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A importância instrumental da sindicabilidade do serviço público prestado pelo poder judiciário no sopesamento dos direitos transindividuais

The instrumental importance of judicial stewardship as a public service aiming collective rights on balance

Lorena Machado Rogedo Bastianetto(1); Beatriz Souza Costa(2)

1 Escola Superior Dom Helder Câmara/BH, Mestranda em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável pela Escola Superior Dom Helder Câmara/BH. Atualmente, é advogada. E-mail: [email protected]

2 Escola Superior Dom Helder Câmara/BH, Possui Mestrado em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) 2003, e Doutorado em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) 2008. Professora da disciplina de Direito Constitucional Ambiental, da Escola Superior Dom Helder Câmara. Possui 10 orientações, no mestrado, concluídas. E-mail: [email protected]

Resumo

Este trabalho concentra seus esforços na análise do Recurso Extraordinário de n. 586.224/SP, com repercussão geral reconhecida e acórdão proferido no ano de 2015 com o objetivo de investigar toda a malha principiológica e legislativa suscitada na sentença colegiada para a fundamentação e elaboração da persuasão magistral. O embasamento do Supremo Tribunal Federal (STF) para a ideação expressa nos votos é a porta de entrada para a investigação de toda a metodologia e parâmetros lançados mão na formação do convencimento dos ministros, bem como das possíveis disfunções e vícios na intelectividade do pensamento. Como porta de saída, o artigo revela alternativas instrumentais para uma melhor gestão do mérito por meio do procedimento visando a um serviço público judicial mais protetivo, bem como aponta a periculosidade do adimplemento conteudista de princípios sem uma vivaz averiguação dos pilares múltiplos de participatividade cidadã. No desfecho, desborda-se o imperativo protagonismo da coletividade na produção da norma judicial e a relevância da ótica de gerenciamento processual.

Palavras-chave: Direitos Transindividuais. Instrumentalidade. Jurisprudência. Serviço Público Judicial. Sindicabilidade.

Abstract

This paper focuses on the analysis of an Appeal to the Brazilian Supreme Court, RE # 586.224/SP, with acknowledged general interest and judgement published in the year of 2015. The main goal is investigate all the principles and legal diplomas arisen in the sentence claimed as grounds for its reasoning. The Supreme Court`s ground for sentencing was examined for the proper identification of parameters, methodologies and approach taken into account, as well as possible faults and vices in the construction of votes. The article aims to reveal alternative ways to file petitions and motions, what could lead to a better balance of rights and thus, to an enhancement of judicial guardianship. In conclusion, the comprehension of judicial activism must embrace citizenship and the awareness by the community of the relevance carried by an effective procedure management, as well as the fluidity of conceptual thesis about fundamental rights.

Keywords: Collective Rights. Instrumentality. Judicial Public Service. Jurisprudence. Stewardship.

1 Introdução

Os direitos de novíssima dimensão,1 realizados na concepção do meio ambiente ecologicamente equilibrado,2 assim como os atinentes à liberdade do cidadão em face do Estado, bem como à atuação positiva deste para o bem-estar social, encontram notável salvaguarda no Poder Judiciário, o qual, além de manifestar-se por meio de um direito fundamental inafastável,3 consubstancia-se mediante a garantia de sindicabilidade dos atos da Administração Pública.

O Princípio da Sindicabilidade desborda farta constitucionalização, já que não deve ser compreendido apenas sob o enfoque de controle da atividade administrativa, seja esta via edição de atos administrativos vinculados ou discricionários ou por meio da prestação de serviços públicos. O controle dos atos políticos dos poderes em seus três níveis de cooperação – União, Estados/DF e Municípios – bem como dos órgãos a esses pertencentes, seja qual for sua atuação, é mecanismo inerente do Estado Constitucional, o qual se operacionaliza pela forma federativa de estado e republicana de governo.

A Federação brasileira, aliança desprovida da prerrogativa de retirada,4 deve ser concebida como uma federação de segundo grau,5 praticante de um modelo cooperativo.6 A existência de uma estruturação tríplice do Estado, representada pela união de quatro entes, dentre os quais dois se assemelham – Estados e Distrito Federal –, traduz autonomia política e administrativa para todos os envolvidos, em acordo com os parâmetros da Constituição da República de 1988 (CR/1988). Tal fato implica a competência do tripé não só de execução de políticas públicas, mas da elaboração e cosedura destas em harmonização com a aliança federativa, sempre com balizas no sistema de freios e contrapesos em relação a tudo que se insira na dominialidade pública.

