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Os 50 anos da Lei Geral de Orçamentos (Lei n. 4.320/64):
o esquecimento da lei orçamentária e do Direito
Financeiro no Brasil

Celso de Barros Correia Neto

Doutor em Direito pela USP, Chefe de Gabinete de Ministro do STF e professor da graduação e do mestrado da Universidade Católica
de Brasília e da Pós-graduação Lato Sensu do Instituto Brasiliense de Direito Público.
E-mail: <
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Resumo

O texto aponta como os cinquenta anos de vigência da Lei n. 4.320/1964, lei geral de orçamentos no Brasil, representaram um período de esquecimento e desprestígio do Direito Financeiro no país e aponta sinais de mudança.

Palavras-chave: Direito Financeiro. Orçamento público. Esquecimento.

1 Introdução

Este artigo1 aponta como os 50 anos da Lei n. 4.320/1964 representaram, do ponto de vista do mundo jurídico, o “esquecimento” do Direito Financeiro, no Brasil, e o afastamento da comunidade jurídica dos debates orçamentários. Pretende-se demonstrar a maneira como o discurso jurídico, no correr das últimas décadas, deixou de lado temas de Direito Financeiro, relegando-os ao plano da política e da economia.

A questão não se cinge ao plano acadêmico, diz também respeito à maneira como os Tribunais decidem e delimitam seu espaço de atuação, inclusive quanto ao controle de constitucionalidade das leis orçamentárias. O esquecimento do Direito Financeiro indica, até certo ponto, uma forma de descontrole (jurídico) das finanças públicas.

Há, no entanto, sinais da mudança. Cada vez mais, percebe-se a necessidade de revalorizar o Direito Financeiro no Brasil. E nessa preocupação
podem estar alguns dos primeiros passos para uma importante mudança na comunidade jurídica, como veremos a seguir.

2 As cinco décadas da Lei n. 4.320/1964

A Lei n. 4.320/1964 já conta com mais cinco décadas. Quando de sua edição, pouco antes do início do regime militar, em 17.3.1964, foi considerada inovadora e ousada para aquele momento histórico, entre outras razões, por ter implementado, já na década de 1960, o regime de competência na despesa pública, o que muitos países desenvolvidos só fizeram duas décadas mais tarde, a partir dos anos 1980.2 Esse diploma legal, com poucas mudanças, conviveu com quatro textos constitucionais e mantém-se até hoje efetivo e importante. Trata-se, é claro, da Carta de 1946, sob a qual foi editada, da Constituição de 1967, da Emenda Constitucional n.o 1, de 1969, e da Constituição Federal de 1988, hoje em vigor.

Desde sua edição, a nossa Lei Geral de Orçamentos representou um passo significativo na direção do aperfeiçoamento do processo orçamentário, da contabilidade pública e, de modo geral, das finanças públicas no Brasil. Contribuiu decisivamente para introduzir e consolidar importantes balizas que até hoje vigoram em nossas finanças públicas, como é o caso, por exemplo, dos princípios orçamentários da universalidade (arts. 2o a 4o), anualidade (arts. 2o, 34 e 35) e exclusividade (art. 2o); das etapas de realização dos gastos públicos (arts. 58 a 70); da definição do regime jurídico dos créditos adicionais (arts. 40 a 46) e da disciplina dos fundos especiais (arts. 71 a 74).3

Passados 50 anos, muita coisa mudou. O país retomou o caminho da Democracia, editou uma Constituição fortemente voltada à efetivação dos direitos fundamentais, venceu a inflação, alcançando a estabilidade monetária, adotou o regime da responsabilidade fiscal e deu passos significativos na direção da efetivação dos direitos humanos e da redução das desigualdades sociais. Tudo isso, é claro, acabou traduzindo-se também em custos orçamentários crescentes, que fazem com que, hoje, o orçamento brasileiro seja “bem maior do que o de países com uma renda por habitante similar à nossa”, equiparando-se “àqueles encontrados em países desenvolvidos”, como bem destaca Fernando Rezende, na obra “O orçamento dos brasileiros: por que ele não desperta maior interesse?”.4

Do ponto de vista do debate jurídico sobre o orçamento público, no entanto, esses 50 anos significaram um período de esquecimento da matéria no ensino jurídico, nas academias e nos tribunais.

Não se trata, é claro, que seja um esquecimento total. E espera-se que não seja definitivo. O fato é que, nas últimas décadas, nota-se uma progressiva perda de interesse da comunidade jurídica em relação à questão orçamentária: pouco se estuda, pouco se escreve e pouco se fala sobre orçamento público nos espaços jurídicos.

