28-2312

O estado prestador de serviços e o controle judicial: um estudo comparativo entre Brasil e Portugal

The state as service provider and judicial control: the comparative study between Brazil and Portugal

Viviane Séllos(1); Fernando Gustavo Knoerr(2)

1 Doutora em Direito do Estado, com ênfase em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2005). Professora e coordenadora do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA. E-mail: [email protected]

2 Doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (2002). Professor Permanente do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA. Estágio Pós-Doutoral na Universidade de Coimbra, Portugal (2015-2016). E-mail: [email protected]

Resumo

O presente artigo traça um estudo comparativo entre Portugal e Brasil no tocante ao papel do Estado prestador de serviços e o controle judicial. Assim, a proposta é identificar pontos congruentes de ambos os países capazes de gerar reflexão a respeito da temática exposta. Para tanto, vale-se da organização em três capítulos, o primeiro apresenta a estrutura do poder judiciário em Portugal com a reforma jurídica com a “Lei de Boa Razão” e seus reflexos. O capítulo segundo versa sobre a função judicial e a constituição portuguesa. Inicia-se indagando quanto a competência dos juízes Portugueses no tocante a aplicação da norma e sua aderência ao texto ou expansividade de interpretação e livre convencimento. O terceiro capítulo se dedica à realidade brasileira, a crise da jurisdição, os limites da atuação do judiciário como uma das funções essenciais do Estado e a judicialização excessiva em uma cultura cidadã em construção. A conclusão perpassa pela análise da clássica conceituação de separação dos poderes, bem como pela intervenção do Poder Judiciário nos demais poderes, o que descaracteriza a separação e configura o ativismo e protagonismo judicial nas relações sociais mesmo que de competência adversa à sua. Para o desenvolvimento deste artigo, emprega-se a metodologia bibliográfica, visando contribuir para a evolução do Estado prestador de serviços e do controle judicial, com inspiração no modelo europeu, a partir da realidade portuguesa.

Palavras-chave: Estado prestador de serviços. Controle Judicial. Estudo Comparativo. Brasil/Portugal. União Europeia.

Abstract

This article outlines a comparative study between Portugal and Brazil regarding the role of the service provider state and judicial control. Thus, the proposal is to identify congruent points of both countries capable of generating reflection on the exposed theme. In order to do so, it uses the organization in three chapters, the first presents the structure of the judiciary in Portugal with the legal reform with the “Law of Good Reason” and its reflexes. The second chapter deals with the judicial function and the Portuguese constitution. It begins by asking about the competence of the Portuguese judges regarding the application of the norm and its adherence to the text or expansiveness of interpretation and free convincing. The third chapter focuses on the Brazilian reality, the crisis of jurisdiction, the limits of the judiciary as one of the essential functions of the State and excessive judicialization in a citizen culture under construction. The conclusion is based on the analysis of the classical conceptualization of separation of powers, as well as the intervention of the Judiciary in the other powers, which discharges the separation and configures the activism and judicial protagonism in the social relations, even if of adverse competence to its own. For the development of this article, the bibliographical methodology is used, aiming to contribute to the evolution of the state service provider and judicial control, inspired by the European model, based on the Portuguese reality.

Keywords: State service provider. Judicial Control. Comparative Study. Brazil / Portugal. European Union.

1 Introdução

As técnicas de interpretação e por conseguinte de aplicação da norma jurídica trazem consigo a problemática quanto ao distanciamento da letra da lei em nome do livre convencimento motivado, o que gera a incerteza e imprevisibilidade das decisões judiciais. Embora de forma breve, essa razão pode motivar e intensificar a necessidade da positivação e aplicação restritiva do comando normativo. Diante desse cenário jurídico incerto, reside a pertinência do estudo comparativo entre os dois países objeto de análise, Portugal e Brasil, no tocante a prestação de serviços e o controle judicial, visando aproximar a experiência europeia da necessária ampliação de boas práticas na realidade brasileira.

Para tanto, faz-se revisita à reforma da prática jurídica iniciada no século XVIII com o advento da Lei de Boa Razão e com a reforma do ensino jurídico na Universidade de Coimbra. O referido diploma legal reviu todo o sistema de fontes de direito no sentido de tornar o direito mais certo e previsível.

No modelo de Estado prestador de serviços a tutela judicial é invocada de forma frequente, tantas quantas mais frequentes são as falhas na prestação dos compromissos públicos para com os cidadãos, incluindo o Poder Judiciário de forma tardia na estrutura da separação de poderes. E assim, ao tempo em que o Poder Judiciário passa a ser o principal controlador dos demais Poderes, também é o menos controlado, passando a exercer funções que não lhe eram conferidas na origem, controlando os serviços públicos quanto à qualidade, eficiência, padrão e tempo de prestação, o mesmo fazendo com a atividade legislativa mediante largo controle de constitucionalidade, no modelo brasileiro de forma concentrada no Supremo Tribunal Federal ou difusa, exercível por qualquer magistrado, em qualquer nível de jurisdição, em todo o território nacional.

Instado a agir de forma tão ampla e frequente, o Poder Judiciário brasileiro agiganta-se em estrutura e função, passando a assumir na estrutura estatal encargos que não são seus, ordenando a prestação de serviços públicos, no mais autêntico desempenho da função executiva e proferindo decisões de caráter normativo (Sumulas Vinculantes do Supremo Tribunal Federal ou Instruções do Tribunal Superior Eleitoral), cumprindo mister a princípio privativo do Poder Legislativo.

A experiência brasileira endossa nesse contexto o chamado ativismo judicial, vendo o Poder Judiciário como o único responsável pela transformação social que propiciará a efetivação dos direitos há muito prometidos solenemente pelos agentes dos Poderes Executivo e Legislativo.

Neste particular, a experiência brasileira contrasta nitidamente a portuguesa, pois a tradição do Direito Português faz com que magistrados tenham mais presente a importância de certas conquistas históricas liberais, tal como a separação de poderes, sendo por isso muito precavidos no controle e principalmente no ingresso em exercício de atribuições de outras funções estatais, entrevendo-se uma definição mais clara e rígida da atuação de cada função do Estado que coloca em constante controvérsia a extensão do direito de criação judicial. A experiência europeia, a partir da influência portuguesa contemporânea corresponde a vetores ou paradigmas hermenêuticos e organizacionais do Estado de Direito há quase três décadas instituído no Brasil.

2 O poder judiciário em Portugal

As compilações jurisdicionais lusas, referidas como Assentos que, para Hespanha1, tinham como função primeira a de conceder à sociedade lusitana mais segurança, pois

Em Portugal, a reforma da prática jurídica começou ainda no século XVIII, com a Lei de Boa Razão e com a reforma do ensino jurídico na Universidade de Coimbra. A Lei da Boa Razão, de 18/08/1769, reviu todo o sistema de fontes de direito no sentido de tornar o direito mais certo, ou porque estava fixado na lei do Estado, ou porque estava organizado em sistema orientados por grandes princípios. Isto equivalia à proscrição do direito doutrinal e jurisprudencial que, como se sabe, constituía a espinha dorsal do sistema do ius commune; assim, bane-se a autoridade de Bártolo, de Acúrsio e da opinio communis doctorum, o mesmo acontecendo com a vigência do direito canónico nos tribunais comuns. Mantém-se a autoridade subsidiária do direito romano, mas apenas quando este fosse conforme à Boa Razão, ou seja – como se esclarecerá depois nos Estatutos da Universidade – aos princípios jurídico-políticos recebidos nas nações “polidas e civilizadas”. Em contrapartida, restringe-se a faculdade de fixar a jurisprudência aos assentos da Casa da Suplicação, ao mesmo tempo que se nega força vinculativa aos “estilos de julgar” dos tribunais e se estabelecem condições muito rigorosas de validade para os costumes.

