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O princípio da laicidade e os símbolos religiosos na Itália

The principle of secularism and religious symbols in Italy

Eder Bomfim Rodrigues

Doutor e Mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor na Faculdade Minas Gerais (Famig) e na Universidade Presidente Antônio Carlos (Unipac). Advogado.
E-mail: [email protected]

Resumo

As relações entre Estado e religião têm sido objeto de muitas discussões no constitucionalismo contemporâneo, principalmente quando se relaciona o princípio da laicidade com a presença de símbolos religiosos em prédios públicos, tais como os crucifixos. Hoje, não é possível dizer que a religião é algo que apenas faça parte da vida privada dos cidadãos, pois essa afirmação não é uma verdade absoluta, sobretudo na Itália, que possui uma história marcada por fortes e intensas relações entre o Estado, a Igreja Católica e a sociedade. Este trabalho busca analisar o princípio da laicidade na Itália com base na legislação e em casos que chegaram à Corte Constitucional, ao Conselho de Estado e até mesmo à Corte Europeia de Direitos Humanos. Com isso, o objetivo é apresentar um novo significado para a laicidade a partir do patriotismo constitucional e do reconhecimento da ética da hospitalidade.

Palavras-chave: Laicidade. Símbolos religiosos. Patriotismo constitucional. Hospitalidade.

Abstract

Relations between State and religion have been the subject of much discussion in the contemporary constitutionalism, especially when it relates the principle of secularism with the presence of religious symbols in public buildings, such as crucifixes. Today, it is not possible to say that religion is something that it is only part of private life of citizens, because this assertion would not be an absolute truth, especially in Italy, which has a history marked by strong and intense relations between the State, the Catholic Church and society. This paper analyzes the principle of secularism in Italy based on legislation and cases brought to the Constitutional Court, the State Council and even the European Court of Human Rights. Thus, the purpose is to present a new meaning to secularism from the constitutional patriotism and the recognition of the ethics of hospitality.

Keywords: Secularism. Religious symbols. Constitutional patriotism. Hospitality.

1 Introdução

As discussões em torno das relações entre Estado, religião, liberdade religiosa e laicidade têm sido um realidade no mundo contemporâneo. Pode-se dizer que a religião não desapareceu por completo da esfera pública como planejava o liberalismo clássico. Ela está aí e, cada vez mais, vem fazendo parte de inúmeras situações, conflitos e debates na atualidade. Segundo Díaz-Salazar (2007, p. 14-15, tradução nossa), “em muitos países, as convicções religiosas se articulam como demandas políticas, do mesmo modo que tradicionalmente se têm organizado os interesses de classe ou as reivindicações corporativas.”1

Muito embora se possa afirmar que a religião vem ocupando espaço na realidade atual, não se pode negar que há um enorme esforço visando diminuir a influência e a ação das religiões, principalmente nas sociedades ocidentais. Assim, a luta pela afirmação do princípio da laicidade estatal se tornou parte de todo esse processo. E uma laicidade que se baseia em duas grandes ações: a separação entre Estado e religião e a neutralidade estatal.

Por outro lado também, o princípio da laicidade vem sendo compreendido como se fosse laicismo, o que provoca consequências negativas à liberdade religiosa e às relações entre Estado e religião. O laicismo é um discurso de rejeição a tudo que tenha relação com a religião. Trata-se de uma postura exclusivista e de negação dos aspectos religiosos na vida das pessoas, nos moldes de uma certeza e objetividade de uma ciência cartesiana.

Na Itália, o debate em torno do princípio da laicidade é atual e acontece de forma diferente da realidade francesa, que adota uma postura laicista. A laicidade na Itália é marcada por aspectos históricos e por suas fortes e intensas relações com a Igreja Católica. “O modelo da laicidade italiana parece configurar-se como de cooperação, enquanto que a Constituição prevê as relações do Estado com as distintas denominações religiosas através da conclusão de acordos.” (GÓMEZ, 2012, p. 45, tradução nossa)2. Esse modelo de cooperação tem sido objeto de muitas críticas, principalmente pelo fato de que a Igreja Católica tem obtido benefícios diferentes das outras religiões.

Este trabalho busca analisar o princípio da laicidade na Itália, bem como sua relação com a presença de símbolos religiosos em prédios públicos, tais como os crucifixos. Com isso, tem-se como objetivo reconstruir a laicidade de forma mais democrática e inclusiva, levando em consideração que a unidade estatal nas sociedades democráticas contemporâneas não pode ser mais legitimada em elementos religiosos e tradicionais, mas sim a partir do patriotismo constitucional e do reconhecimento da ética da hospitalidade de Derrida (2003).

2 O princípio da laicidade na Itália

A formação do Estado italiano em 17 de março de 1861, sob o governo do Rei Vittorio Emanuele II (1861-1878), é um momento de grande importância para a história política e jurídica daquele país. A unificação proporcionou que a Itália fosse constituída de forma laica, o que nos moldes da doutrina liberal, significa ser um Estado neutro e separado de qualquer religião. Entretanto, esse processo gerou grandes descontentamentos na Igreja, pois o Papa Pio IX não aceitou o domínio italiano em territórios que anteriormente estavam sob sua autoridade. Tal situação originou a Questão Romana, o conhecido conflito entre a Igreja Católica Romana e o Governo da Itália.

A Questão Romana foi fundamental para que a Igreja Católica se consolidasse ainda mais como uma importante força política na Itália, o que proporcionou, em 1929, a criação do Estado do Vaticano, por meio do Tratado de Latrão, assinado pelo Papa Pio XI (1922-1939) e por Benito Mussolini (1922-1943). Inclusive o mencionado tratado fez com que o catolicismo se tornasse a religião oficial do Estado italiano.