Isto posto, a inferência do Poder Judiciário nos demais Poderes, crucial no desiderato de personalização da ordem normativa em detrimento da infirmação do patrimônio em si mesmo considerado, é uma realidade de protagonismo sem reversão. O Estado-juiz, que não é legislador e nem administrador, munido do poder-dever de resguardar, primacialmente, a conformidade da dimensão objetiva dos direitos fundamentais,7 imbuiu-se do papel de apreciação jurídica de toda a universalidade de direito de ordem pública, dado que sinaliza a magnitude do ótimo manejo da instrumentalidade no impulso de atuação desse poder.

Portanto, a profusão de mecanismos provocativos de pronunciamentos jurisdicionais, ou melhor, a riqueza de vias para incitar a sindicabilidade judicial, denuncia a necessidade do cidadão per si ou metaindividualizado de averiguação do melhor critério para se obter a norma criativa protetiva. Veja-se que não se trata, de forma alguma, neste texto, do consumo manipulativo desse serviço público, mas na constatação de que, para o êxito na defesa de interesses locais, a população deve considerar que o grande número de insucessos na tutela de direitos advém de poucas causas. Esse mandamento, intitulado Princípio de Pareto (KOCH, 2000) em matéria de gestão, desborda que o método lançado mão para o encorajamento do Poder Judiciário talvez seja mais importante do que a questão meritória para a obtenção de uma melhor curadoria.

Alicerçando-se em um caso levado à corte constitucional brasileira de pertinência temática inquestionável ao meio ambiente em todas as suas vertentes – natural, artificial, cultural e do trabalho –, o presente texto focalizará seu labor na investigação dos sistemas processuais com maior poder de sensibilização do Poder Judiciário, bem como na consistência principiológica e metodológica da argumentação decisória. Essa perspectiva disciplinar, de menor cadência do que a inteligência material dos litígios, é hábil a disparar uma sindicabilidade de maior entusiasmo judicial. Como resultado, a identificação da gestão competente do processo e seu elo com a transmudação do embasamento decisório magistral será aquilatada.

2 O Recurso Extraordinário de nº 586.224

O RE nº 586.224/SP, o qual teve repercussão geral reconhecida e acórdão publicado em maio de 2015 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), refere-se a uma demanda originada no estado paulista. Trata-se, no seu exórdio, de uma representação de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça de São Paulo por parte do Sindicato da indústria da Fabricação de Álcool do Estado de São Paulo (SIFAES) e do Sindicato da Indústria de Açúcar no Estado de São Paulo (SIAESP) em face de lei municipal emanada pelo município de Paulínia/SP, Lei no 1.952/1995, a qual vedava, expressamente, o emprego de fogo para fins de limpeza e preparo do solo, inclusive para fins de plantio e para a colheita de cana-de-açúcar e outras culturas em seu território.8

O Tribunal de Justiça do Estado julgou improcedente o pedido, fundamentando-se no argumento de que a técnica de queima da palha de cana é precária, sendo imperiosa a imediata mecanização, expediente que protegeria enormemente o meio ambiente e a saúde dos trabalhadores envolvidos no processo. A decisão reconheceu, explicitamente, a competência municipal para legislar sobre o assunto.

Ato contínuo, o Estado de São Paulo interpôs recurso extraordinário, arrazoando-se na competência federativa estabelecida pela CR/1988. Nesta, o art. 24, inciso VI,9 confere poder concorrente entre União, Estados e Distrito Federal – leia-se: excisão do ente municipal – para a atividade legiferante sobre proteção do meio ambiente e controle da poluição; e em sistematização com o art. 30, incisos I e II,10 poder-se-ia depreender que a capacidade legislativa municipal sofre limitação material, pertinência ao interesse local, e formal, natureza suplementar à legislatura da União e dos Estados.

Importante a menção de que essa competência suplementar, asseverada no art. 30, inciso II da CR/1988, poder-se-ia materializar em dúplice aspecto: o primeiro, pela competência suplementar complementar, a mais manifesta, ou seja, o Município é competente para legislar apenas em complementação às leis federais e estaduais já existentes; o derradeiro, por meio da competência suplementar supletiva, quer dizer, o Município, em questões de interesse local, caso inexista legislação federal e estadual sobre o assunto, estaria apto a exercer competência legislativa plena até que normas gerais e específicas surgissem em âmbito federal e estadual.