Assim, a ideia de que a segurança jurídica invocada em todos os momentos no confeccionar de uma decisão judicial era legítima somente pelo fato de ser proveniente do corpo de jurisdicionado, sejam tais decisões emanadas nos tempos mercantilistas, seja predecessora à homologação da Constituição Portuguesa2 de 25 de abril de 1976, quando do movimento das Forças Armadas, é também pontuada por Hespanha.

O Direito Português, em meados do século XVI, atravessou uma dura fase, pois pretendia harmonizar o Direito Comum3 com os preceitos das leis lusas. Entretanto, como tipicamente num Estado Monárquico o Rei, que titularizava a figura emblemática do Estado, obtinha o poder de distinguir e ordenar qualquer celeuma ventilada no direito privado, cunhou-se o padrão de que a regra era o direito comum e a exceção era o corpo legal nacional.

Neste sentido, o ambiente jurisprudencial daquela época era suscetível aos sabores do regime monárquico e de seus favoritos. No cenário jurídico, via-se premente a necessidade de estabilizar o Reino Lusitano, daí a criação da casa da suplicação4, a qual obrava nas deliberações acerca de pontos controvertidos da estrutura jurídica lusitana.

Ao investigar os meandros do sistema jurídico português é sempre mister compreender, como premissa, o ambiente político em que é elaborado o arcabouço constitucional, manto da legitimação suspostamente democrática, para, a partir de então, serem aferidos os elementos constituintes de um ordenamento jurídico ao qual dá-se o poder supremo de decidir e corroborar como justo e plausível o que se mostra afinado a um gradiente de concentração social.

É de se registrar que os movimentos constitucionalistas lusitanos ocorridos a partir do século XIX não foram vanguardistas, pois, na lição de Vital Moreira5, deram-se as eclosões sinalizadoras de formações de constituições.

O movimento constitucional português não foi, portanto, pioneiro — como o foram emblematicamente os movimentos constitucionais inglês, norte-americano e francês. Recebeu e tem recebido influências de outros países (por outras palavras, as constituições portuguesas têm-se inspirado em grande medida em algumas constituições estrangeiras). Isto não quer dizer que o legislador constituinte português se tenha limitado a copiar textos constitucionais estrangeiros. Todas as constituições portuguesas, sem excepção, foram o produto de um particular contexto histórico-político vivido no país em diferentes momentos.

A ordem constitucional portuguesa demonstra uma intercadência de estabelecimentos constitucionais, pois, em menos de duzentos anos o Estado Português recepcionou as Constituições de 1822, 1826, 1838, 1911, e a atual, qual seja, de 1976. Fato este, que para Vital Moreira6, exibe a falta de continuidade formal nos anais históricos e políticos quando do estabelecimento das ditas Leis Supremas dos lusíadas, visto que, nos EUA houve cristalina continuidade formal no Implemento da Ordem Constitucional em vigor até hoje.

Para uma visão dos estabelecimentos das Ordens Constitucionais Portuguesas é mister lançar mão da significância do termo movimento constitucional que na percepção de Canotilho7, seria na maior parte das vezes, a garantia de proporcionar a Lei Maior Lusa uma forma de vida legitimada não somente na esfera jurídica, mas, sobretudo, nas estruturas político-sociais, isto porque o poder não pode ser limitado a somente firmar o poder legal posto como sendo borrifos de conceitos jurídicos numa dada sociedade, ainda que tal tenha sido estabelecida por uma unidade legiferante baseada unicamente na força dos estamentos legais.

O que se deve ter em conta na maioria das estruturas constitucionais modernas é o fato de que os movimentos constitucionais classificados como modernos nascem para designar o que seriam os movimentos sociais, culturais, políticos e econômicos. A tal percepção é concedida uma tarefa suprema e outrora não observada, qual seja, a possibilidade de ser revista qualquer forma de anomalia contida no ordenamento constitucional e extirpá-lo do sistema, pois, a ordem legal necessita da legitimação dos fatores já mencionados nas primeiras linhas.

Ainda no entendimento de Canotilho8, a Constituição Moderna pode ser entendida como sendo [...] a ordenação sistemática e racional da comunidade política através de um documento escrito no qual se declaram as liberdades e os direitos e se fixam os limites do poder político. Podemos desdobrar este conceito de forma a captarmos as dimensões fundamentais que ele incorpora: (1) ordenação jurídico-política plasmada num documento escrito; (2) declaração, nessa carta escrita, de um conjunto de direitos fundamentais e do respectivo modo de garantia; (3) organização do poder político segundo esquemas tendentes a torná-lo um poder limitado e moderado.

Trata-se tal ideia do novo perceber das sociedades no que tange aos novos ventos das pressuposições de uma nova conglomeração de indivíduos, os quais buscam o bem comum, ou ao menos tentam ponderar os ditames do legal em face das novas eclosões de comportamentos adotados nesta sociedade. Assim, tudo que colide com o direito posto pode ser balanceado frente aos noviços atos classificados por essa mesma sociedade dita moderna e democrática.

As primaveras da democracia, ou ao menos, o que se pode compreender num plano factível, de comportamentos como sendo atos os quais podem ser esposados enquanto conduta geral a ser processada quando da admissão deste novo entender de ordenamento jurídico é visto nas molduras de modelos de percepção do que é fundante no sistema moderno constitucional admitido pelos portugueses. Posto isto, pode-se afirmar que o sistema Constitucional moderno à luz de Hespanha9 deve ser considerado inferindo-se os elementos jurídicos e ideológicos, a ressaltar:

    1. Jurídico - corresponde ao modo de aferição qualitativo, no sentido de eficácia cogente, visto que altera os resultados ideológicos de avaliações fusionadas com critérios religiosos, políticos ou sociais frente a um determinado fenômeno;

    2. Ideológico - formas de consciência social, pois busca trazer valores percebidos por alguns membros de uma dita sociedade, e, a partir de então, tornar tais conceitos mais palpáveis para o coletivo, para logo mais, serem utilizados como gatilho de aplicação social automático em casos análogos utilizando a força legitima do aparelho jurídico Estatal.

Por certo que aquelas aplicações estarão longe de ser admitidas por esta mesma sociedade como sendo irretocáveis, visto que o aparelho social é mais dinâmico do que o aparelho legiferante pode suportar, pois a esse incumbe tentar formar a consciência coletiva social com o intuito de aplicar as normas de uma dita sociedade da maneira mais ordenada e produtiva possível.

Não pode ser olvidado o papel fundamental na concretização das inferências sociais retro mencionadas sem o agir do Poder Judiciário, com a incumbência de tentar pacificar as relações entre os indivíduos e entres esses e o próprio Estado, atuando como legitimador do Poder de decisão com que a sociedade moderna faz uso como parâmetro tanto em momentos de tensão social ou em instantes de instabilidade institucional, para buscar equilíbrio nos meandros diacrônicos dos agentes de mudança.

Entrevendo a recepção do direito romano na formação do direito comum10 na sociedade lusa, Hespanha11, considerou que o Direito Ocidental Europeu entre os séculos XII e XVII foi infundido com o “bartolismo” termo que designa a visão jurídica de então do que seria o direito comum.