Posteriormente, algumas mudanças aconteceram ao final da II Guerra Mundial e com a Constituição da República de 1948. A Constituição, muito embora não estabeleça a laicidade de forma expressa, garante, nos termos do art. 7o, a independência e a soberania entre o Estado e a Igreja Católica, a liberdade religiosa no art. 19 e a não restrição à liberdade de culto no art. 20. No entanto, há uma particularidade na Constituição de 1948, em especial no art. 8o, in verbis:

Art. 8. Todas as confissões religiosas são igualmente livres perante a lei. As confissões religiosas diversas da católica têm direito de se organizar conforme os próprios estatutos, desde que não contrastem com o ordenamento jurídico italiano. As relações delas com o Estado são regulamentadas por lei, com base nos acordos com as respectivas representações. (ITÁLIA, 1948, p. 02).

Ora, os direitos consagrados no art. 8o trazem peculiaridades, que estão relacionadas ao real status da Igreja Católica na Itália, principalmente diante da forma como as relações entre Estado e religião são estabelecidas e a forte tradição do catolicismo. Todavia, se no século XX houve dúvida em torno da compreensão da laicidade e dos limites de atuação da Igreja Católica, tal situação deixou de existir com o Acordo de Villa Madama de 1984, pois ele promoveu modificações no Tratado de Latrão de 1929 e retirou a confessionalidade católica do Estado italiano.

O Acordo de Villa Madama de 1984 não pode ser considerado como um tratado internacional que promove uma plena laicidade. Ele “resulta de importância pela manutenção de um conjunto de privilégios, que, junto com os previstos em outras normas, os reconhecem à Igreja Católica e aos que não desfrutam as confissões restantes.” (GÓMEZ, 2012, p. 54, tradução nossa)3.

Na verdade, o modelo italiano de laicidade é um modelo de muitas contradições e ambiguidades, pois ora era confessional com características de não confessional, ora não confessional com marcas confessionais. Até o Acordo de Villa Madama de 1984, a Itália viveu um regime de confessionalidade católica, conforme estabelecido no Tratado de Latrão.

Em 1989, a Corte Constitucional italiana, por meio da sentença 203/1989, deu novos contornos ao princípio da laicidade ao entender que a laicidade é um princípio supremo e decorrente da Constituição. A sentença garantiu que a laicidade italiana, fundamentada na separação dos âmbitos religioso e civil, não implica na adoção de um modelo de indiferença às religiões, mas sim de proteção à liberdade religiosa num regime de pluralismo e de diversidade. Contudo, a sentença, segundo Calzadilla (2015, p. 94, tradução nossa).4

[…] deixa aberta a possibilidade de confusão de funções e fins entre o Estado e as confissões, dada a possível tipificação de elementos religiosos como objetos de interesse comum com base em suas raízes sociais e em considerá-los integrantes da cultura italiana, com desprezo dos cidadãos que não participem do elemento religioso implícito em tais elementos “culturais”.

No entanto, a afirmação do princípio da laicidade pela Corte Constitucional não conseguiu fazer com que houvesse uma igualdade religiosa, de forma plena, na Itália. A Igreja Católica ainda continua em posição de privilégio no sistema jurídico e na sociedade, o que pode ser visto, inclusive, na própria Constituição de 1948, que faz referência direta ao catolicismo nos arts. 7o e 8o, conforme já destacado. De acordo com Calzadilla (2015, p. 96, tradução nossa)5,

[…] a laicitá italiana, procedente de um modelo confessional católico […] pretende assegurar a garantia da liberdade de consciência individual, mas não consegue, plenamente, por sua leitura muito restritiva do princípio da separação com a Igreja e a doutrina católica, que permite uma confusão de funções e fins com tal confissão, com base em elementos considerados marcadamente próprios dessa religião como parte do acervo cultural da nação italiana. Uma separação assim realçada que acaba por lesar a neutralidade e, consequentemente, a igualdade no exercício da liberdade de consciência dos cidadãos.

Por mais que a Corte Constitucional já tenha declarado a supremacia da laicidade no ordenamento jurídico, tal princípio não possui uma firme superioridade como aparenta ter, o que, de uma forma ou de outra, compromete a igualdade, o pluralismo religioso, e faz com que ainda seja necessário se percorrer um longo caminho para a sua concretização.

Na realidade jurídica italiana há, também, um importante decreto de 2007 relacionado à questão da liberdade religiosa e da laicidade, o Decreto do Ministério do Interior de 23 de abril de 2007, que estabelece a Carta dei valori della cittadinanza e dell’integrazione. Esse documento, além de afirmar vários direitos fundamentais, dentre eles a dignidade da pessoa humana, os direitos sociais e os direitos relacionados à família, declara a laicidade do Estado e a liberdade religiosa individual e coletiva de todos os cidadãos italianos e estrangeiros.

A Carta dei valori della cittadinanza e dell’integrazione possibilita o reconhecimento da igualdade e da liberdade de todas as diferentes manifestações religiosas, o diálogo inter-religioso e intercultural, a liberdade de seguir ou não seguir uma determinada religião, a liberdade de discussão com base em questões religiosas e o respeito aos diversos símbolos religiosos. Trata-se de um grande avanço, já que não há uma lei na Itália que possa regular o direito de liberdade religiosa, o princípio da laicidade do Estado e as relações entre o Estado e as diferentes manifestações religiosas.