3 Direito Financeiro, uma disciplina esquecida?

Apontar causas desse processo não é tarefa simples. A ausência de leis para regular certos temas e, particularmente, a falta de uma nova lei geral de orçamentos, prevista no art. 165, § 9o, da Constituição Federal, podem ter tido algum papel nesse contexto. Mas certamente não têm a responsabilidade exclusiva por esse fenômeno.

É bem provável que o longo período de inflação que vivemos em décadas passadas – e que todos desejam que nunca mais se repita! – tenha também contribuído de forma significativa para esse desinteresse. Afinal, na prática, a inflação, ao corroer a moeda, inviabilizava qualquer proposta de ordenação jurídica efetiva em matéria de orçamento e finanças públicas.5

Os longos anos de ditadura militar no Brasil também podem ter contribuído para o esquecimento do Direito Financeiro como disciplina jurídica, na medida em que subtraíram o debate a respeito da alocação de recursos públicos do espaço público. A propósito, destaca Fernando F. Scaff:

No Brasil, durante a ditadura militar, poucos se atreveriam a discutir com o governo a melhor forma de usar os recursos públicos ou mesmo como controlar esses atos financeiros. Penso ser esse um dos motivos pelos quais, nos últimos 50 anos, houve a predominância dos estudos de Direito Tributário, costela apartada do Direito Financeiro. A discussão fracionada da relação Fisco-contribuinte era mais palatável ao regime de então do que o debate jurídico-político sobre o uso dos recursos públicos como um todo. Isso se manteve de forma inercial com a redemocratização.6

Não é fácil saber o porquê desse “esquecimento” aqui mencionado. Muitos fatores podem ter conduzido a esse resultado. O fenômeno, aliás, não parece ter ficado restrito ao Brasil. Cite-se, por exemplo, a obra de Guilhermo Horacio Corti, na Argentina, a apontar que, de certo modo, o mesmo “esquecimento” parece ter se passado naquele país.7

O autor denuncia a “assimetria conceitual” que existe entre o tratamento jurídico que se confere aos tributos (Direito Tributário) e aos demais elementos da atividade financeira do Estado (Direito Financeiro). A expressão refere-se a uma forte tendência de excluir do debate jurídico aspectos da atividade financeira que não dizem respeito à tributação e de remetê-los ao plano das questões políticas e/ou dos estudos econômicos e contábeis. Vale dizer, o orçamento só é examinado pelo pensamento jurídico em seu aspecto formal, enquanto a tributação é objeto de consideração tanto formal quanto material.8 Explica Corti:

o estudo dos gastos públicos se emoldura em uma linguagem baseada na categoria da necessidade e, portanto, alheia e indiferente à linguagem do direto. E o estudo dos recursos, por outro lado, se emoldura em uma linguagem jurídica e constitucional das garantias.9

Em outras palavras, pode-se dizer que, enquanto os gastos públicos foram relegados ao plano do discurso econômico das necessidades e do discurso político das funções do Estado, a arrecadação de receitas, especialmente por meio de impostos, recebe tratamento jurídico pormenorizado, com fundamento no próprio texto constitucional, que assegura direitos e garantias individuais ao cidadão-contribuinte.10 Aliás, no Brasil, esses direitos subjetivos foram alçados ao nível da cláusulas pétreas pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 939.11

Na prática, tal “assimetria” conduz à irrelevância do fenômeno financeiro, por meio de tripla exclusão: do âmbito do conhecimento, do controle judicial e, por fim, do próprio mundo jurídico. Em outras palavras, pouco se estuda e pouco se conhece sobre orçamento público no Direito e talvez, por isso, se acredite que as leis orçamentárias não possam elas mesmas ser submetidas a qualquer sorte de controle judicial efetivo.

De certa forma, esses mesmos sinais de assimetria conceitual se fazem notar no Brasil. Aqui também se pode perceber uma diferença de ponto de vista e de tratamento jurídico entre os tributos e o orçamento público em geral.

Sem que se saiba exatamente o porquê, a comunidade jurídica, no decorrer dos últimos anos, interessou-se muito mais pela maneira como os recursos públicos são arrecadados – isto é, os tributos – do que pela forma como as receitas são aplicadas – ou seja, as despesas públicas. Enxergamos nas leis orçamentárias leis “meramente formais”, sem matéria jurídica propriamente dita ou conteúdo vinculante. Há inclusive quem afirme que se trata de mera “conta”, visto que não contém norma jurídica geral e abstrata. Essa definição, aliás, encontra-se em diversos julgados do Supremo Tribunal Federal, antes de 2008, como veremos a seguir.