Tal direito possui a predisposição de manter a coesão e o sincronismo dos conceitos jurídicos, a fusão dos direitos canônico e local, com o escopo de trazer um caráter unívoco e de fácil propagação dos meios acadêmicos da época para a condução de um só pensar sobre o direito e suas formas de decidir os conflitos ou as situações de embates de poder dentro do próprio Estado Português.

Para Hespanha12, deve-se ter em mente, quando das tratativas concernentes à compreensão do direito comum, que, primeiro, este conceito era compartilhado pelo meio escolarizado da época, rechaçado pela cultura popular de então; e, segundo, a constatação de uma unificação linguística não era elemento assaz aglutinador ou unificador para transmitir os conceitos do direito comum, pois a distância conceitual era enorme, dado o analfabetismo das pequenas e longínquas comunidades para a absorção das conjecturas abstratas que o direito comum apresentava na Europa Ocidental.

Em todo este conjunto circunstancial a que estava entremeado Portugal e os seus vizinhos continentais, a unicidade jurídica era inclinação inconteste, haja vista a sucessão de tomadas de Poder pelos diferentes impérios e seus lastros sócio-culturais deixados e trazidos em um mesmo território.

Não pode ser arredado, outrossim, o papel significativo da Igreja Católica em território luso na sucessão de Impérios; o que foi constatado por Hespanha13, no sentido de que o Poder Religioso em terrenos lusitanos trazia um certo paralelismo governamental em direção à consciência coletiva da época, exibindo assim, o ecletismo dos ordenamentos social e espiritual. Desta feita, a visão de junção do direito, deu-se em certa proporção, graças ao trânsito dos pensadores e as possibilidades de intercâmbio no tocante às ideias, costumes e até mesmo de dissenções de perspectivas sobre um dado sujeito de análise. O fato é que o elemento geográfico contribuiu, em muito, para a unicidade jurídica dos países do Velho Mundo, em especial, da península Ibérica, para tanto colaborando também o acesso à língua latina, que concedia uma qualificação extra a todos que estudavam os extensos manuais de retórica manejados nas mais celebradas escolas artísticas europeias.

Percebe-se assim, no entender de Cruz14, que o direito comum analisado em Portugal dos primeiros séculos era constituído, sobremodo, pelo aspecto doutrinal. O aspecto legislativo do direito comum é relegado a segundo plano:

[...] se cria uma espécie de costume doutrinal (opinio communis doctorum) que passa a ser decisivo – mais do que as próprias fontes dos direitos dos reinos – na orientação da jurisprudência. Em Portugal, por exemplo, apesar de as Ordenações conferirem ao direito romano um lugar apenas subsidiário no quadro das fontes do direito (Ord. Fil., III, 64), na prática ele era o direito principal, sendo mesmo aplicado contra o preceito expresso do direito local.

Fato é que o direito romano ainda é aplicado em larga escala em países, tais como, Alemanha, Itália e Espanha, pois possui tradição, construindo fator que é corroborado pelas estruturas de ensino jurídicos naqueles países.

Contudo, é vital rememorar-se que o direito romano sofreu várias alterações para que alguns de seus elementos fossem factíveis nos dias atuais.

Hespanha15, ressalta algumas diferenças apresentadas em relação aos fundamentos dos direitos romano e atual, tais como o fato de que no direito romano havia a crença num direito imanente, casuístico, jurisprudencial ou doutrinal, autônomo em relação à autoridade dos juízes e o direito como uma arte de agir. Já para o direito presente há a concepção de tal ser positivista-voluntarista, normativista, legal, dependente da autoridade dos juristas e científico.

Indaga-se, a partir de então: quais seriam as influências do direito romano no direito português? Desde (218 a.C.) as influências da vertente romana na história do direito são basicamente:

    1. Havia a adaptação do direito civil às facetas da vida cotidiana nas províncias por meio do atuar do magistrado, o qual administrava a justiça, atribuindo minucias ao direito provincial, contudo, carecia de tecnicidade, lançando mão por vezes, do direito romano;

    2. Em relação à maioria, qual seja, os não-cidadãos, havia o reconhecimento dos direitos daquela por parte dos romanos em tratados, ou declarações unilaterais;

    3. Em caso de soluções entre relações de romanos e não-romanos havia o direito comum para solucionar casos como aquele.

Para Silva16, o direito canônico teve um também papel preponderante sobre a história jurídica do primeiro país da península Ibérica, estruturado em decretos dos concílios, ecumênicos, regionais, provinciais ou diocesanos, assembleias dos bispos de toda a cristandade ou de uma região. As ordens papais eram também, uma força motriz das estruturas jurídicas da época; até, que a certa altura a Igreja começa a gerar uma parte dita por Hespanha17, como sendo uma “parte mole normativa”, a qual urgia por compilações e organizações para a própria sistemática legal dos ditos da Instituição.

Cumpre salientar, que tal interferência eclesiástica foi constatada, notadamente, quando da outorga da liberação de culto concedida pelo imperador Constantino, em 313 d.C., a partir de então, o direito canônico começou a ser fundido com o direito comum dando azo a corolários, tais como, conduta legiferante em matéria de:

    1. Relações pessoais entre os consortes;

    2. Enaltecimento da vontade a despeito da forma;

    3. Realce da valorização da posse acerca da propriedade;

    4. Apreciação nas relações penais com a busca pela verdade material;

    5. Em matéria processual, valorização do estabelecimento de composição tendente à arbitragem.

É neste terreno fértil de aplicações e inferências que o direito lusitano tem que ser analisado com o fito de tentar-se encontrar os mecanismos utilizados pelos juízes lusos quando da sua função primeira, qual seja, julgar. Porém, insta-se questionar quais seriam as reais logísticas sócio-históricas por trás do véu da doutrina constitucional portuguesa quando da atividade julgadora dos juízes no passado próximo desse país, marcada mais recentemente pelas imposições da União Europeia, que força inclusive a recontextualização de preceitos normativos, como leciona Vital Moreira:

Por outro lado, mesmo quando o texto da Constituição se manteve inalterado, assistiu-se a profundas alterações na contextualização do programa normativo de muitos preceitos. As modificações observadas em múltiplos domínios constitucionalmente regulados — desde o reforço da União Europeia até às deslocações do Estado de direito democrático e social para um Estado de regulação social, passando pelos novos contextos e problemáticas da biogenética e das telecomunicações — obrigam também a uma reponderação global contextualizada de muitas anotações.18

Quanto aos elementos constitutivos do direito luso no tecer da história jurídica Ibérica, é inegável o caráter pluralista ao ordenamento jurídico Português, visto que o direito canônico, para ter consistência social e eficiência ao que se propunha, devia permitir a mistura com o direito temporal comum. Essa é a sistemática identificável nas estruturas jurídicas da Europa Ocidental e, principalmente, em Portugal.

Para Grossi19, o conceito de pluralismo medieval é a coexistência de agentes legitimados em matérias distintas e suas aplicações dentro de um mesmo território para uma mesma coletividade com vários legitimadores de poder.

De modo oposto, no direito atual a Constituição assume um caráter supremo, buscando assumir um caráter unívoco, autorreferenciado em sua legitimidade, pois, na visão de Hespanha20, o direito

[...] em si mesmo, é já um sistema de legitimação, i.e., um sistema que fomenta a obediência daqueles cuja liberdade vai ser limitada pelas normas. Porém, o próprio direito necessita de ser legitimado, ou seja, necessita que se construa um consenso social sobre o fundamento da sua obrigatoriedade, sobre a necessidade de se lhe obedecer.