3 Laicidade e simbologia religiosa na Itália

A presença de símbolos religiosos em prédios públicos, a exemplo dos crucifixos, tem ocasionado controvérsias na Itália em torno das relações entre Estado e religião, do princípio da laicidade e do direito de liberdade religiosa. Entretanto, a discussão hoje não se resume apenas à simbologia em prédios públicos, mas também diz respeito ao uso de símbolos religiosos pelas pessoas. Destaque-se que o ordenamento jurídico italiano não deixou de cuidar de tal questão, uma vez que tal assunto, constantemente, tem sido objeto de análise por parte do Judiciário e de órgãos administrativos, como o Conselho de Estado. Assim, o art. 25 da Carta dei valori della cittadinanza e dell’integrazione dispõe o seguinte:

25. Com base na sua própria tradição religiosa e cultural, a Itália respeita os símbolos e sinais de todas as religiões. Ninguém pode considerar-se ofendido pelos sinais ou pelos símbolos de religiões diferentes da sua. Conforme estabelecido em tratados internacionais, é necessário educar os jovens a respeitar as convicções religiosas dos outros, sem ver nessas fatores de divisão entre os seres humanos. (ITÁLIA, 2007, p. 08, tradução nossa).6

Como se pode perceber, o art. 25 não é um dispositivo normativo capaz de regular toda uma variedade de situações que envolvem os símbolos religiosos. Mas, mesmo assim, ele tem uma importante função que é a de proclamar o respeito à simbologia de todas as religiões, bem como proporcionar o pluralismo, o respeito ao outro e à diversidade.

Nas escolas públicas, a presença dos crucifixos remonta à época do governo de Mussolini. Duas circulares de 1922 e 1926 do Ministério da Educação tornavam obrigatória a fixação de um crucifixo e de um retrato do Rei da Itália em cada sala de aula. Tais símbolos eram vistos como uma forma de manifestação do patriotismo e da unidade italiana. Em 11 de novembro de 1923, foi editada ainda a Ordem Ministerial no 250, que estabeleceu a necessidade da presença dos crucifixos em todas as dependências públicas do Estado. Posteriormente, uma legislação para a questão foi instituída pelo próprio Rei Vittorio Emanuele III (1900-1946). Assim, os Decretos Reais 965/1924 e 1297/1928 confirmaram e tornaram obrigatória a presença dos crucifixos, bem como de um retrato do Rei da Itália em todas as salas de aula no país. Tais decretos ainda estão vigentes, por força de entendimento expresso no Parecer no 63, de 27 de abril de 1988, do Conselho de Estado, que assegurou que o crucifixo, bem como a cruz, possuem um significado universal, sendo símbolos da civilização e da cultura cristã e parte integrante da história italiana.

A partir de toda a legislação aqui já mencionada, torna-se importante a análise de alguns casos que marcaram a realidade da Itália, principalmente quando presente o símbolo religioso mais polêmico, o crucifixo.

Um caso interessante envolveu uma solicitação, de 15 de dezembro de 2000, por parte da União dos Ateus e Agnósticos Racionalistas (UAAR) ao Ministro do Interior para que fosse proibida a exibição de crucifixos e símbolos religiosos nos locais de votação pública antes do início das eleições. Em 27 de janeiro de 2001, o Ministério do Interior respondeu à UAAR e esclareceu que não havia nenhuma obrigação em lei para que o governo removesse os símbolos religiosos. A UAAR desconsiderou a explicação apresentada e reiterou o pedido em 07 de fevereiro de 2001, do qual não obteve nenhum retorno. Diante disso, recorreu ao Tribunal Administrativo Regional do Lácio. O Ministério do Interior apresentou uma resposta ao recurso e, dentre outros argumentos de ordem processual, salientou que

[…] as leis vigentes e a Constituição não preveem qualquer proibição da exibição do crucifixo e objetos sagrados nas sessões eleitorais e repartições públicas em geral, com isso deixando entender que o Ministério não está obrigado a adotar disposições especiais para a remoção de tais objetos. Em conclusão sobre a anotação afirma-se que, de acordo com os princípios estabelecidos na Constituição sobre a liberdade religiosa, tal como interpretados pela Corte Constitucional, “não subsiste nem uma obrigação nem uma proibição acerca da exposição do crucifixo em edifícios públicos em geral.” (ITÁLIA, 2002, tradução nossa).7

O Tribunal Administrativo Regional do Lácio rejeitou o recurso da UAAR e acolheu as razões apresentadas pelo Ministério do Interior, mantendo o crucifixo nos locais de votação.

O uso de símbolos religiosos nas escolas públicas também foi objeto de polêmicas e aqui destaca-se um conflito que envolveu a presença de um crucifixo na Scuola materna ed elementare statale “Antonio Silveri” di Ofena na cidade de Áquila. O caso teve origem numa solicitação realizada por Adel Smith, cidadão italiano e presidente do partido Unione dei Musulmani d’Italia, para que ele pudesse fixar, na parede da sala de aula de seus filhos, um quadro com versículos do Alcorão. Tal pedido foi aceito, mas o quadro foi retirado pela direção da escola no dia seguinte. Com isso, Adel Smith entendia que o seu direito à liberdade religiosa, bem como o de seus filhos, estava sendo violado, pois nenhum deles era cristão.