Dessa premissa, extraímos conclusões como de que as leis orçamentárias não deveriam ser submetidas ao controle judicial, de que delas não podem decorrer direitos subjetivos ou de que os custos orçamentários da efetivação de direitos e da implementação de políticas públicas não podem ser levados em conta como um “argumento propriamente jurídico” numa demanda judicial.

Na mesma linha, analisando o fenômeno no Brasil, também apontam Luís Roberto Barroso e Eduardo Mendonça, ao contraporem o tratamento conferido aos tributos e às despesas públicas:

Uma vez que a tributação interfere no direito fundamental de propriedade [...], soa razoável que o Estado, em princípio, só arrecada coativamente o necessário. A medida da necessidade deve ser definida pela via democrática, respeitados os limites constitucionais. No extremo oposto, a disciplina da despesa pública tem ficado relegada a um imerecido segundo plano. Tão logo as pessoas se separam do seu dinheiro, parecem esquecer que o conjunto dos valores arrecadados pelo Estado continua sendo seu – da coletividade – e, como tal, deveria ser aplicado com o seu conhecimento e em seu benefício.12

De certo modo, é como se o ordenamento jurídico e a Constituição, em particular, dispusessem apenas sobre captação dos recursos públicos – especialmente por meio da cobrança de tributos – e a proteção do contribuinte, e não sobre despesa pública e o orçamento público, deixando ambos relegados ao plano da decisão política discricionária, o que evidentemente não condiz com a realidade da legislação em vigor.

A excessiva discricionariedade na alocação de recursos públicos traduz-se em arbitrariedade. “Tal descaso tem se traduzido em uma combinação perversa de mecanismos ineficazes de controle jurídico da aplicação de recursos, de índole puramente formal, e inexistência de controle político-eleitoral efetivo”13, destacam Luís Roberto Barroso e Eduardo Mendonça. Em especial, “A carência de estudos jurídicos sistematizados constitui um incentivo ao uso irracional e ao desvio de recursos públicos”, sintetiza Emerson Cesar da Silva Gomes.14 Cria-se, de certo modo, um “espaço à margem do direito”, livre de regulação jurídica efetiva e, por conseguinte, de controle judicial.

É evidente que essa postura não condiz com o Estado de Direito nem com os objetivos traçados na Constituição Federal de 1988. Felizmente, há claros indícios de mudança no Brasil.

4 Sinais de mudança

Alguns sinais nos permitem afirmar que estamos a trilhar um caminho de revalorização do tema do orçamento e das finanças públicas no âmbito da comunidade jurídica, tanto em termos do ensino e da pesquisa jurídica quanto da atuação do Poder Judiciário.

Vale citar um exemplo que é particularmente ilustrativo. Por muitos anos, prevaleceu, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), a firme tendência de afastar o cabimento do controle de constitucionalidade em relação às leis orçamentárias pela via da ação direta. Ou seja, o Tribunal julgava inadmissível que tais atos normativos fossem submetidos ao controle abstrato de constitucionalidade, deixando de conhecer as ações propostas com esse objeto.

São vários os julgados do STF que podem ser mencionados nessa linha, nos quais o Tribunal sequer conheceu da ação proposta. São exemplos dessa orientação: ADI 1.496, relator Min. Moreira Alves, julgamento em 21.11.1996; ADI 1640, relator Min. Sydney Sanches; ADI 1716, julgamento em 12.2.198; ADI 2057, relator Min. Maurício Corrêa, julgamento em 9.12.1999; ADI 2484, relator Min. Carlos Velloso, julgamento em 19.12.2001, entre outros.

O entendimento era sempre o mesmo nesses casos. Em todos, rejeitou-se o controle de constitucionalidade de norma orçamentária com idêntico fundamento: as leis orçamentárias seriam leis de efeitos meramente concretos, desprovidas dos requisitos de generalidade e abstração eleitos, condições fundamentais para a viabilidade do controle de constitucionalidade abstrato, especialmente por ação direta. Enfatiza-se, nos julgados, o caráter político dos orçamentos públicos em detrimento de seu aspecto jurídico, atos normativos emanados do Poder Legislativo.