Porém, as premissas religiosas ou filosóficas, por vezes, não são sagazes o bastante para justificar a permanência no sistema jurídico atual. Daí, recorre-se ao tradicionalismo como caráter aperfeiçoador para legitimar os ditos conceitos que há muito não são harmonizadores das dialéticas sociais. Neste sentido Hespanha21, preleciona acerca da construção jurídica portuguesa.

O direito novo constrói-se, de facto, a partir do conjunto da tradição jurídica anterior; os juristas funcionam como bricoleurs, construindo novas soluções jurídicas a partir dos elementos desconjuntados das antigas. E, de qualquer modo, o direito novo desenvolveu-se, na maioria dos casos, na casca (esquemas normativos - direito jurisprudencial, consuetudinário, legislativo, judicial) do antigo.

Não se quer dizer, porém, nos moldes de Macintyre22, que o direito deva desprezar o já posto e construir a partir do nada um sistema originário.

Por isso, Hespanha23, assevera que nos dias atuais o que se esposa é a possibilidade de mudança no concernente às possíveis respostas de que o Poder Judiciário poder-se-ia valer para, então, ser mais ativo no seio social em que está inserido.

É neste imbricado sistema valorativo de normas e conceitos, ditos e meio-ditos, que a análise do papel dos juízes lusos transcorre, pois a ideia de constitucionalidade deve possuir uma noção de continuidade24, pois os elementos de mudança são inevitáveis e determinarão o destino da efetividade do direito constitucional português.

Todavia, não podem ser deslembrados os aspectos concernentes às memórias e à tradição constitucional lusa, sob pena de dar-se um caráter descontínuo do sistema constitucional português, tanto no plano material quanto formal do tema em foco. Desta feita, a índole da Constituição de 1976 traz aspectos das Constituições de outrora, progressistas e revolucionárias para as suas épocas.

O ponto inicial para a leitura da Constituição Portuguesa de 1976 é a consideração de que não menciona, de modo direto, poderes, mas profere o termo órgãos de soberania. Neste senso, pode-se afirmar que os tribunais estão incluídos na Organização do Poder Político25. O caráter expresso do n° 1 do artigo 202 da Carta Política Lusa caminha no sentido de os tribunais são órgãos de soberania com alçada para conduzir a justiça em nome do povo.

Cediço é que o Estado Português declara-se unitário em sua forma de governar e, por conseguinte, da forma como constrói a estrutura judiciária, pois neste sistema há uma certa multiplicidade no apregoado pelo artigo 209 da Constituição.

Sendo assim: 1. Além do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias de tribunais: a) O Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais judiciais de primeira e de segunda instância; b) O Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais; c) O Tribunal de Contas. 2. Podem existir tribunais marítimos, tribunais arbitrais e julgados de paz.

Outra parcela da máquina judicial é a disposição dos tribunais comuns em matéria criminal e cível, exercendo jurisdição em todas as áreas, que não foram vedadas pela Constituição portuguesa26. São, desse modo, exibidas no artigo 212° em três instâncias basilares:

1. Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. 2. Na primeira instância pode haver tribunais com competência específica e tribunais especializados para o julgamento de matérias determinadas. 3. Da composição dos tribunais de qualquer instância que julguem crimes de natureza estritamente militar fazem parte um ou mais juízes militares, nos termos da lei. 4. Os tribunais da Relação e o Supremo Tribunal de Justiça podem funcionar em secções especializadas.

A grosso modo, os órgãos judiciais de 1ª Instância possuem alçada geral, ou seja, conhecem todos os tipos de pontos controvertidos, não importando a essência da celeuma. Contudo, há a disposição constitucional de que há tribunais especializados com o fito de julgar particulares. Veja-se que tais especialização dos tribunais são verificadas somente nas principais cidades portuguesas nas quais se justifica esta divisão.

Para Canotilho27, a já citada teoria da especialidade, também denominada de doutrina de ordenação, desenraiza a noção de que o direito especial seria um tipo de direito público, disciplinador dos entes governamentais. O que se verifica, frequentemente, na configuração do direito constitucional é, em verdade, a disposição das normas no sentido de organizar as atividades de instituições privadas, quer estas estejam em relação, ainda que oblíqua, com os poderes públicos, quer aquelas estejam lidando apenas com atividades privadas.

De qualquer modo, para citado o autor28, entender a teoria geral do Estado passa pela verificação da separação rígida entre o direito constitucional e a epistemologia do direito.

É o Direito Constitucional reduzido a um conjunto de normas constitucionais e purificado de todos os elementos não jurídicos (históricos, sociológicos, políticos), elementos estes que seriam só estudados nas chamadas Ciências Afins. Isto, por um lado. Por outro lado, a separação rígida entre Direito Constitucional e Ciências Afins é, muitas vezes, indício seguro da adopção de uma perspectiva meramente epistemológica no conhecimento do direito. Significa isto que o “direito” é considerado como simples objecto de conhecimento, que o jurista tem só uma intenção de ciência (é apenas o sujeito de um conhecimento), e que esse seu conhecimento se distingue dos conhecimentos próprios de outras ciências somente pela especialidade.

É ainda relevante mencionar as tratativas do direito comunitário em relação a Portugal, pois o direito luso tem que lidar com um direito alienígena à sua supremacia, subordinando-se à União Europeia e suas determinações que, por vezes, são tendentes a pôr à prova seus ditames constitucionais. Neste ângulo, depõe Canotilho29, que:

Os tratados institutivos das comunidades européias e as disposições comunitárias dotadas de aplicabilidade directa (self executing) constituem, com a adesão de Portugal à ordem jurídica comunitária, uma nova fonte normativa da ordem jurídico-constitucional portuguesa, em posição separada em relação aos actos legislativos internos, podendo impor-se relativamente a estes com base no princípio da especialidade ou da competência prevalente.

O ponto principal a ser observado nas linhas constitucionais portuguesas quando do arrazoar do tema da especialidade da máquina judiciária é a tendência de conferir valência aos tribunais especializados. O intento mor dever ser vislumbrado em direção ao acúmulo de experiência que deve ser ofertado ao magistrado, a fim de que possa decidir as causas que lhe são submetidas com maior grau de segurança e acerto.

Ao mencionar as atribuições dos tribunais administrativos Silva30, rememora a origem da autonomia da Jurisdição administrativa.

A autonomia da jurisdição administrativa é um dado histórico da organização do Poder Judiciário em Portugal, na sequencia da tradição francesa, e vem recebendo, hoje, um reforço por parte da Constituição, que, designadamente, estabelece um conselho superior específico para tratar da nomeação, colocação, transferência e promoção dos juízes, bem como do exercício da ação disciplinar em relação a eles.

Na visão deste autor deve ser mitigada, de modo contínuo, a autonomia da jurisdição administrativa, uma vez que a vigência de um privilégio estatal dispõe, contrariamente, aos postulados da valorização dos direitos dos cidadãos em esfera judicial, ocasionando o transviamento dos principais pontos de discussão da coletividade com o uso de pretensas ações para a defesa de interesse coletivos e difusos, levando o Estado a criar um corpo legal para legitimar os seus próprios interesses.31

É, no entanto, ainda remota a possibilidade de alteração deste cenário criticado por Silva32, haja vista a falta de previsão de rediscussão da matéria em comento, sendo certo que os tribunais administrativos lusos ainda persistirão, a despeito da almejada agregação dos tribunais lusos em suas especificidades.