Faz-se essencial salientar que o termo lançado mão no art. 30, inciso I da CR/1988, diga-se, aptidão para a legislatura em assuntos de interesse local, diverge do significante “peculiar interesse”, presente nas Constituições de 1891,11 1934,12 1937,13 194614 e 1967.15 Acredita-se que o poder constituinte originário de 1988 optou por uma nomenclatura mais ampla, dilatada. Em dissonância ao pensamento de Temer (2014), o qual declara que ambas as locuções assumem o mesmo significado com o sentido de “interesse predominante”, crê-se que o interesse local, bem como o “predominante” ou “peculiar” partilham o traço de não se restringirem somente à zona municipal, mas se desagregam pelo primeiro estar apto a ilustrar situações nas quais a Constituição previu maior domínio normatizador às demais unidades da República, sem, no entanto, infirmar a possibilidade de insurgência dos munícipes quanto à relevância, para certa localidade, da temática em tela. Caso se faça uma rasa análise do enquadramento local dos fenômenos sociais, estes sempre dar-se-ão nos municípios, palco das relações humanas, onde a vida se engendra e se efervesce.16 Dita constatação exorta, de forma perene, o realce maior dos municípios em matéria de interesse.

Desse modo, o “interesse local” explícito no dispositivo constitucional, repita-se, art. 30, inciso I da CR/1988, em acepção neoconstitucionalista,17 possui uma carga valorativa que remonta aos direitos das pessoas humanas, mais precisamente dos munícipes ou brasilienses, segundo a realidade brasileira. Apontando Dromi (1997), a elaboração de constituições vindouras e a hermenêutica das já em vigor devem seguir, primacialmente, a qualidade da verdade, participação e solidariedade, formando o que o autor designou da Constituição do “por vir”. Todos esses atributos têm moradia dominante na menor partícula de convivência da Federação, a comuna, e, pragmaticamente, o interesse local será definido pelos habitantes da região sob perspectiva, que divergirá enormemente em cotejo com o de outras localidades no espaço nacional.

Dito isto, durante o pronunciamento do relator no RE citado, Ministro Luiz Fux, revela-se a existência de lei estadual reguladora da mesma matéria, a Lei no 11.241/2002,18 a qual dispõe sobre a eliminação do uso do fogo nas atividades canavieiras, mas de forma paulatina, planejada e não abrupta e instantânea como na regulação de Paulínia. Entretanto, frisa-se que o regimento paulista foi produzido sete anos após a lei municipal, dado manifesto do desempenho da atividade legiferante municipal suplementar supletiva, ou seja, o ente municipal legislou sem que houvesse qualquer normatização tanto em âmbito estadual quanto federal.

Em 1995, ano da edição da Lei de Paulínia, o Código Florestal vigente era a Lei no 4.771/1965, a qual, em seu art. 27,19 estabelecia como regra geral a inadmissão do fogo em vegetações. Além disso, a Constituição do Estado de São Paulo de 1989, preexistente à norma da cidade, corrobora com veemência o exercício de políticas públicas estaduais e municipais para a preservação da Biota.20

Dessarte, a Lei Municipal no 1.952/1995, em estrita conformidade com o poder originário e o poder derivado decorrente, emanou um estatuto em plena harmonia com ambos, bem como em simetria aos princípios constitucionais sensíveis, estabelecidos e extensíveis,21 exercendo competência legislativa suplementar supletiva, ou seja, plena, já que não havia, àquele tempo, decreto regulamentar do art. 27 do Código Florestal, já citado, e nem qualquer lei em âmbito estadual, fruto das diretivas da Constituição Estadual paulista de 1989 que abarcasse a matéria.

Cumpre-se sublinhar que, ao tempo da lide em questão, a lei paulista já havia há muito emanado na ordenação do ente, precisamente no ano de 2002, estando em consonância com o atual Código Florestal, Lei no 12.651/2012, o qual, em seu art. 40,22 estatui que o Governo Federal deverá elaborar uma política de manejo e controle de queimadas. O Estado de São Paulo, claramente, cumpriu seu encargo no estabelecimento legal de uma política estadual de substituição paulatina no emprego do fogo como método despalhador e facilitador do corte de cana, em conformidade com o Decreto no 2.661/9823 e a Portaria no 345/9924 do Ministério do Meio Ambiente, regentes da Política Nacional de Manejo e Controle de Queimadas.