Destaca-se, à guisa de ilustração, o julgamento da ADI 1640, de relatoria do Ministro Sydney Sanches, em que se discutia a destinação de recursos da extinta CPMF em desacordo com o texto constitucional. Para justificar o não conhecimento da ação, o relator afirma que “O orçamento é lei formal, mas de natureza e efeitos político-administrativos concretos, hipótese em que [...] descabe o controle concentrado de constitucionalidade.”15

O julgado tem a seguinte ementa:

EMENTA: - DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO PROVISÓRIA SOBRE MOVIMENTAÇÃO FINANCEIRA - C.P.M.F. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE “DA UTILIZAÇÃO DE RECURSOS DA C.P.M.F.” COMO PREVISTA NA LEI Nº 9.438/97. LEI ORÇAMENTÁRIA: ATO POLÍTICO-ADMINISTRATIVO - E NÃO NORMATIVO. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO: ART. 102, I, “A”, DA C.F. 16 (Grifo nosso).

Na prática, a negativa do controle abstrato de constitucionalidade tinha o efeito de excluir as normas orçamentárias – lei orçamentária anual, lei de diretrizes orçamentárias, plano plurianual e créditos adicionais, especialmente, os extraordinários – de qualquer forma de controle judicial efetivo. Ficavam, então, relegadas ao campo da discricionariedade política, à margem da atuação do Supremo Tribunal Federal e, de certo modo, do próprio pensamento jurídico.

O primeiro sinal mais efetivo de mudança surge em 2003, no julgamento da ADI 2925,17 precedente em que se discutia regra de destinação dos recursos da CIDE-Combustíveis. A decisão, pela primeira vez de que se tem notícia em tempos recentes, admitiu o cabimento da ação direta em matéria orçamentária.

A rigor, a ADI 2925 não chega a romper com a linha de precedentes tradicional do STF, porque, no caso, abriu-se simplesmente uma exceção, sem que fossem revistas as premissas que fundamentam a posição tradicional da Corte. Consignou o Tribunal que os dispositivos que foram impugnados naquela ação, embora estivessem contidos numa lei orçamentária, não se limitavam a uma destinação concreta de recursos. Tinham excepcionalmente os necessários caracteres de generalidade e abstração a justificar o conhecimento da ação direta.

Consta da própria ementa do julgado:

PROCESSO OBJETIVO - AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI ORÇAMENTÁRIA. Mostra-se adequado o controle concentrado de constitucionalidade quando a lei orçamentária revela contornos abstratos e autônomos, em abandono ao campo da eficácia concreta. LEI ORÇAMENTÁRIA - CONTRIBUIÇÃO DE INTERVENÇÃO NO DOMÍNIO ECONÔMICO - IMPORTAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO DE PETRÓLEO E DERIVADOS, GÁS NATURAL E DERIVADOS E ÁLCOOL COMBUSTÍVEL - CIDE - DESTINAÇÃO - ARTIGO 177, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. É inconstitucional interpretação da Lei Orçamentária nº 10.640, de 14 de janeiro de 2003, que implique abertura de crédito suplementar em rubrica estranha à destinação do que arrecadado a partir do disposto no § 4º do artigo 177 da Constituição Federal, ante a natureza exaustiva das alíneas “a”, “b” e “c” do inciso II do citado parágrafo. 18 (Grifo nosso).

Não convém aqui descer aos detalhes do julgamento.19 No que interessa, basta destacar que o julgado não representa verdadeira revisão de jurisprudência, uma vez que partiu dos mesmos pressupostos que noutros julgados justificaram a recusa do cabimento de tantas outras ações diretas em matéria orçamentária. Estabeleceu, na verdade, apenas uma exceção para o caso, não uma revisão de orientação no Tribunal.

A virada de jurisprudência dá-se, ao que tudo indica, em 2008, no julgamento da ADI 4048,20 de relatoria do Ministro Gilmar Mendes. 21 Tratava-se de ação direta ajuizada contra abertura de crédito extraordinário, por medida provisória, fora das hipóteses constitucionais que justificam sua adoção. No caso, o Tribunal reconheceu, ainda que por apertada maioria, uma revisão de jurisprudência, de modo a admitir o cabimento de ação direta em matéria orçamentária.

Os debates travados por ocasião desse julgamento chamam claramente atenção para importância da lei orçamentária no contexto do ordenamento jurídico brasileiro. O Ministro Ayres Britto chega a afirmar que “A lei orçamentária é a lei materialmente mais importante do ordenamento jurídico logo abaixo da Constituição”.