De sua vez, a atuação do Tribunal Constitucional na organização do Poder Judiciário Luso, munido de prerrogativas fundantes para a independência e manutenção de seus julgados, atinge o objetivo almejado pelos Estados constituintes da Europa desde o final das grandes guerras mundiais, pois nele reside a vontade ordenadora, diga-se, política, de explicar por meio das leis advindas de um Poder Legislativo, estável e seguro, os caminhos que convergem para a proteção à vista de ameaças contra os limites do próprio Estado em suas interações com os particulares.33

Daí, é natural mencionar o princípio da legalidade, tal como corolário da intenção constitucional lusa para a regulação do próprio Estado. Contudo, aponta Canotilho34, que a legalidade no afã de trazer respostas acuradas aos reclamos sociais pode-se tornar uma supremacia absoluta da lei, e

[...] faz com que os seus aplicadores (os juízes) ou os seus especialistas (os jurisconsultos) não possam discutir os seus méritos, o modo como interpreta o interesse público ou como organiza a sua prossecução. Isso seria apropriar-se ilegitimamente de juízos políticos que apenas cabem ao Estado. Todo o saber jurídico se limita, então, a considerações meramente formais acerca do direito: se este foi editado pelos órgãos competentes e de acordo com os processos e formalidades estabelecidas, se o processo intelectual de derivar decisões concretas da norma geral foi logicamente correto. Quaisquer considerações sobre os conteúdos do direito – a sua justiça, a sua oportunidade, a sua utilidade – são excluídas deste saber formalista sobre o direito.

Tal cognição é incitada pela corrente do positivismo legalista35 entendido como a atuação estatal em todos os afazeres, públicos ou privados, não ofertando margens de atuação social ou individual, pois todos estavam sob a batuta do infalível Ente maior, diga-se, o Estado.

Essa premissa de infalibilidade estatal é destronada de plano, pois no modelo republicano todos os detentores de poder são sujeitos às criticas para a construção de um arcabouço mais arrojado e pertinente à época a qual pertencem.

Assim, se houvesse a aplicação cega da legalidade no decidir situações afetas às leis e seus consectários no ordenamento luso, inexequível e inócuos seriam os trabalhos dos jurisconsultos e, principalmente, dos juízes, na medida em que não lhes seria conferida a possibilidade de interpretar o direito público ou suas intenções recitadas na Lei Maior.36

O Tribunal Constitucional é, pois, nas palavras da Lei Maior, Órgão Jurisdicional do Estado Luso, sendo lhe dado julgar por maioria, como dispõe o artigo 224°: 1. A lei estabelece as regras relativas à sede, à organização e ao funcionamento do Tribunal Constitucional. 2. A lei pode determinar o funcionamento do Tribunal Constitucional por secções, salvo para efeito da fiscalização abstrata da constitucionalidade e da legalidade. 3. A lei regula o recurso para o pleno do Tribunal Constitucional das decisões contraditórias das secções no domínio de aplicação da mesma norma.

Ao definir a natureza do Tribunal Constitucional, afirma Canotilho37, que

[...] o Tribunal Constitucional um órgão jurisdicional, porque, tal como nos outros tribunais, as decisões obtêm-se de acordo com um “processo” judicial através do qual se “diz” vinculativamente o “que é o direito” segundo a “medida” jurídico-material do direito constitucional. Além disso, o facto de o direito constitucional ser um “direito político” não perturba a natureza jurídica da actividade do TC; decisivo é, sim, que o fundamento e racionalidade das decisões do TC se determinem por “um direito” — o direito constitucional.

3 A função judicial e a constituição portuguesa

Os juízes lusos estão adstritos, unicamente, aos preceitos da legalidade e da competência formal ou, tal como ocorre no Brasil, podem valer-se de um livre convencimento?

Inicialmente, carregam-se nos preceitos constitucionais copiosos significados trazidos pela Carta Magna e suas fontes de direito (polissemia)38, que em verdade, exigem um refinamento hermenêutico dos que a buscam com o fito de encontrar guarida segura para a resolução de situações conflituosas, ou mesmo, para a obtenção de uma senda filosófico-política que possa ser adotada em momentos de decisões coletivas ou individuais no seio da sociedade.

Fato é, que há um escalonamento com o qual há de se lidar na percepção das fontes de direito luso. O primeiro deles encontra-se nas fontes genéricas do direito39, alimentada pela multiplicidade e abstração de valores tão fortes, contudo, paradoxais em alguns momentos, nomeadamente, crenças religiosas, concepções éticas e ideologias políticas.

O segundo ponto, diz respeito às fontes de valoração40 genéricas, tais como a justiça, segurança jurídica e igualdade, que conferem legitimidade e validade em muitos assuntos discorridos na esfera constitucional.

A terceira diz respeito às fontes de conhecimento41, conferindo diretriz ao direito positivo a partir da análise das opções feitas quando da confecção histórica da norma.

A quarta e derradeira fonte de direito direciona-se para a juridicidade42, versando sobre os fatores de legitimação da Lei Maior e seu poder constituinte em esfera material.

Nesse panorama, nasce a tensão decorrente da dificuldade de definir qual função estatal seria legítima para receber a prerrogativa geral de ser o emissário da última palavra, a derradeira e insofismável decisão.

Essa é a tensão existente entre os Poderes Executivo, Legislativo e o Judiciário, como aponta Hespanha43, ao lecionar que

[...] quando os juristas reclamam uma autoridade para descobrir princípios constitucionais não explícitos, para julgar de acordo com standards não expressos na lei, para identificar direitos humanos, para interpretar a lei conforme a padrões jurídicos extralegais, para criar direitos específicos, adequados ao caso ou à vontade das partes (como sucede na arbitragem).

Essa legitimidade reclamada pelos juristas transfere-se à função judicial, pois lhe incumbe proferir o Direito não apenas à vista da lei do local para um determinado caso concreto, mas, sobretudo, dizer o direito de acordo com as fórmulas decadológicas44, que se utilizam de justaposições dialéticas dotadas de força argumentativa, aparelhadas de elevada aprovação social.

De modo comparativo, assevera Machado45, as diferenças entre os sistemas português e o brasileiro diante de questões de constitucionalidade.

Em Portugal, por exemplo, a articulação entre controle concentrado e difuso ocorre por um processo de generalização, em que o Tribunal Constitucional, após considerar uma norma inválida em três casos concretos, pode fixar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma (art. 281.3, da Constituição Portuguesa: “Tribunal Constitucional aprecia e declara ainda, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de qualquer norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional ou ilegal em três casos concretos”). Esse processo permite uma articulação em que o órgão máximo, em controle abstrato, deixa-se influenciar por razões obtidas em caso concreto – de baixo para cima; movimento inverso do que é verificado no Brasil.

Ao jurista não caberia, no dizer de Hespanha46, modificar ou restabelecer o direito, mas coletar o consenso comum de uma dada coletividade.

Assim, os juristas desempenhavam o seu papel assumindo o direito como um dado adquirido, deixando-o ser tal como era, já que emergiria das disposições espontâneas das coisas (nomeadamente as coisas humanas). A criação do direito não seria responsabilidade deles. Responsabilidade deles seria a de observarem, refletirem, sentirem, acreditarem, lembrarem, meditarem e interpretarem as ordens existentes dentro, fora, acima e abaixo deles. Para entenderem bem, tão completamente quanto lhes fosse possível, o sentido de Deus, dos homens e da natureza. E para encontrarem formas de a apresentarem de um modo que pudesse receber um consenso comunitário.

Destarte, o quadro de formação dos juristas aliados às vertentes de pensamento democrático, sinalizam a marcha da valorização casuística de raciocínio, que ataca o estado conservador da dogmática jurídica estabelecida, propondo interposição dinâmica e alternativa dos magistrados. Porém tal medida intrépida do judiciário pode significar o retorno à insegurança jurídica de que a Modernidade buscou se livrar.