Desse modo, a pedra de toque nessa contenda reside na aferição da compatibilidade da legislação paulinense de 1995 com as emanadas a posteriori pelo estado a qual pertence, bem como com a presente regulação florestal federal.

O voto do relator, em estrita conformidade com o munus ativista e participativo na criação da decisão, oportunizou aos mais diversos órgãos e entidades, ligados ao objeto meritório, a efetividade da ingerência na construção do convencimento do juízo constitucional. Segundo os ensinamentos de Tocqueville (2002), percebe-se que o juiz deve ser concebido, eminentemente, uma força política, pujança voltada ao recrudescimento das diretivas e princípios constitucionais.

Foram-se extensamente ponderados tanto os aspectos contaminatórios e poluidores do fogo quanto a possibilidade prática da substituição deste pela mecanização, com foco especial nos custos, efeitos ambientais e nas consequências sociais dessa transferência. Multisciente, Fux concentrou suas razões nos impactos sociais dessa permuta técnica, diga-se, a recolocação dos trabalhadores rurais no mercado canavieiro ou em outra atividade laboral que poderia absorvê-los. Destaca-se que a Constituição da República oferece ampla guarida a um leque de direitos fundamentais, dentre os quais a vida, a liberdade e a saúde25 seriam, prima facie, condicionantes e precursores ao direito ao trabalho. Todavia, esse discernimento não estaria propriamente acertado. Segundo dados do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento),26 a avaliação multidimensional da pobreza é indispensável para a estimativa das condições mínimas para a manutenção da vida humana. Criou-se um indicador, denominado IPM (Índice de Pobreza Multidimensional), o qual, por meio da avaliação de uma série de fatores como longevidade, acesso a educação e renda, culmina-se no desfecho de que o trabalho, o exercício efetivo de atividade laboral ou, mais precisamente, o emprego, é premissa medular para a manutenção da vida.27

O Pós-positivismo,28 contudo, deve compreender a manutenção da vida não como a postergação do óbito ou a mera existência, mas como a capacidade da pessoa humana de fazer escolhas. O Papa Pio XI, em 1931, em comemoração ao aniversário da encíclica Rerum Novarum, escrita por Leão XIII, já pontificava o preceito de que: “[...] Mas não podemos passar em silêncio outro ponto de não menor importância e grandemente necessário nos nossos tempos, e é, que todos os que têm vontade e forças, possam encontrar trabalho.”29

Desse modo, encontrar trabalho deve ser uma escolha para o exercício pleno da vida, para a obtenção da saúde, alimentação, moradia, educação, lazer, enfim, para o atingimento da cidadania.

O Ministro relator profere sua decisão arrazoando-se na desproporção entre a legislação municipal, de eliminação imediata do uso do fogo na atividade agropastoril, e as legislações estadual e federal, as quais objetivam a proscrição de utilização dessa técnica, mas em progressividade ritmada. Arrimando-se na solução de menor onerosidade ao cidadão, declara a inconstitucionalidade da lei paulinense de 1995. Sua fundamentação foi seguida pela maioria dos membros da Corte Constitucional, tendo o acórdão um importante voto divergente de autoria da Ministra Rosa Weber, que entendeu que a restrição dos parâmetros legais da órbita federal e estadual pelo município é consetânea ao federalismo cooperativo e à competência política em três níveis atinente ao meio ambiente. O alargamento não se faria exequível, mas o afunilamento do programa de eliminação do fogo é matéria legislativa de interesse local das cidades, concertada na região em epígrafe.

No desfecho do voto, acentua-se uma importante matéria de competência federativa, congraçada por todo o STF: o município é competente para legislar juntamente com o Estado e a União em matéria de meio ambiente, desde que atendidos os seguintes requisitos materiais: interesse local em harmonia com a legislação dos demais entes federados.

De todo o exposto, é a partir dessa asserção colegiada que se iniciam as considerações a respeito da instrumentalidade na provocação judicial e uma possível inversão de cenários quanto à proclamada inconstitucionalidade da Lei de Paulínia.

3 A gerência provocativa do Poder Judiciário

A relevância do RE nº 586.224/SP concentra-se no fato de que a inconstitucionalidade declarada da Lei Municipal no 1.952/1995 de Paulínia contrapõe-se à maior questão jurídica constitucional erguida: competência legislativa municipal na matéria.