A mudança de orientação operada no julgamento é destacada na própria ementa da decisão, onde se lê:

[...] II. CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE DE NORMAS ORÇAMENTÁRIAS. REVISÃO DE JURISPRUDÊNCIA. O Supremo Tribunal Federal deve exercer sua função precípua de fiscalização da constitucionalidade das leis e dos atos normativos quando houver um tema ou uma controvérsia constitucional suscitada em abstrato, independente do caráter geral ou específico, concreto ou abstrato de seu objeto. Possibilidade de submissão das normas orçamentárias ao controle abstrato de constitucionalidade. 22 (Grifo nosso).

Também fica evidente, nos debates, a preocupação de que a exclusão das leis orçamentárias do controle abstrato de constitucionalidade conduzisse – como, de fato, conduziu durante anos – à completa eliminação de qualquer forma de controle judicial na matéria, como se o tema devesse ficar restrito ao debate político, como se não houvesse parâmetros impositivos superiores a serem observados para a edição de normas orçamentárias. O próprio relator da ação afirma tal preocupação em seu voto, ao consignar:

Ora, se a Constituição submete a lei ao processo de controle abstrato – até por ser este o meio próprio de inovação na ordem jurídica e o instrumento adequado de concretização da ordem constitucional –, não parece admissível que o intérprete debilite essa garantia da Constituição, isentando um número elevado de atos aprovados sob a forma de lei do controle abstrato de normas e, muito provavelmente, de qualquer forma de controle.

Hoje, pode-se dizer que o julgado, de fato, representou um passo definitivo no sentido da completa revisão da jurisprudência da Corte, a fim de estender o controle abstrato de constitucionalidade às leis orçamentárias em sentido amplo, isto é, plano plurianual, lei de diretrizes orçamentárias, lei orçamentária anual e leis de crédito adicional.

Diversos julgados posteriores confirmam essa tendência. Ainda em 2008, o STF julgou a ADI 3.949, também sobre matéria orçamentária. Conheceu da ação, mas indeferiu a cautelar. E, mais recentemente, pelo menos mais duas decisões do plenário acolheram a mesma tese, a Medida Cautelar na ADI 4.663, de relatoria do Ministro Luiz Fux23, e o Referendo na Medida Cautelar na ADI 5449, de relatoria do Ministro Teori Zavascki.24 O primeiro caso tinha por objeto lei de diretrizes orçamentárias do Estado de Rondônia; o segundo, lei de diretrizes orçamentárias do Estado de Roraima. Em ambos os casos, o Tribunal conheceu da ação e deferiu a cautelar requerida para suspender a vigência da lei impugnada.

Todos esses julgados partem desta mesma premissa: a possibilidade de o STF conhecer de ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas contra leis orçamentárias, tese firmada na ADI 4048. Mantida esse orientação, o Supremo Tribunal Federal dá passos firmes no sentido de corrigir a forte assimetria de tratamento entre os tributos e as despesas públicas que ainda perdura no direito brasileiro. Vale dizer, assim como os impostos, o orçamento público pode sim ser objeto de controle judicial, inclusive pela via da ação direta de inconstitucionalidade.

5 Conclusão

A revisão da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito do controle de constitucionalidade das leis orçamentárias não representa um fator isolado. Esse e outros fatos podem ser tomados como sinais de que há uma mudança em curso: uma nova forma de enxergar as finanças públicas que permita trazê-las para dentro do espaço jurídico.

É provável que o marco dos 50 anos da Lei n. 4.320/64 e os debates legislativos sobre uma nova lei geral de orçamentos podem representar uma oportunidade para a revalorização das questões orçamentárias nos espaços jurídicos, uma reorientação do ensino e da pesquisa jurídica nesse campo e também para a mudança de postura dos tribunais.

Quem sabe, daqui para frente, a comunidade jurídica possa, novamente, dar-se conta da importância dos orçamentos públicos e participar de forma mais ativa nesse debate tão fundamental para o país. Não há dúvida que essa é uma mudança fundamental.

Referências

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50 Years of the Basic Budget Act: public finance
law oblivion in Brazil

Abstract

The text argues that the fiftieth years anniversary of the Act 4.320/1964, Basic Budget Act in Brazil, represents a period of oblivion and lack of prestige to the public finance law in the country and points out signs of change.

Keywords: Public Finance Law. Public budget. Oblivion.

Submetido: 04/04/2016.

Aprovado: 09/06/2016.

_______________

1 Texto adaptado de palestra proferida em 18 de março de 2014, no Seminário “50 Anos da Lei Geral dos Orçamentos – Lei n.o 4.320 de 17/3/1964”, realizado pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e pela FGV Projetos.

