Liberdade religiosa e a polêmica em torno da sacralização de animais não-humanos nas liturgias religiosas de matriz africana / Religious freedom and the controversy around sacralization of non-human animals in liturgies of african-rooted religions

Kellen Josephine Muniz de Lima, Ilzver de Matos Oliveira

Resumo


Um enfrentamento polêmico envolvendo a liberdade religiosa, protegida de forma ampla pela Constituição Federal de 1988, se dá em torno do sacrifício ritual de animais não-humanos, dito como sacralização, presente nas liturgias afrorreligiosas, quando tal prática aparentemente colide com a proteção dos direitos dos animais. O presente trabalho tem por objetivo analisar em que medida a proteção aos animais pode impor-se como um limite a prática destas liturgias. Constatou-se que o cerne do discurso utilizado pelos atores do legislativo que se dizem preocupados com a causa animal repousa sobre o aspecto da crueldade, entretanto, as religiões de matriz africana não são as únicas que preparam e ofertam alimentos segundo preceitos religiosos. Os discursos ideológicos forjados em defesa dos direitos dos animais demonstram contornos de intolerância religiosa, pois as tentativas de proibição buscam atingir apenas as liturgias afrorreligiosas, mas não se opõe ao sacrifício ritual que alimenta a indústria de produtores da chamada carne branca, que serve ao mercado israelita e muçulmano. Concluímos que à luz do sistema normativo-legal brasileiro inexiste qualquer objeção à esta prática litúrgica, cabendo ao Judiciário, quando do enfrentamento no caso concreto, definir os limites entre a proteção conferida aos animais e a liberdade religiosa.

Palavras-chave: Liberdade étnico-religiosa; direitos dos animais; religiões de matriz africana; sacrifício de animais; intolerância religiosa.

 

Abstract: A controversial confrontation involving religious freedom protected broadly by the Federal Constitution of 1988, revolves around the ritual sacrifice of non-human animals, said as sacralization, present in afrorreligiosas liturgies, when this practice apparently collides with the protection animal rights. This study sought to examine to what extent the protection of animals can be imposed as a limit the practice of these liturgies. It was found that the core of animal protectors of argument rests on the aspect of cruelty, however, the religions of African origin are not the only ones who prepare and proffer food according to religious precepts. Analysis of forged ideological discourses on animal rights defense showed religious intolerance contours as attempts to ban or seek only reach the sacralization of animals in afrorreligiosas liturgies, but does not oppose the ritual sacrifice that feeds the flesh called the producer industry White, serving the Israeli and Muslim market. We conclude that in the light of the Brazilian normative-legal system does not exist any objection to this liturgical practice, being the judiciary, when the confrontation in this case, define the limits of the protection afforded to animals and religious freedom.

Keywords: Ethnic and religious freedom; Animal rights; African-rooted religions; Animal sacrifice; Religious intolerance.

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DOI: https://doi.org/10.18256/2238-0604/revistadedireito.v11n1p100-112

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