Hespanha47, salienta por isso a importância do raciocínio silogístico ao interpretar as normas conglomeradas com os princípios dentro de um contexto factível de atuação.

[...] o que é importante realçar é que cada instituto jurídico ou cada conceito de direito faz parte de um sistema ou contexto, do qual recebe o seu sentido. Mudado o contexto, os sentidos das peças isoladas recompõem-se, nada tendo a ver com o que elas tinham no contexto anterior. Isto mostra já até que ponto são frágeis os argumentos históricos na interpretação das normas jurídicas. Pode mesmo dizer-se que só porque esquecemos os sentidos originários dos conceitos ou das instituições é que elas podem continuar a funcionar, nesta contínua readaptação que é a sua história. Só porque esquecemos o sentido originário das palavras romanas que significam “obrigação” (obligatio – atar em volta de) ou “pagamento” (solutio – desatar) é que alguns textos de direito romano que se lhes refe- rem podem continuar a ser invocados (depurados, como é evidente, dos seus sentidos, explícitos ou implícitos, originais). Só porque esquecemos o conteúdo originário de conceitos romanos como paterfamilias (ou mesmo familia) ou actio (ação) é que podemos continuar a tirar partido de alguns princípios de direito romano que se lhes referem. A própria idealização que por vezes se faz, por exemplo, da natureza criativa e autónoma da juris-prudência (no sentido, originário, de doutrina) ou da atividade do pretor só é ainda hoje atraente porque se esquece todo o seu contexto político e social.

E por isso não se pode conceber a discricionariedade de um magistrado, ainda que decida romper o convencionalismo da segurança jurídica para proteger questões forenses claras, sob pena de desvirtuarem-se os estatutos legais já postos e convencionados como legítimos.

Não obstante, a observância dos estamentos legais já instituídos, não pode-se redarguir às convicções de pluralismo de cognição jurídica48 a que um magistrado deve estar submetido, porquanto, em muitas situações deve encontrar a lógica capaz de conduzir a um desfecho plausível e consoante às regras sociais.

O dito pluralismo jurídico e seus desdobramentos fazem parte do embate entre o direito comum praticado nas pequenas comunidades e o direito romano, este mais sagaz e comprometido com o que era considerado como ciência a partir dos idos do século XII49.

Houve, então, inevitavelmente, o antagonismo entre a tradição e o mensurável para um estado de coisas fundado nos preceitos do verificável no comportamento humano mediano. Disto decorre a insistência do jurista lusitano em seguir os preceitos do nacional, geral e perene, em face do local, casuístico e temporário.

O primado da lei à luz de uma interpretação moderna ubica-se para além dos postulados nos diplomas legais, pois a constituição deve respeitar os corolários de princípios de uma ordem maior, bem superior à interpretação literal dos dispositivos legais.

O direito judicial, assim desenhado, é alvo de críticas por parte de Canotilho50, para o qual a acepção de que a extensão dos direitos de criação judicial são combatíveis.

A legitimidade e imprescindibilidade do Richterrecht (“direito dos juizes”, “direito judicial”) parece ser hoje indiscutida. Problemática e objecto de controvérsia é já a extensão deste direito de criação judicial. Por agora ficará apenas a indicação: a investigação e obtenção do direito criadoramente feita pelos juizes ao construirem normas de decisão que constitui um dos momentos fractais mais significativos da pluralização das fontes de direito.

4 O poder judiciário brasileiro e o ativismo judicial

Antes de ser discorrida a fenomenologia do ativismo jurídico e seus aspectos diante do ordenamento Constitucional brasileiro, é mister mencionar a suma dos dados encontrados em registros jurídicos dos Estados Unidos da América, calhando a definição de Kmiec51 ao admitir que a definição do termo ativismo jurídico não é pacífica, e que, portanto, pode ser codificado como sendo uma espécie de instrumento, capaz de auxiliar a formação de um diálogo construtivo.

Os primeiros usos da expressão datam de 1905, quando da resolução pela Suprema Corte Americana do caso Lochner52 vs. New York. Esse período era marcado pela inclinação da Corte em implementar conceitos e práticas baseadas em valores cultivados sobre o devido processo legal, ainda que sob pena de infringir a liberdade, privacidade e individualidade dos contratos.

A expressão Ativismo jurídico foi encontrada pela primeira vez num artigo datado de 1947, cuja autoria foi de Schlesinger Jr53, embora a tenha empregado em um sentido mais distante do conhecido atualmente, pois considerava que leis e políticas são indissociáveis, uma vez que as decisões judiciais são politicamente conduzidas.

Apesar das críticas gravadas contra a utilização do ativismo jurídico Schlesinger Jr.54 finaliza o artigo com um desfecho otimista sobre as incitações feitas aos julgadores e aos jurisdicionados em geral, pois o conflito na Corte Suprema pode ser decidido de modo proveitoso em forma de discussão segundo os moldes da tradição americana de pensamento.

De acordo com Kmiec55, nos dias preambulares da utilização do termo ativismo jurídico, frequentemente, o significado daquela terminologia possuía uma conotação positiva, porém, dado o contexto histórico no qual estava inserida, a expressão era compreendida muito mais como produto dos movimentos ativistas dos direitos civis, do que a usurpação de autoridade judicial.

Salutar é a declaração de Scalan56, respondendo às críticas ao ativismo judicial, mencionando:

Nós sancionamos as decisões da regra da maioria quando elas provem de representantes, devida e democraticamente eleitos do povo. Quando essa vontade da maioria tenta ser danificada ou distinta dos princípios básicos, sobre os quais se assentam, nomeadamente a livre possibilidade de pontos de vista, partidos, etc., aí então, a Corte, como guardiã da declaração dos Direitos deve imiscuir-se. Nós não toleraremos a democracia ser destruída em seu próprio nome. (Tradução livre).

Nos moldes do ativismo jurídico brasileiro é encontrada a perspectiva de Miarelli57, que assim o conceitua:

Diante de novas necessidades, onde a lei não se mostra suficiente ou diante de necessidades que forjam uma determinada interpretação do texto de lei, é o momento em que o esforço do intérprete faz-se sentir. Tem-se como Ativismo Judicial, portanto, a energia emanada dos tribunais no processo da criação do direito. (Grifo nosso).

Com a tendência globalizante de termos como justiça e atuação judicial mais próximos da sociedade, apregoa Barroso58, que a midiatização das questões submetidas ao crivo do Supremo Tribunal Federal, nos últimos tempos contribuiu para um estado de fiscalização da cúpula do ápice da estrutura da máquina judiciária brasileira.

A judicialização da vida59 é outro termo empregado por Barroso para decodificar a mensagem de que o Estado foi redemocratizado e por isso a rediscussão de questões fundamentais do Estado faz-se necessária na função judicial. Esta é a tendência global de judicializar, ou seja, expandir a atuação da máquina judiciária na consciência do coletivo nacional.

É neste ponto que encontra-se uma similaridade com a Carta Política Portuguesa de 1976, pois esta trouxe o incremento dos preceitos desafiantes ao legislador descompromissado60.

Os pressupostos lógicos de interpretação constitucional são elementos basilares da Lei Maior Brasileira61 e por isso, para Streck62, o ativismo judicial brasileiro é a resposta, ainda que reflexa, de que a Carta Magna não se basta quando da concretização de direitos e deveres individuais, e, muito menos, da efetivação de políticas públicas para a consumação de direito coletivos fundantes apregoados na Constituição. Daí a razão da existência do fenômeno ativista judicial, tendo em vista a tentativa de implementação de justiça social através da jurisprudência.