Diante destas circunstâncias, o demandante recorreu ao Judiciário italiano por considerar que a permanência unicamente do crucifixo cristão nas paredes da sala de aula presumia, de um lado, uma lesão da liberdade e da igualdade religiosas, tanto sua como de seus filhos, e, de outro, uma violação do princípio da laicidade, considerado um princípio supremo do ordenamento jurídico italiano. (ARRIBAS, 2005, p. 108, tradução nossa).8

A ação de Adel Smith foi julgada parcialmente procedente pelo juiz Mario Montanaro em 23 de outubro de 2003 e a Scuola materna ed elementare statale “Antonio Silveri” di Ofena em Áquila foi obrigada a retirar todos os crucifixos expostos em suas dependências nas aulas frequentadas pelos filhos de Adel Smith. A decisão judicial levou em consideração os princípios constitucionais da liberdade e da igualdade, além da observância da laicidade do Estado.

A sentença proferida no caso da cidade de Áquila determinava que o Estado deveria manter-se distante e imparcial em relação a qualquer religião e que o crucifixo não representava um símbolo da cultura italiana válido para todos, pois, na verdade, era um símbolo do cristianismo. O juiz Mario Montanaro também não fundamentou o seu julgado nos Decretos Reais 965/1924 e 1297/1928. Mas a decisão não durou muito tempo, pois o Tribunal Pleno de Áquila cassou a sentença em 19 de novembro de 2003, sob o argumento de que o Judiciário não era competente para analisar a situação, e sim a jurisdição administrativa. Com isso, na instância administrativa, o caso chegou a ser submetido ao Conselho de Estado, que reafirmou a vigência dos Decretos Reais 965/1924 e 1297/1928. Para o Conselho, não havia qualquer impedimento para a presença de crucifixos nas escolas públicas, pois

[…] o símbolo da cruz, à parte do significado religioso que tem, sem dúvida, para os crentes, constitui um símbolo da civilização e da cultura cristã em sua raiz histórica, que ostenta um valor universal independente de confissões religiosas específicas e que, portanto, forma parte do patrimônio cultural do país, de sorte que a presença dos crucifixos nas aulas dos colégios não pode ser entendida como um motivo de constrição da liberdade de manifestar as próprias crenças religiosas. (ARRIBAS, 2005, p. 110, tradução nossa).9

Em 2006, a presença dos crucifixos nas salas de aula foi novamente questionada. Dessa vez, numa ação da UAAR que buscava a retirada desse símbolo religioso das escolas públicas. A resposta para essa situação veio do Conselho de Estado no Parecer no 556 de 15 de fevereiro de 2006. Em tal parecer, reafirmou-se o entendimento de que os Decretos Reais 965/1924 e 1297/1928 ainda estavam vigentes no ordenamento jurídico italiano, conforme já expresso no Parecer no 63/1988, e que, com isso, era possível a exibição dos crucifixos nas salas de aula, o que não comprometia o princípio da laicidade. De acordo com o Conselho, o crucifixo era um símbolo histórico e cultural da Itália, um sinal de identificação nacional e de formação do país e da maioria da Europa, o que fazia com que os princípios do catolicismo fossem reconhecidos como parte do patrimônio histórico do povo italiano. Assim, o crucifixo não possuía apenas um significado religioso, pois podia ser visto como um símbolo de um sistema de valores de defesa da liberdade, da igualdade, da dignidade humana, da tolerância religiosa e da laicidade.

O Parecer no 556/2006 ainda fez referência direta às origens cristãs da liberdade, da laicidade e da contrariedade à história da Itália em promover-se a retirada dos crucifixos das escolas públicas. Para o Conselho de Estado, a presença dos crucifixos nas salas de aula proporcionava uma valorização da educação, visto que representava a liberdade, a igualdade, a tolerância e a laicidade estatal, marcas fundamentais da Itália.

As discussões em torno da laicidade estatal e a presença dos crucifixos nas escolas públicas na Itália não ficaram restritas apenas ao Judiciário ou ao Conselho de Estado. O debate ultrapassou as fronteiras estatais e alcançou a Corte Europeia de Direitos Humanos no julgamento do caso Lautsi v. Itália em 18 de março de 2011.

O caso Lautsi v. Itália chegou à Corte Europeia, em 27 de julho de 2006, por meio de uma ação proposta por Soile Lautsi e seus filhos menores Dataico e Sami Albertin em face da Itália por violação do disposto no art. 9º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 1950 do Conselho da Europa, que garante proteção à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Em 03 de novembro de 2009, o caso foi admitido para julgamento na Corte.

Dataico e Sami Albertin, filhos de Soile Lautsi, eram alunos do Istituto Comprensivo Statale Vittorino da Feltre, escola pública localizada em Abano Terme, comuna da região do Vêneto, província de Pádua, Itália. Numa reunião em 22 de abril de 2001, o pai de Dataico e Sami Albertin questionou a presença dos crucifixos nas salas de aula e solicitou que tais objetos fossem retirados, diante do princípio da laicidade do Estado. Todavia, a direção da escola negou o pedido e manteve os crucifixos.

Em 23 de julho de 2002 Soile Lautsi contestou a decisão no Tribunal Administrativo do Vêneto, sob o argumento de que a situação em Abano Terme violava os princípios da laicidade, da igualdade, da liberdade religiosa, da imparcialidade das autoridades públicas administrativas, bem como o art. 9o da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Em 17 de março de 2005, o Tribunal Administrativo do Vêneto julgou improcedente o pedido de revisão do ato decisório da direção da escola, sob o argumento de que o crucifixo sempre foi reconhecido como um símbolo da história e da tradição religiosa na Itália e na Europa, sendo, na verdade, um elemento da identidade nacional italiana que sempre representou a cultura desse país e que era, ainda, a base da Constituição de 1948. Para o Tribunal, o crucifixo significava a afirmação da tolerância, do respeito e da diversidade, independentemente de qualquer religião, pois representava uma reflexão sobre a história e os valores comuns do povo italiano consagrados ao longo dos séculos.