Perceba-se que o STF reconheceu competência legislativa plena em matéria ambiental ao município – não somente suplementar –, desde que essa plenitude esteja em sincronia com a normatização do Estado e União e seja de interesse da comunidade local. Ao mesmo tempo, proferiu a inconstitucionalidade da lei paulinense, a qual exprimiu seu interesse local em extirpar o fogo na cultura agrícola e não foi recalcitrante às demais legislações, já que visou à eliminação da técnica de queimada na atividade. A única divergência entre as legislações das três esferas é o modus operandi dessa supressão.

Vê-se que o manejo de conceitos abertos, como “interesse local” e “harmonia”, instaura múltiplas possibilidades decisórias, cujo sucesso depende integralmente da gerência provocativa da judicialidade da política pública.

A criação do acórdão contou com a expertise de diversas instituições ligadas à matéria, como Embrapa, COAGRO, ORPLANA, UNIDA, Esalq/USP, ASCANA, Ministério do Trabalho, INPE, SIDAÇÚCAR, ASSOMOGI – todas muito bem aptas a opinar e influenciar a persuasão do juízo, mas nota-se a ausência do chamamento pelo Tribunal constitucional ou mesmo da iniciativa de manifestação de associações representativas da população de Paulínia ou de Campinas, cidade com a qual forma uma macrorregião.

Não houve empenho do Sindicato Rural de Campinas30 ou da Associação dos Moradores e Amigos de Paulínia (AMAPAULINIA) ou de Conselhos Municipais Ambientais da cidade ou da região, nem mesmo pronunciamento do próprio município ou macrorregião por meio de suas secretarias de desenvolvimento social, defesa e desenvolvimento do meio ambiente,31 bem como do SINE,32 o qual poderia prover estatísticas robustas em relação ao impacto da proibição legislativa no emprego e renda.

Toda a construção colegiada baseou-se em órgãos e instituições de abrangência muito mais alargada, os quais, repita-se, devem ter sua expressão em juízo asseveradas, mas sem olvidar-se da convocação de organizações civis e órgãos públicos locais, os quais sinalizariam com precisão os interesses regionais daquela municipalidade.

O preenchimento do conceito de “harmonia legislativa” mostrou-se despovoado pelos habitantes de Paulínia e região e foi preenchido com determinantes muito mais intelectuais do que volitivas, de inclinação daquela comunidade. Observa-se que o tecnicismo que envolve a disciplina in casu, bem como o estudo estatístico do abalo legislativo municipal, tanto para o ente menor como para os demais, apresentou sobrelevada relevância na ideação e comoção magistral em detrimento da perspectiva cidadã municipal. Alevantou-se os direitos da pessoa humana, em especial o direito social do trabalho, bem como o Princípio da Proporcionalidade e a consagração do Abwägungsstaat,33 adimpliu-se uma consonância bastante densa e vigorosa aos ditames constitucionais, sem, no entanto, consideração da opinião de maior tomo: a dos habitantes locais.

Na esteira de Benda (2007), essa arquitetura desvela uma traição dos intelectuais, os quais emanam, em suas razões, argumentos de robustez constitucional inquestionável, originários de premissas, no entanto, discutíveis, construídas sem o devido aquilatamento das forças hábeis a gerar sua estruturação.

Não se pretende, com estas considerações, afirmar que o Tribunal constitucional brasileiro pretendeu-se a qualquer sofisma. Ao contrário, crê-se que o Colegiado Magistral descurou-se da melhor avaliação na elaboração do decisum e descuidou-se do eixo democrático em prol da tecnocracia na sentença. Reitera-se que toda a busca pela ciência referente à proposição, proveniente de órgãos e entidades peritas na questão, foi empreendida com orientação verdadeiramente constitucional, com fincas no planejamento, na procura por ponderação entre meios e fins e na precaução do procedimento de transmudação de práticas há muito solidificadas. Todavia, não há como negar que houve falhas importantes nesse processo criativo.

