objetiva cobrir despesas adicionais do período de gravidez, desde a concepção até o parto, como alimentação especial, assistência médica e psicológica, medicamentos, dentre outras, mas, pergunta-se: com o exclusivo propósito de proteção e preservação da vida e integridade da mulher?.

A seu turno, a Lei de Biossegurança (11.105/05) autoriza tanto a pesquisa quanto a terapia com células-tronco embrionárias (de embriões fertilizados in vitro), desde que sejam consideradas inviáveis ou estejam congeladas há 03 (três) anos ou mais, e haja consentimento dos genitores e aprovação dos projetos e procedimentos pelos Comitês de Ética em pesquisa (cf. art. 5°). Todavia, proíbe a engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano, bem como, a clonagem (art. 6°, III e IV). Há, pois, de indagar-se se ambos os procedimentos, científicos e terapêuticos, não violariam a substância do próprio embrião, considerado, pela própria legislação, gérmen humano.

Em verdade, tudo indica que o conceito de pessoa, mesmo no âmbito jurídico, é influenciado por uma perspectiva ético-sintática. Basta ver, para tanto, os debates travados na seara da Bioética, e seus reflexos na área do Biodireito.

Remanesce, então, ao campo filosófico –ao qual, via de regra, atribui-se, por excelência, a definição de pessoa– a significação do termo. E tal significação, quer seja no âmbito filosófico, quer seja no antropológico, encontra-se bem delineada na fórmula de Boécio, segundo a qual “rationalis naturae individua substantia” (ou seja, a pessoa é a substância individual de natureza racional), ou ainda, na proposta de definição formulada por São Tomás de Aquino, que pregava que “individuo subsistens in rationali natura” (ou que o indivíduo que subsiste numa natureza racional) 24.

Nada obstante, sob o enfoque filosófico, as divergências são muitas, podendo-se, de acordo com a doutrina25, distinguir entre duas tendências de pensamento, uma reducionista (e, por vezes, expansionista26), que busca separar ou diferenciar os conceitos de pessoa, ser humano e vida humana27, e, outra, unitária, que procura a identidade nesses três conceitos.

Estas duas tendências filosóficas, em que se fundamentam as ideias de animação tardia ou adiada e de funcionalidade do indivíduo, no reducionismo, ou, de unicidade/integralidade e potencialidade ativa, no unitarismo, sustentam todo o debate –divergente, por óbvio– em torno da vida e do conceito de pessoa, refletindo na produção e interpretação das normas jurídicas.

E mais, estabelecem balizas para a definição do conceito de dignidade humana, mesmo correndo o risco em torno desta colocação.

Isto porque, vislumbrando-se a pessoa sob uma perspectiva de unidade/integralidade, tem-se que a dignidade que lhe é reconhecida só o é por intermédio de sua percepção como “corpore et anima unus28, não sendo possível atribuir-lhe um reconhecimento valorativo dissociado de sua condição individual, mesmo desde a concepção, pois, já, na conjunção dos gametas (e no estabelecimento deste novo código genético nunca antes visto), a característica humana (da espécie homo sapiens) far-se-ia presente, em substância e espírito (racionalidade/animação), principiando a evolução e desenvolvimento do próprio ser já existente, porém, em forma ainda não completa29.

Por outro lado, identificando-se a pessoa sob uma perspectiva reducionista (ou expansionista), a dignidade que se lhe reconhece é atribuível em razão de suas projeções no mundo e na sociedade, como em muitas hipóteses da fenomenologia, não se mostrando possível atribuir-se características humanas a uma massa informe ou não animada, desprovida até mesmo dos resquícios mais primitivos de sensibilidade, como sugere o início da formação do sistema nervoso, tampouco, àquele indivíduo ou ser humano que, mesmo animado, não se mostre capaz de agir socialmente –quer pela capacidade de fato e/ou de direito–, ou, até, de entender e posicionar-se racionalmente (querendo e escolhendo) quanto à sua atuação.

Mencionada visão permite separar as noções de: (i) vida humana, que somente existiria com a animação da massa pelo espírito (racionalidade/sensibilidade), ser humano, que seria o indivíduo em si (como o bebê e/ou o doente moribundo ou vegetativo, e os detentores de enfermidade mental grave) e identificável por sua espécie, mas destituído de qualquer possibilidade de agir socialmente e de exercer um papel, não sendo possível o reconhecimento de sua pessoalidade/subjetividade; e (ii) pessoa humana, que se identifica com o indivíduo (massa animada/racional/sensiente e subjetivamente capaz de ação social) que exerce e desenvolve suas funcionalidades ordinárias, projetando sua figura no mundo e na sociedade (sob uma forma utilitarista), funcionalidades, estas, não apenas orgânicas e/ou psicofísicas, mas, também, sociais, como as perfilhadas pela identidade de gênero (masculino, feminino e transgênero).