Insatisfeita com o resultado do recurso, Soile Lautsi recorreu ao Conselho de Estado, buscando a reforma da decisão. O Conselho entendeu que o crucifixo era um símbolo que possuía muitos significados, não apenas o religioso. Um crucifixo era um símbolo que refletia os princípios básicos de uma sociedade secular, não estando vinculado diretamente apenas ao cristianismo, mas sim à existência de um Estado laico e a princípios como liberdade, tolerância, solidariedade, respeito mútuo e autonomia.

Diante da decisão do Conselho de Estado, outra alternativa não restou a Soile Lautsi a não ser recorrer à Corte Europeia de Direitos Humanos, o que foi feito em 27 de julho de 2006. Nas razões do recurso, Soile Lautsi argumentou que houve violação do direito à instrução, à livre convicção religiosa (art. 2º do Protocolo nº 1) e ao art. 9º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Em 03 de novembro de 2009, a Câmara da Segunda Seção da Corte decidiu o caso e alterou o posicionamento adotado pelos Tribunais italianos.

A Corte Europeia, por meio de sua Câmara da Segunda Seção, concordou com os argumentos apresentados por Lautsi de que houve violação ao art. 2º do Protocolo nº 1 e ao art. 9º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Segundo a Corte, a Itália não poderia permitir a presença do crucifixo nas escolas públicas, pois tal símbolo carrega um significado já pré-determinado, condizente ao cristianismo, da mesma forma que não se poderia também impor aos cidadãos italianos uma crença religiosa.

A presença compulsória e amplamente visível de crucifixos na salas de aula foi capaz não apenas de chocar-se com as convicções seculares da primeira requerente, cujos filhos frequentavam, naquela ocasião, a escola estatal, mas também de perturbar emocionalmente os alunos de religiões não cristãs ou àqueles que não professavam nenhuma religião. (CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS, 2011, tradução nossa).10

Em 28 de janeiro de 2010, a Itália recorreu da decisão da Câmara da Segunda Seção para a Grande Seção da Corte. O governo italiano rebateu o julgamento inicial da Corte e reafirmou as razões expressas nas decisões do Tribunal Administrativo do Vêneto e do Conselho de Estado, argumentando que o crucifixo não possuía apenas um significado religioso, mas representava a cultura, a história e os princípios básicos da democracia ocidental. A presença dos crucifixos nas escolas públicas era um meio de fazer com que as crianças pudessem visualizar neste objeto os valores sociais da Itália, um meio de se preservar os valores e tradições do catolicismo. Para o Estado italiano não havia violação princípio da laicidade e da liberdade religiosa.

Soile Lautsi contestou as razões da Itália, asseverando que a liberdade religiosa, a laicidade e o pluralismo foram violados e que o crucifixo refletia apenas uma única tradição e era um símbolo religioso, não sendo possível afirmar que ele representasse a identidade nacional italiana.

A Corte chegou a uma decisão definitiva para o caso em 18 de março de 2011 e afirmou que a presença dos crucifixos nas salas de aula não significava um modo de difusão da fé cristã na Itália.

Em segundo lugar, de acordo com as indicações apresentadas pelo Governo, a Itália abre o ambiente escolar em paralelo às outras religiões. O Governo indica neste sentido que não era proibida a utilização de véus islâmicos ou outros símbolos ou vestimentas com conotação religiosa pelos alunos; arranjos alternativos foram possíveis para ajudar nos ajustes da educação escolar às práticas religiosas não majoritárias; o início e o fim do Ramadã eram “frequentemente celebrados” nas escolas; e uma educação religiosa opcional poderia ser organizada nas escolas para “todos os credos religiosos reconhecidos” […]. Além disso, não havia nada a sugerir que as autoridades eram intolerantes com os alunos que acreditavam em outras religiões, não acreditavam em nenhuma, ou mantinham convicções filosóficas não religiosas.

Ademais, os requerentes não declararam que a presença dos crucifixos nas salas de aula tenha encorajado o desenvolvimento de práticas de ensino com tendências proselitistas, ou afirmaram que o segundo e o terceiro requerentes já tenham experimentado uma tendenciosa referência àquela presença por um professor no exercício de suas funções. (CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS, 2011, tradução nossa).11

Assim, a Grande Seção da Corte reformou a decisão proferida pela Câmara da Segunda Seção e decidiu por 15 votos contra 2 que não há, por parte da Itália, violação à Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Logo, a Corte Europeia de Direitos Humanos permitiu que os crucifixos continuassem presentes no Istituto Comprensivo Statale Vittorino da Feltre em Abano Terme.

Além dos crucifixos, outra questão importante relacionada à compreensão da laicidade na Itália é o uso de símbolos religiosos nas escolas públicas por parte de alunos e professores. Conforme já destacado, trata-se, hoje, de um tema que não possui regramento legislativo. Diferentemente é o que acontece na França, onde há uma proibição geral para o uso de símbolos religiosos nas escolas públicas.

Na Itália, prevalece a liberdade de manifestação religiosa de alunos e professores no ambiente escolar. De acordo com Gómez (2012, p. 265, tradução nossa)12, ela “só pode ser limitada quando, em virtude de uma norma, resulte necessário para proteger a saúde, a segurança, a ordem ou a moral públicas ou os direitos e liberdades dos demais, segundo os termos do art. 9 CEDH.”