2 TOLLINI, Helio Martins; AFONSO, José Roberto. A Lei 4.320 e a responsabilidade orçamentária. In: CONTI, José Maurício; SCAFF, Fernando Facury. Orçamentos públicos e direito financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p.492.

3 CONTI, José Maurício; PINTO, Élida Graziane. Lei dos orçamentos públicos completa 50 anos de vigência. Consultor Jurídico, 17 de março de 2014. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-mar-17/lei-orcamentos-publicos-completa-50-anos-vigencia>. Acesso em: 17 mar. 2014.

4 REZENDE, Fernando; CUNHA, Armando. O orçamento dos brasileiros: por que ele não desperta maior interesse? Rio de Janeiro: FGV-projetos, 2014, p. 12.

5 Cf. CONTI, José Maurício. Apresentação. In: CORREIA NETO, Celso de Barros. O avesso do tributo. São Paulo: Almedina, 2014.

6 SCAFF, Fernando. Retrospectiva 2015: O ano da redescoberta do Direito Financeiro no Brasil. Consultor Jurídico. 29 de dezembro de 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-dez-29/retrospectiva-2015-ano-redescoberta-direito-financeiro>. Acesso em: 30 dez. 2016.

7 Ver desse autor: CORTI, Horacio G. Derecho financeiro. Buenos Aires: Abeledo-Perot, 1997; CORTI, Horacio G. Derecho constitucional presupuestário. Buenos Aires: Lexis Nexis, 2007.

8 CORTI, Horacio Guilermo. Derechos Fundamentales y Presupuesto Publico: una renovada relación en el marco do neoconstitucionalismo periférico. IN: CONTI, José Maurício; SCAFF, Fernando. Orçamentos Públicos e Direito Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

9 CORTI, Horacio G. Derecho financeiro. Buenos Aires: Abeledo-Perot, 1997, p. 80.

10 CORTI, Horacio G. Derecho Financeiro. Buenos Aires: Abeledo-Perot, 1997, p.54

11 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 939. Relator: Sydney Sanches. Julgamento em 15.12.1993.

12 BARROSO, Luís Roberto; MENDONÇA, Eduardo Bastos Furtado de. O sistema constitucional orçamentário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira; NASCIMENTO, Carlos Valder do Nascimento. (Org.). Tratado de direito financeiro. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 236-282.

13 BARROSO, Luís Roberto; MENDONÇA, Eduardo Bastos Furtado de. O sistema constitucional orçamentário. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira; NASCIMENTO, Carlos Valder do Nascimento. (Org.). Tratado de direito financeiro. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2013

14 GOMES, Emerson da Silva. O Direito dos Gastos Públicos no Brasil. São Paulo: Almedina, 2015, p. 22.

15 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Questão de Ordem na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.640. Relator: Ministro Sydney Sanches. Tribunal Pleno. DJ 03.04.1998.

16 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Questão de Ordem na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.640. Relator: Ministro Sydney Sanches. Tribunal Pleno. DJ 03.04.1998.

17 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.925. Relatora: Ministra Ellen Gracie, redator para o acórdão Ministro Marco Aurélio. Tribunal Pleno. DJ 04.03.2005.

18 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.925. Relatora: Ministra Ellen Gracie, redator para o acórdão Ministro Marco Aurélio. Tribunal Pleno. DJ 04.03.2005.

19 Sobre o tema, ver: CORREIA NETO, Celso de Barros. O orçamento público e o Supremo Tribunal Federal. In: SCAFF, Fernando Facury; CONTI, José Maurício. (Org.). Orçamentos públicos e direito financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

20 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direita de Inconstitucionalidade 4.048. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Tribunal Pleno. DJe 14.5.2008.

21 Sobre o tema, ver: CORREIA NETO, Celso de Barros, O orçamento público e o Supremo Tribunal Federal. In: SCAFF, Fernando Facury; CONTI, José Maurício. (Org.). Orçamentos públicos e direito financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 111-126.

22 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direita de Inconstitucionalidade 4.048. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Tribunal Pleno. DJe 14.5.2008.

23 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Referendo na Medida Cautelar na Ação Direita de Inconstitucionalidade 4.663. Relator: Ministro Luiz Fux. Tribunal Pleno. DJe 16.12.2014.

24 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Referendo na Medida Cautelar na Ação Direita de Inconstitucionalidade 5.449. Relator: Ministro Teori Zavaski. Tribunal Pleno. DJe 22.4.2016.

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