Entusiastas do ativismo judicial o veem como a chegada dos ventos democráticos, anunciados de forma alvissareira a todos os que estão sob os resquícios de um regime de letras mortas que não eram capazes de efetivar os direitos fundamentais, garantindo-se, assim, o mínimo pregado pelos legisladores e chefes do executivo.

Por esse motivo, as profundas alterações paradigmáticas encontraram espaço na Teoria do Estado Brasileiro, buscando ver o Poder Judiciário como elemento facilitador desta metamorfose social, crendo-se, por isso, que a efetivação dos direitos há muito prometidos solenemente pelos agentes dos Poderes Executivo e Legislativo, somente serão factíveis pela atuação do Poder Judiciário.

A máquina judiciária brasileira busca a implementação do ativismo judicial com o fito de romper a passividade formal, salvaguardando as asserções do to dikaion – o inalienável absoluto, que, segundo Villey63, é a busca do jurista não somente em seu ofício, por excelência, mas, sobretudo, é sua motivação visceral.

Mas, o “direito”, no sentido maior do termo, não designa a profissão ou a atividade dos juristas; mostra-se como uma coisa que o jurista busca, estuda, em torno da qual parece gravitar o ofício do jurista. A contribuição mais original da doutrina do direito de Aristóteles é precisamente a análise do termo justiça e, contudo, distinto desta: to dikaion – cuja melhor tradução em língua francesa é “o direito”, e que os romanos da época clássica traduziam por jus. No livro V da Ética o direito (to dikaion) mais do que a justiça (dikaiosunê) constitui o tema principal.

O ativismo judicial toma, no entanto, proporções consideráveis na sociedade brasileira, extrapolando as bordas delineadas pelo modelo democrático, reconhecendo ao Poder Judiciário, como leciona Barroso64, a prerrogativa de impor condutas ou abstenções ao Poder Público, sobretudo, em relação às políticas públicas.

A matéria ainda não foi apreciada a fundo pelo Supremo Tribunal Federal, exceto em pedidos de suspensão de segurança. Todavia, nas Justiças estadual e federal em todo o país, multiplicam-se decisões que condenam a União, o Estado ou o Município – por vezes, os três solidariamente – a custear medicamentos e terapias que não constam das listas e protocolos do Ministério da Saúde ou das Secretarias Estaduais e municipais. Em alguns casos, os tratamentos exigidos são experimentais ou devem ser realizados no exterior. Adiante se voltará a esse tema. (Grifo nosso).

Em contraponto encontram-se afirmações da inefetividade sistemática do ativismo jurídico, pois, juízes e Tribunais Constitucionais não possuem a legitimidade democrática para assumir funções que tradicionalmente são atribuídas às demais funções da soberania.

No entender dos opositores do ativismo judicial, o Poder Judiciário age ao arrepio da lei quando atua como legislador negativo, desacreditando o produto do trabalho dos Poderes Executivo e Legislativo, utilizando-se de uma exegese hermética para produzir um determinado resultado65.

Sobre as críticas ventiladas ao ativismo judicial no Brasil, Sarmento66, considera:

E a outra face da moeda é o lado do decisionismo e do “oba-oba”. Acontece que muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da possibilidade de através deles, buscarem a justiça – ou que entendem por justiça -, passaram a negligenciar no seu dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta “euforia” com os princípios abriu um espaço muito maior para o decisionismo judicial. Um decisionismo travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com seus jargões grandiloquentes e com a sua retórica inflamada, mas sempre um decisionismo. Os princípios constitucionais, neste quadro, converteram-se em verdadeiras “varinhas de condão”: com eles, o julgador de plantão consegue fazer quase tudo o que quiser. Esta prática é profundamente danosa a valores extremamente caros ao Estado Democrático de Direito. Ela é prejudicial à democracia, porque permite que juízes não eleitos imponham a suas preferências e valores aos jurisdicionados, muitas vezes passando por cima de deliberações do legislador. Ela compromete a separação dos poderes, porque dilui a fronteira entre as funções judiciais e legislativas. E ela atenta contra a segurança jurídica, porque torna o direito muito menos previsível, fazendo-o dependente das idiossincrasias do juiz de plantão, e prejudicando com isso a capacidade do cidadão de planejar a própria vida com antecedência, de acordo com o conhecimento prévio do ordenamento jurídico.

Sobre os percalços encontrados no caminho de efetivação do ativismo judicial, leciona McWhinney67, o fato de que os juízes, numa infinidade de vezes, são ineficientes como legisladores. Mais uma vez, menciona-se a hipotética inabilidade dos juízes no mister de transmitir valores comuns de uma sociedade dentro do esqueleto constitucional, pois tal prerrogativa de comungar e estabelecer princípios sociais é típica do Legislativo e em certa medida do Executivo, não residindo nas mãos do Poder Judiciário, ainda que de forma reflexa.

Em contraste direto, há os entusiastas do ativismo judicial, amparados pelo dado factível de que, diante de cada nova situação, a lei não é capaz de atender aos reclamos básicos de toda a coletividade. Busca-se então, na figura do magistrado, a atual reminiscência da atuação legiferante para suprir o que a lei ou a inação de políticas públicas olvidaram. Neste sentido, expõe Galvão68, acerca da pertinência do ativismo e seus efeitos à sociedade.

Temos também a Teoria substancialista, deve sim o Judiciário intervir nestas questões, pois é o STF o guardião da Constituição Federal e quando certos comportamentos venham a prejudicar a paz social, a vida digna de uma coletividade, direitos mínimos existenciais, deve sim este Poder, fazer valer as suas vezes e garantir estes direitos fundamentais, seja em controle concentrado, seja em controle difuso de constitucionalidade.

Há a ponderação de que o Estado não pode ofertar em serviços ou outras prestações do que as que lhe são impostas, dentro de limites orçamentários. Disso, emana o princípio da reserva do possível69, impossibilitando a prestação positiva por parte do Estado para além dos encargos que lhe são impostos nos limites da Lei.

Tal doutrina seguiu o corolário do passado político alemão dos anos 1970, o que foi rechaçado pela própria Alemanha nos idos de 2002, quando asseverou que o princípio em pauta somente pode ser factível no instante em que o indivíduo tiver a possibilidade de aguardar o tempo necessário para que o Estado lhe preste o serviço. Em casos de urgentes, no entanto, diante da iminência de comprometimento do atendimento a direitos fundamentais, o Estado tem a obrigação de agir de forma eficiente para suprir a demanda.70

O conjunto doutrinário sob o qual está submetido o Poder Público brasileiro, e, em especial, o Poder Judiciário, conjuga a comparação de figuras de Estado e sua efetivação dentro do corpo social que o compõe.

No paralelo das duas experiências, Brasil e Alemanha, são chamados a desempenhar uma mesma atividade, a prestação de serviços públicos destinados a sustentar um minimum de dignidade humana. A diferença, contudo, está no fato de que o primeiro insiste em não cumprir ao que é imposto em sua própria Carta Política, já o segundo, o faz. Em aprofundado estudo, Krell71 apresenta a diferença dos modelos dos países em foco.

A doutrina jurídica brasileira, no passado, sempre foi aberta a discutir modelos e propostas provindas do exterior. Nesse contexto, a doutrina constitucional alemã e a jurisprudência da Corte Constitucional exercem papel de destaque. No entanto, as teorias desenvolvidas na Alemanha sobre a interpretação dos direitos sociais não podem ser facilmente transferidas para a realidade brasileira, sem as devidas adaptações.