De forma distinta dos conflitos que envolvem a presença de símbolos religiosos estáticos, pode-se dizer que há respeito à diversidade e ao pluralismo religioso na escola pública, seja para os alunos com vestimentas e símbolos ou até mesmo para os próprios professores, pois ambos são considerados titulares de direitos fundamentais, nos termos da Constituição da República e dos tratados internacionais de direitos humanos em que a Itália é parte. Um exemplo desta aceitação dos diferentes símbolos e religiões no espaço da escola pública vem acontecendo na região da Lombardia, em especial nas províncias de Bérgamo e Brescia. Lá, por exemplo, segundo relata Gómez (2012, p. 285, tradução nossa).13

[…] o professor adota uma atitude de respeito para o símbolo e oferece explicações sobre seu significado. Esse modo de proceder, unido à posição de superioridade do docente frente aos menores, contribui para evitar ou eliminar qualquer percepção negativa das roupas religiosas. Na escola primária, os alunos mostram curiosidade pela diversidade e também orgulho ao contar suas próprias tradições, já na escola secundária desaparece esse interesse.

A diversidade religiosa é valorizada e encontra espaço numa sociedade que permite o florescimento do pluralismo e do respeito às normas constitucionais e internacionais. Pelo menos no uso de símbolos e roupas religiosas pelos alunos, a laicidade do Estado não tem sido excludente, laicista e radical tal como acontece na França.

Na Itália não é proibido aos alunos usar o véu islâmico ou outros símbolos ou vestimentas com conotações religiosas, tal como afirma o próprio Governo italiano. E no mesmo sentido, adotam-se medidas para conjugar a educação com as práticas das minorias religiosas (por exemplo, permitindo aos alunos judeus não estudarem aos sábados), pode-se organizar a educação religiosa facultativa para todas as confissões reconhecidas e frequentemente se celebra o início e o fim do Ramadã. (GÓMEZ, 2012, p. 292, tradução nossa).14

Um caso interessante mencionado por Gómez (2012), que pode muito bem ilustrar a afirmação da liberdade religiosa e da laicidade na Itália, envolveu a presença de uma freira como professora de uma escola pública na cidade de Roma.

Em 2009, num centro de educação primária de Roma, a incorporação de uma religiosa católica como docente de latim, vestida com um véu, provocou a reação de um grupo de mães. Consideravam inadequada a presença de uma religiosa na escola laica. Segundo a diretora da escola, a diversidade que representava as roupas religiosas deveria ser aceita. A docente, por sua parte, afirmava ser consciente de sua obrigação de não extrapolar os limites e medir suas palavras quando estivesse lecionando. (GÓMEZ, 2012, p. 302, tradução nossa).15

No caso em questão, o fato de a professora ser uma freira católica não poderia ser jamais uma circunstância impeditiva para o exercício de direitos fundamentais. A laicidade não pode implicar a exclusão de pessoas e uma separação radical nos moldes laicistas, mas deve ser aberta ao outro e à diversidade, de forma a promover o pluralismo. Assim, a religiosa não foi afastada de suas funções docentes em Roma.

Pode-se dizer que o catolicismo ainda desempenha um importante papel no cotidiano italiano, constituindo uma religião com forte significado na vida política e cultural. Todavia, a religião não pode significar um instrumento de violação à liberdade religiosa daqueles que não comungam de uma mesma prática de fé. O respeito ao outro é fundamental num mundo marcado pela violência e pela desconsideração aos direitos fundamentais.

O princípio da laicidade deve proporcionar que o Estado não seja parcial para uma determinada fé, mas que tenha as suas ações marcadas pelo respeito às liberdades, de forma a preservar as diferenças existentes. O Estado não pode assumir uma religião e uma verdade como exclusivas, mas deve se manter afastado, já que a liberdade religiosa é um dos princípios básicos de organização do Estado.

O direito fundamental à liberdade de consciência e à liberdade de religião é a resposta política apropriada aos desafios do pluralismo religioso. Desse modo, pode ser desativado o potencial de conflito no plano das relações sociais dos cidadãos, enquanto que no plano cognitivo esse potencial de conflito pode continuar existindo sem restrições entre as convicções existencialmente relevantes dos crentes, dos crentes de outras confissões e dos não crentes. (HABERMAS, 2006, p. 127, tradução nossa).16

O princípio da laicidade é uma garantia de autolimitação funcional nas ações do Estado, já que este não possui competências constitucionais e legais no âmbito religioso e nem pode exercer funções próprias das diferentes religiões, não havendo uma vinculação direta entre as duas esferas de ação.

A religião dentro do Estado laico adquire relevância unicamente como objeto de exercício de um direito fundamental, ficando vedado aos poderes públicos qualquer valoração positiva ou negativa das distintas respostas do cidadão ao interrogante religioso. (ALONSO, 2012, p. 365, tradução nossa).17

Tudo isso faz com que seja importante se atentar para que a neutralidade e a imparcialidade do Estado não sejam vinculadas de uma forma absoluta à laicidade e que não sejam utilizadas como elementos de exclusão, sob argumento de se proteger a liberdade religiosa. Pensar a laicidade a partir de uma neutralidade e uma imparcialidade excludente é fazer com que este princípio seja visto como uma realização do laicismo, num discurso exclusivista, fechado e de negação dos aspectos religiosos na vida das pessoas. A laicidade não pode ser confundida com oposição à religião, uma antirreligiosidade ou até mesmo um ateísmo público ou um agnosticismo.

O princípio da laicidade deve afirmar e salvaguardar o direito à diferença, a liberdade religiosa e o respeito ao outro nas sociedades contemporâneas, de modo a promover a independência entre as esferas religiosa e estatal. Segundo Maclure e Taylor (2011), a laicidade busca realizar e proteger a liberdade de consciência dos cidadãos, de forma a possibilitar o livre exercício da autonomia para que todos possam agir conforme os seus mais íntimos pensamentos e desejos. Mas, poderá a religião ocupar o espaço público estatal?