O STF não versou, em igual maneira, a respeito da efetividade da lei paulinense desde sua entrada na ordem jurídica. Lembre-se de que a regulação antecede a Lei Paulista no 11.241/2002 sobre a disciplina, bem como o atual Código Florestal (Lei no 12.651/2012). Levantaram-se, no acórdão, dados de que, desde 2006, 11 anos após a edição da Lei Municipal, a substituição da técnica do cultivo de cana sem o uso do fogo cresceu enormemente, chegando, em 2011, a um patamar de 76,7% de toda a colheita sem sua utilização. Entrementes, não se avaliou se tal dado deveu-se à efetividade social da lei municipal há muito em pauta e à fiscalização por parte da Secretaria Municipal de Defesa e Desenvolvimento do Meio Ambiente, ou se tal evolução foi obra do programa legal estatal paulista, inaugurado em 2002, ou mesmo se resultado de um amadurecimento natural do setor quanto ao emprego da mecanização no canavial.

As origens do projeto de lei que culminou na aprovação da Lei de Paulínia tampouco foram aventadas. No Projeto de Lei Ordinária no 46,34 resta evidente que a propulsão legislativa partiu de recorrentes reclamações da comunidade local, fato que levou o autor do projeto, vereador Jurandir José Bonomi, a se debruçar sobre o tema, inclusive via reuniões com o Poder Judiciário e Ministério Público estaduais, os quais, segundo o relatório do vereador, encontravam-se, à época, plenamente de acordo com os propósitos traçados no Projeto.

Já o projeto de lei estadual,35 o qual resultou na edição da Lei no 11.241/2002, foi de iniciativa do governador do estado à época e atual, Geraldo Alckmin, o qual, em seu relatório, declara que o embasamento do Projeto fora a realização de estudos por parte da Secretaria Estadual do Meio Ambiente.

Sem desmerecimento da argúcia do órgão, bem como do levantamento dos indicadores que levaram à opção por um programa de supressão paulatina do fogo, a compreensão de que a reclamação popular, que se fez chegar à Câmara Municipal de Paulínia, não deve ser ignorada no preenchimento de um dos binômios explicitados no acórdão: o interesse local.

Nesse contexto, deve-se questionar se outras vias que não a reclamação popular ao Poder Legislativo com a consequente elaboração da vontade da comunidade em texto de lei alcançaria entendimento pro societate a favor do município.

A ação popular36 e a ação civil pública,37 meios provocativos do Poder Judiciário de ordem constitucional, constituem-se um instrumento de sindicabilidade do serviço público prestado pelo Poder Judiciário. Assim como o acesso à Justiça é um direito fundamental material de inafastabilidade da prestação de um pronunciamento judicial,38 as ações em relevo representam um direito fundamental instrumental a esse pronunciamento, juntamente com a ação de improbidade administrativa, a ação de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção.

A indagação a respeito dos meios mais expressivos para um destino exitoso pela parte interessada deve ser equacionada com rigor. Assim, caso a comunidade paulinense tivesse impulsionado o Poder Judiciário via ação popular na defesa do meio ambiente local ou o Ministério Público, plenamente em acordo com os termos do relatório do Projeto de Lei de nº 46 do município em voga, houvesse intentado ação civil pública para a concessão da tutela específica de não fazer, isto é, a eliminação das queimadas nas regiões de cultura da cana na região, talvez não fosse necessária a intervenção do Poder Legislativo, comumente vista como uma atuação verticalizada e não como corolário de uma efetiva aspiração popular.

A ausência de atividade legislativa municipal, mas a efetiva atuação da população através de apenas um cidadão ou de um substituto processual seu, alcançaria um resultado próspero que inviabilizaria qualquer suscitamento de inconstitucionalidade.

A ação de inconstitucionalidade por omissão, cabível no caso, também seria alternativa bastante eficaz, haja vista que a Constituição Estadual Paulista de 1989 traçou, em seu art. 193, inciso I,39 o dever de criação de uma política protetiva do meio ambiente, sendo que, em 1995, ano da publicação da Lei Municipal sobre a eliminação do fogo nas atividades agropastoris, nenhuma atividade estadual legal na matéria havia se implementado. Tivessem o chefe do Poder Executivo municipal, a mesa da Câmara paulinense ou as entidades de classe e sindicais municipais40 se mobilizado quanto à atuação estadual ambiental protetiva para balizar as políticas públicas da cidade de Paulínia, toda a movimentação do poder legiferante restaria preservada. Ato contínuo, vão seria qualquer questionamento de inconstitucionalidade da regulação municipal, uma vez que esta se alicerçaria em regulação estatal previamente inserta no mundo jurídico.