Os direitos fundamentas tem lastro na positivação dos direitos humanos, a partir do reconhecimento pela estrutura estatal da necessidade de se os efetivar como forma de conferir à pessoa humana condição especial. Neste diapasão entende Canotilho72.

As expressões direitos do homem e direitos fundamentais são frequentemente utilizadas como sinônimas. Segundo a sua origem e significado poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos; direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intertemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta. (Grifo nosso).

Também afirma José Afonso da Silva73, para quem os direitos fundamentais são direito humanos, reconhecidos, até mesmo, na vida intra-uterina. Tais direitos não são condicionados à limitação jurídico-institucional, espacial, e, nem temporal como afirma o Canotilho Os direitos fundamentais são a expressão sublime da ideologia política recepcionada pela Carta Magna Brasileira, arredada no entanto pela experiência lusa no atinente à aplicação do ativismo judicial para o cumprimento de garantias básicas aos cidadãos.

Leciona Silva74 que:

Direitos fundamentais do homem constitui a expressão mais adequada a este estudo, porque, Além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas.

Concepções como esta robustecem ainda mais o ativismo judicial, concebendo-o como forte recurso a ser empregado para forçar a atuação do Estado diante do real descumprimento do Estado do acordo social que há entre o cidadão e organização oficial máxima de poder.

Por isso leciona o Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello75:

O Supremo não se curva a ninguém nem tolera a prepotência dos governantes nem admite os excessos e abusos que emanam de qualquer esfera dos três Poderes da República, desempenhando as suas funções institucionais de modo compatível com os estritos limites que lhe traçou a própria Constituição.

Na busca de desenhar uma disciplina a tão pujante sanha de legitimação do Poder Judiciário pela via do ativismo, o também Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Edson Fachin76, cadastra alguns sentidos ou objetos que permitam sua manifestação, a saber: 1) controle de legalidade (não deve haver erro manifesto na aplicação da lei, nem pode existir abuso de poder); 2) controle da motivação (aferir se as razões do ato regulatório foram claramente indicadas, estão corretas e conduzem à conclusão a que chegou a administração pública); 3) controle da instrução probatória da política pública regulatória (exigir que a produção de provas, no âmbito regulatório, seja exaustiva, a ponto de enfrentar uma situação complexa);

A questão aberta pelo chamado ativismo judicial no Brasil torna-se ainda mais tormentosa quando se constata que a invasão de competência próprias das demais funções do Estado pelo Poder Judiciário acarreta também o esvaziamento da legitimidade dos demais poderes na medida em que o próprio Poder Judiciário a captura, comprometendo na raiz um dos pilares do regime democrático que é justamente a representatividade popular, sustentada pelo exercício do voto dirigido a escolha de representantes no Congresso Nacional e de gestores no Poder Executivo.

A representatividade, no entanto, não aparece no Poder Judiciário, pois grande parte de seus membros é selecionada mediante o meio técnico e impessoal do concurso público, e os demais, em menor número, designados diretamente pelo Poder Executivo (membros dos Tribunais superiores e designados pelo chamado quinto constitucional nos demais Tribunais).

5 Conclusão

A função judiciária, quase nada referida pelos teóricos liberais, insere-se como peça anacrônica na estrutura da separação de poderes, tornando-se a que mais controla as demais funções, executiva e legislativa, exercendo inclusive a legislação negativa no controle de constitucionalidade, mas a que é menos controlada.

O contexto verificado a partir do início do século XX, conduz à hipertrofia da função judicial, instado a todo momento a corrigir os rumos do Estado, assumindo, muitas vezes sob o argumento de que as demais funções ou se omitem ou atuam de forma imoral, funções que não lhe são próprias.

Surge na experiência brasileira o chamado ativismo judicial, justificando o hábito do ingresso do poder judiciário na condução política do Estado, transformando o Supremo Tribunal Federal numa outra espécie de Senado: um conselho de anciãos que tem a última palavra sobre os atos mais relevantes do Estado brasileiro.

Nesse particular, a experiência brasileira contrasta com a portuguesa, pois as constantes falhas do Estado brasileiro na prestação de serviços públicos tornam-no a parte mais presente nos processos judiciais, invocando a ingerência, não apenas corretiva, mas efetivamente impositiva, do Poder Judiciário na prestação de serviços públicos, tornando os tribunais verdadeiros órgãos de direcionamento administrativo do Estado brasileiro e também de direcionamento político, em razão do controle de constitucionalidade, exercido de modo concentrado no Supremo Tribunal Federal, e ainda de modo difuso por qualquer magistrado em todo o território nacional.

No desempenho desses papéis, o Poder Judiciário arroga-se uma legitimidade democrática que não lhe é dada pelo voto, mesmo porque os concursos públicos para seleção de Magistrados são meios técnicos de seleção, não democráticos – desenvolvendo atribuições típicas dos demais Poderes.

Apegado ao princípio do livre convencimento judicial, o Poder Judiciário brasileiro chega inclusive a editar as chamadas Súmulas Vinculantes, construindo jurisprudência que deve ser observada de forma obrigatória não apenas pelos seus membros, mas por todo o Estado brasileiro.

Neste ponto, a experiência brasileira contrasta nitidamente a portuguesa, pois o apego do magistrado português a institutos jurídicos e políticos tradicionais, muitos deles cunhados pelas conquistas históricas liberais, tais como a valorização das liberdades individuais, o princípio da reserva legal e o da separação de poderes, alimenta a cautela e as ponderações diante da iminência de o Poder Judiciário invadir funções que não lhe foram historicamente conferidas, impondo ao próprio Poder Executivo o encargo de corrigir-se em falhas na prestação de serviços públicos, controlado por entidades autônomas, responsáveis pela regulação.

Não se pode afirmar que são idênticos, no entanto, a finalidade e a estrutura normativa da súmula vinculante guarda alguns pontos comuns com os antigos assentos portugueses, que tiveram aplicação no Brasil imperial, por força do Decreto n° 2.684, de 23 de outubro de 1875 (sobre a aplicação dos assentos da Casa de Suplicação de Lisboa e conferia competência ao Supremo Tribunal de Justiça para editar outros) e Decreto n° 6.142, de 10 de março de 1876 (regulando a forma de edição dos assentos do Supremo Tribunal de Justiça).

O instituto dos Assentos vigorou em Portugal até dezembro de 1993, quando o Tribunal Constitucional declarou inconstitucional norma do art. 2° do Código Civil português que atribuía ao Supremo Tribunal de Justiça (órgão superior da hierarquia dos tribunais judiciais, sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional) a competência para editar os “assentos” de “doutrina com força obrigatória geral”, por tal prática não ser reconhecida como fonte do direito, de acordo com a Constituição portuguesa de 1976. Tribunal Constitucional de Portugal. Acórdão n° 810/1993.

Ao negar a condição de fonte do Direito aos chamados Assentos, a experiência judiciária brasileira e portuguesa adotam caminhos que gradativamente se distanciam, pois enquanto em Portugal o convencimento judicial, livre de pressões, é garantia dos jurisdicionados, no Brasil busca-se a previsibilidade das decisões judiciais mediante a criação de um sistema decisional que já se aproxima demasiadamente do stare decisis. Assim, ainda há o que aprender com o direito lusófono e as influências evolutivas propagadas pelos membros da União Europeia.

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Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, vol. 13, n. 3, p. 559-588, Set.-Dez., 2017 - ISSN 2238-0604

[Received/Recebido: Dez. 04, 2017; Accepted/Aceito: Dez. 12, 2017]

DOI: https://doi.org/10.18256/2238-0604.2017.v13i3.2312

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