A distinção público-privado é em muitos casos demasiado geral e indeterminada para que nos permita avaliar o lugar adequado da religião no espaço público. Ademais, há um amplo espaço entre o Estado e a vida privada, que muitas vezes chamamos «sociedade civil», nele que múltiplos movimentos sociais e associativos, alguns encorajados por um impulso espiritual ou religioso, alimentam o debate sobre questões de interesse público e se comprometem com causas beneficentes ou humanitárias. Nas sociedades nas quais prevalecem as liberdades de consciência, expressão e associação, a religião não pode simplesmente ficar contida dentro dos estritos limites do domicílio e dos lugares de culto. (MACLURE; TAYLOR, 2011, p. 57-58, tradução nossa).18

Assim, por mais que a civilização ocidental seja fruto de um desenvolvimento histórico de ideias presentes no cristianismo e que o catolicismo desempenhe um importante papel na Itália, deve-se buscar uma acomodação dessa religião na sociedade de forma a se promover a paz, a liberdade, o pluralismo e o acolhimento ao próximo. Torna-se uma necessidade atual conciliar os elementos religiosos e as suas verdades com as razões públicas, com o direito e com a compreensão de laicidade. A partir disso, o princípio da laicidade passa a ter uma nova perspectiva.

O conceito de laicidade é essencialmente a proclamação da cidadania como centro da vida pública e fundamento do que tem sido chamado de «patriotismo constitucional» (Jürgen Habermas), frente aos patriotismos identitários de etnia, terra e sangue, fé, classe ou comunidade. (OTAOLA, 1999, p. 76, tradução nossa).19

Dessa forma, o crucifixo não é capaz de promover a unidade na Itália, muito menos de ser um elemento de assimilação e de promoção da identidade nacional. A unidade nas sociedades democráticas contemporâneas deve-se pautar na Constituição, e numa Constituição que possibilite as mais amplas liberdades fundamentais, o pluralismo, a diversidade, a inclusão e uma democracia participativa.

O patriotismo constitucional funciona então como um fator de promoção da unidade, que não é mais estabelecida em elementos pré-políticos, tais como fatos heroicos do passado de um povo, cultura ou tradições, mas sim uma unidade apta a criar uma consciência de pertencimento à humanidade e à realização dos direitos humanos.

A defesa habermasiana do patriotismo constitucional diz respeito à própria construção, ao longo do tempo, de uma identidade coletiva advinda de um processo democrático autônomo e deliberativamente constituído internamente por princípios universalistas, cujas pretensões de validade vão além, pois, de contextos culturais específicos. [...] trata-se de uma adesão racionalmente justificável, e não somente emotiva, por parte dos cidadãos, às instituições político-constitucionais – uma lealdade política ativa e consciente à Constituição democrática. (OLIVEIRA, 2006, p. 68).

Logo, a promoção da unidade na Itália é realizada pela Constituição da República. Trata-se do único elemento capaz de proporcionar o encontro democrático entre as mais variadas crenças e religiões e de ainda promover uma sociedade plural, de respeito ao próximo e aos direitos humanos. Assim, o patriotismo constitucional possibilita a construção de uma integração social num contexto de uma prática discursiva de aprendizagem em torno do direito à diferença e do pluralismo, tendo como base a Constituição.

Essa consciência de fazer parte de algo maior como a humanidade não precisa tornar o homem um ser exclusivamente universal. Ao contrário, ele pode sê-lo sem perder seus laços com a cultura do berço de seu nascimento. Nesse ponto, Habermas constata que o avanço que a globalização produz sobre a cultura, a língua e as tradições locais não implica necessariamente a “derrota” das últimas, mas o aparecimento de uma nova cultura, algo que se abre ao “pior e ao melhor dos dois mundos”, mas que não afasta o arbítrio de todos nós. (CRUZ, 2006, p. 70-71).

Por outro lado também, o princípio da laicidade do Estado ainda pode ser relacionado à ética da hospitalidade de Derrida (2003), pois, juntamente com o patriotismo constitucional, passa por uma abertura conceitual em torno da responsabilidade incondicional para o outro e sua religião, além de uma busca pela unidade a partir e na Constituição diante de uma sociedade plural.

Com a hospitalidade incondicional de Derrida (2003) torna-se impossível compreender o Estado como um sujeito neutro e alheio às condições existentes na sociedade. A separação entre Estado e religião não pode significar a negação do elemento religioso, nem mesmo a exclusão e perseguição de todos aqueles que seguem uma determinada fé. O Estado não pode impedir e forçar que os cidadãos sejam religiosos apenas no âmbito privado e que não possam exercer a liberdade religiosa fora deste lugar, pois não há mais possibilidade de uma separação radical entre esfera pública e esfera privada, haja vista serem as duas complementares e interdependentes.

O princípio da laicidade deve ser informado pela hospitalidade de Derrida (2003), de forma a fazer com que haja o devido reconhecimento do outro, de suas diferenças e de sua singularidade, rompendo as barreiras da hostilidade. A lei incondicional da hospitalidade está aberta e é ilimitada, oferecendo múltiplas oportunidades àquele que necessita de proteção e da necessária inclusão no processo democrático, é o abrir-se ao(s) outro(s). “A hospitalidade absoluta ou incondicional que eu gostaria de oferecer a ele supõe uma ruptura com a hospitalidade no sentido corrente, com a hospitalidade condicional, com o direito ou o pacto de hospitalidade.” (DERRIDA, 2003, p. 23). A lei incondicional da hospitalidade representa uma quebra, uma superação das leis condicionais que sempre estabelecem direitos, deveres e obrigações de forma restritiva.