Cumpre-se citar as seguintes decisões, as quais tiveram origem pelas vias da democracia judicial participativa, quais sejam: o AgRg no REsp 1151540/SP 2009/0191197-4,41 o REsp 1520202/SP 2013/0341665-9,42 a ADI 3682/MT43 e o MI 1017/RS,44 sem a intermediação da democracia representativa, o Poder Legislativo. Referidas lides apresentaram sucesso exitoso para a coletividade, não só por exprimir um trato direto do cidadão com o Poder Judiciário, mas por operar instrumentos constitucionais nobres de peticionamento do juízo.

4 Considerações finais

A agenda do STF, protetor maior do Direito Constitucional, sem sombra de dúvida, esmera-se em propiciar sentido às normas constitucionais, infirmando o que Neves (2007, p. 90-101) cunhou de “hipertrofia da função político-simbólica em relação à eficácia normativo-jurídica da Constituição”.

Contudo, há que devotar-se a uma investigação crítica dos pilares que corporificam o sentido normativo das proposições e axiomas propalados na Lei Fundamental. Esses pilares sustentarão ou fragmentarão a lucidez da solução de qualquer conflito em sua tríplice ótica: conflito de interesses, conflito de valores e conflito de identidades.

Ao apreciar qualquer questão, especialmente de repercussão geral, como o RE 586.224/SP, a Corte Constitucional deve reavivar a eminência da metodologia na formatação dos parâmetros, indicadores, referenciais e critérios para alinhavar com equilíbrio a fundamentação meritória. As partes envolvidas e a coletividade devem, em igual maneira, inteirar-se a respeito da melhor gestão instrumental para o pedido em juízo, bem como pleitear, vividamente, sua acolhida no processo.

O ativismo judicial não se configura apenas em protagonismo magistral, ou seja, é um fenômeno que demanda grande engajamento dos envolvidos na causa, mesmo que reflexamente ou até daqueles sem interesse nessa. O impulso oficial do processo, bem como o Princípio do Dispositivo muito pouco oferecem ao cidadão se ele não fomentar, alimentar, incentivar e reivindicar sua cooperação constante e eficaz para a cosedura da norma judicial. Há que rememorar que todas as decisões sub judice no Pós-positivismo lidam com direitos da pessoa humana. À centralização principiológica das lides cumpre-se, obrigatoriamente, o avultamento de raízes metodológicas profundas.

Não há espaço para “perfumaria” no constitucionalismo do futuro ou da verdade, ou seja, a externalização da principiologia constitucional nas decisões judiciais, desprovida do estabelecimento claro e acessível do conteúdo desses mandados, bem como dos critérios e procedimentos lançados mão para se chegar ao significado efetivo e atual das matérias de interesse público sub judice, nada mais é do que a formatação de um cenário de debates sem enredo ou com uma pseudossubstância, sem expediente à sociedade que se serve do serviço público de sindicabilidade.

A maior essência de um tribunal que pondera, arrazoa, mede e estabelece proporções entre direitos constitucionais a todo tempo é a contínua tentativa de distanciamento das consequências deletérias que uma criação jurídica pode gerar. Esse empreendimento só é atingido com a estruturação íntegra dos mecanismos e bases de construção dos conteúdos e atributos da temática pública em questão, assim como com a publicidade das ferramentas e recursos que levaram a jurisdição à compreensão exarada em suas decisões. São esses os alicerces de uma sindicabilidade responsável impulsionada pela sociedade, pelo Poder Público e pelo próprio Poder Judiciário, os quais inibem a produção normativa concreta de forma temerária, precipitada ou superficial.

A acumulação do que Rees (2014) chamou de surplus people no mundo é uma causalidade fática e também jurídica, pois o Direito, especialmente o jurisprudencial, no contexto neoconstitucional, lida com conceitos etéreos, princípios solenes, direitos inalienáveis e de núcleo duro, arranjo esse propiciador de uma vacina ou antídoto, assim como de venenos legais. Esses venenos convertem-se em uma aglomeração de pessoas que buscaram o Poder Judiciário para, mesmo em posição contramajoritária, usufruir de seus direitos e, ao demandar sua tutela, viram-se expostos à mesma aspereza de seus cotidianos pela ordem representativa constitucional. Formam uma multidão que mal logra ingresso ao Judiciário e, ao adentrar, é arremesada pelas janelas.

Referências

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[Received/Recebido: Jan. 21, 2016; Accepted/Aceito: Dez. 28, 2016]

DOI: https://doi.org/10.18256/2238-0604.2017.v13i3.1104

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