Dependendo de como se balize o reconhecimento da dignidade humana da pessoa –vista esta, sob uma perspectiva unitária ou reducionista/expansionista)– e, assim, o valor que ocupa o epicentro do sistema constitucional, determinar-se-á, com maior ou menor facilidade, também, o acertamento da possibilidade de intervenções no próprio corpo (substância), que poderão caracterizar-se, ou não, como violações à integridade física e moral da pessoa.

Aliás, muito se discute, na seara dos direitos personalíssimos, acerca da possibilidade do aborto30, da realização de tatuagens31, da doação de órgãos32, da transfusão de sangue33, da automutilação (culturalmente aceita)34 ou da amputação de membros (sob recomendação médica)35, da manipulação genética36, e, ainda, sobre a eutanásia37.

Para uma solução ou resposta, ao menos, neste momento histórico-cultural, a todas as divergências existentes a respeito desses temas, é preciso que o aplicador do direito e o intérprete assumam uma perspectiva a respeito do conceito de pessoa e de sua dignidade humana, orientando-se por uma das tendências filosóficas mencionadas, e, buscando identificar, nas normas do ordenamento jurídico, qual(is) a(s) escolha(s) feita(s) pelo legislador.

Esta capacidade de análise descritiva da norma, aliás, é típica do positivismo jurídico stricto sensu.

Contudo, os temas revelam muito mais escolhas de, e, a subsunção a imperativos éticos, do que, propriamente, jurídicos, e, em um sistema normativo com baixa densidade ou larga abertura principiológica, como o brasileiro, o que exsurge de mais preocupante é a discricionariedade do julgador e aplicador do direito, que pode, para alguns, tornar-se refém do complexo de direitos da personalidade, e, para outros, ser o garantidor de efetividade ao buscar sua maximização.

Por isso, são, constantemente, discutidas técnicas de aplicação do direito, como a ponderação de interesses – hoje, tipificada no art. 489, § 2o, do Código de Processo Civil (Lei no. 13.105/2015), no âmbito de estudos da Teoria da Decisão Judicial.

De toda forma, importa notar que a superação da problemática, nos quadros do próprio positivismo jurídico (lato sensu), ainda não se mostra possível, ainda mais, no contexto ‘pós-positivista’ vivenciado neste início do século XXI, pois os defensores do moralismo jurídico38, tal qual os do realismo jurídico39, permanecem em constante oscilação entre congruências e dissidências de ideias e ideais.

3 Considerações Finais

O que se pode concluir, basicamente, é que, para a definição de pessoa, em nosso ordenamento jurídico (se bem que esta constatação toma ares de veracidade para todos os sistemas ocidentais), uma tomada de posição filosófica é necessária, ao menos, entre as duas principais tendências correntes (unitária e reducionista/expansionista).

O objetivo desta tomada de consciência gravita em torno da percepção, pela legislação e pela sociedade, do indivíduo humano como um ser dotado de ‘corpo e alma’ (“corpore et anima unus”), desde a concepção, ou então, como um ser que inicia seu desenvolvimento biológico de forma dissociada dos elementos da sensibilidade/racionalidade/espiritualidade, que aderem à matéria corporal em momento posterior, viabilizando o exercício de suas funcionalidades (psicofísicas e sociais).

Logo, estabelecendo-se o momento da animação (lato sensu) corporal, coincidente, ou não, com o início da matéria (fecundação) potencialmente evolutiva (ao menos, quando não sujeita a fatores externos), e sua capacidade de (des)agregação, tem-se por estabelecidos os parâmetros éticos de início e fim da vida, e da própria pessoalidade, enquanto projeção do espírito humano.

Isto porque a legislação positiva carece de elementos suficientes (filosóficos, antropológicos ou biológicos) à fixação do momento em que se origina a pessoa humana, e, por isso mesmo, busca recursos na interdisciplinariedade.

No mais, há de se ter em mente que a Constituição de 1988 traz um extenso rol de direitos fundamentais, dentre eles, os direitos à vida e à integridade física, com um propósito nitidamente protetivo, induzindo o intérprete a uma exegese igualmente tutelar/cautelar, ou melhor, pretensamente preocupada com as consequências das ações inadvertidas e imbricadas ao subjetivo de grupos sociais (minoritários ou majoritários).

A pessoa e os direitos que, a esta condição, se ligam, não podem ser objetificados, pois a dignidade humana impede uma postura normativa desta natureza, cedendo-se, com isso, um vasto espaço ao moralismo, e, como consequência, ao decisionismo.

Por isso, doutrinadores de peso afirmam, nesta quadra da história, que a retomada de valores deve guiar-se em consonância com o positivismo jurídico sociológico, com o realismo jurídico, com o positivismo jurídico inclusivo, ou, até mesmo, com o pragmatismo jurídico-político (se é que existem grandes diferenças entre eles).

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[Recebido: Março 22, 2017; Aceito: Agosto 24, 2018]

DOI: https://doi.org/10.18256/2238-0604.2018.v14i2.1812

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