A lei da hospitalidade, a lei formal que governa o conceito geral de hospitalidade, aparece como uma lei paradoxal, perversível ou pervertedora. Ela parece ditar que a hospitalidade absoluta rompe com a lei da hospitalidade como direito ou dever, com o “pacto” de hospitalidade. Em outros termos, a hospitalidade absoluta exige que eu abra minha casa e não apenas ofereça ao estrangeiro (provido de um nome de família, de um estatuto social de estrangeiro, etc.), mas ao outro absoluto, desconhecido, anônimo, que eu lhe ceda lugar, que eu o deixe vir, que o deixe chegar, e ter um lugar no lugar que ofereço a ele, sem exigir dele nem reciprocidade (a entrada num pacto), nem mesmo seu nome. A lei da hospitalidade absoluta manda romper com a hospitalidade de direito, com a lei ou a justiça como direito. (DERRIDA, 2003, p. 23-25).

Assim, por meio da hospitalidade incondicional, deve-se fazer uma releitura da laicidade de modo que este princípio não seja visto como sinônimo de exclusão de uma religião e de seus símbolos. O princípio da laicidade deve ser aberto, acolhedor e ainda proporcionar o pluralismo por meio do patriotismo constitucional e da hospitalidade incondicional. Pensar a laicidade nos moldes tradicionais do liberalismo clássico considerando a separação entre Estado e religião e a neutralidade estatal é não promover o devido respeito à religiosidade na Itália e ainda fazer com que a hostilidade se torne uma realidade presente, diante de um conceito fechado e determinado que não se abre ao pluralismo e ao respeito aos símbolos religiosos que possam porventura existir nos prédios públicos.

Portanto, com uma leitura da laicidade, a partir do patriotismo constitucional e da hospitalidade incondicional, têm-se o devido respeito à Constituição, o acolhimento ao próximo, a recepção do outro, de sua religião e de seus símbolos. Reafirma-se a inclusão, de forma que o Estado não seja um ente opressor e que restringe a liberdade religiosa, mas sim um ente acolhedor e hospitaleiro.

4 Conclusão

Na Itália, os caminhos da laicidade são marcados por peculiaridades, diante das históricas relações existentes entre o Estado e a Igreja Católica. Mas, mesmo assim, a Constituição da República de 1948 garantiu a liberdade religiosa, a não restrição à liberdade de culto a todos e, também, a independência entre o Estado e a Igreja. Da mesma forma, o Acordo de Villa Madama de 1984, a sentença 2013/1989 da Corte Constitucional e a Carta dei valori della cittadinanza e dell’integrazione garantiram o princípio da laicidade.

Com isso é de se reconhecer que a Itália é um Estado laico, mas com um modelo de laicidade que requer cuidados em sua análise e em seus limites de ação, pois ele ainda permite fortes contatos entre o Estado e a Igreja Católica. Entretanto, por mais que se admita uma proximidade entre a Igreja e o Estado, o país adotou uma postura surpreendente em 1984 ao assinar, com a Santa Sé, o Acordo de Villa Madama. O acordo é responsável por retirar a confessionalidade católica da Itália. Uma importante conquista para o pluralismo religioso, o princípio da laicidade e o acolhimento de diversas outras concepções religiosas. Contudo, a Igreja Católica não deixou de ter os seus privilégios e ainda mantém a sua importância na realidade jurídica, política e social. Porém, isso não significa que a unidade do Estado em torno da Constituição seja abalada ou que as liberdades fundamentais possam sofrer uma leitura restritiva.

A unidade em sociedades democráticas como a Itália é promovida pelo patriotismo constitucional, que possibilita a construção de um Estado em que a Constituição seja o elemento de afirmação de uma cidadania participativa, plural e inclusiva, de modo a promover uma releitura do princípio da laicidade a partir de uma hospitalidade incondicional.

Com relação aos símbolos religiosos, a exemplo dos crucifixos, pode-se dizer que os mesmos são fatos da realidade, constituindo o catolicismo uma religião com forte presença na Itália. Assim, não é possível a adoção de uma separação absoluta entre Estado e religião, tal como se tenta fazer na França atualmente. É impossível instituir um Estado completamente neutro e separado da sociedade e de muitas de suas características. Não se pode pensar a laicidade como neutralidade, pois não há possibilidade de se estabelecer um conceito fechado de neutralidade, como pretende a doutrina clássica do liberalismo. Da mesma forma que não se pode impedir a presença dos símbolos religiosos nos prédios públicos. Tais objetos não impedem a unidade da Itália e não promovem a violação da liberdade religiosa, já que o direito não está fundamentado em elementos divinos, mas sim em processos de formação democrática e discursiva da opinião e da vontade.

Portanto, é preciso dar uma nova leitura ao princípio da laicidade e às relações entre Estado e Igreja Católica na Itália, como forma de se promover não mais o distanciamento e a exclusão entre as pessoas, mas sim o respeito à diversidade e ao patriotismo constitucional, observando a hospitalidade e o acolhimento do outro incondicionalmente e sem limites. Só assim será possível aceitar os símbolos religiosos existentes e acomodar a religião na sociedade de modo a se alcançar a paz, as liberdades, o pluralismo e uma democracia participativa.

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Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, vol. 13, n. 2, p. 336-356, Mai.-Ago. 2017 - ISSN 2238-0604

[Recebido: Fev. 25, 2016; Nov. 15, 2016]

DOI: http://dx.doi.org/10.18256/2238-0604/revistadedireito.v13n2p336-356

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