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Constituição, absolutismo e liberalismo.
Um retrato da magistratura imperial em
O juiz de paz na roça, de Martins Pena1

André Karam Trindade

Doutor em Teoria e Filosofia do Direito (ROMA TRE/ITÁLIA). Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da IMED.
Coordenador do KATHÁRSIS – Centro de Estudos em Direito e Literatura da IMED.
Presidente da Rede Brasileira Direito e Literatura (RDL). Editor da Coleção “Diante da Lei” (Ed. Livraria do Advogado).
Produtor Executivo do Programa “Direito & Literatura” (TV UNISINOS e TV JUSTIÇA). Advogado.
E-mail: <[email protected]>.

Luis Rosenfield

Mestre em Direito (IMED). Secretário Executivo da Rede Brasileira Direito e Literatura (RDL),
Editor Executivo da ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura e Membro
do KATHÁRSIS – Centro de Estudos em Direito e Literatura da IMED.
E-mail: <[email protected]>.

Júlia Marmentini Calgaro

Graduanda em Direito (IMED). Bolsista de Iniciação Científica da FAPERGS. Membro do KATHÁRSIS –
Centro de Estudos em Direito e Literatura da IMED.
E-mail: <[email protected]>.

Resumo

Com base nos aportes teóricos e metodológicos dos estudos de Direito e Literatura, o presente artigo analisa a representação do magistrado na obra O juiz de paz na roça, escrita em 1833, por Luís Carlos Martins Pena (1815-1848), a fim de identificar o lugar da Constituição e o papel da magistratura durante o período imperial. Isso porque essa conhecida peça teatral desnuda as tensões da época e, sobretudo, o paradoxo verificado na Carta de 1824 entre absolutismo e liberalismo. Além disso, a literatura exsurge como uma potente aliada tanto para a construção da identidade nacional quanto para a compreensão da realidade social, revelando (a) a débil formação jurídica do Brasil do século XIX, (b) a corrupção sistêmica e oficializada da nascente magistratura nacional, (c) o desconhecimento do povo acerca da Constituição e, de um modo geral, em relação ao próprio Direito, e, por fim, (d) os traços distintivos do que é comumente chamado de constitucionalismo imperial.

Palavras-chave: Direito e Literatura. Martins Pena. O juiz de paz na roça. Constituição Imperial. Magistratura.

1 Introdução

Os estudos em Direito e Literatura apresentam-se como excelentes alternativas para repensar as questões relativas aos problemas jurídicos e sociais que atravessam as sociedades contemporâneas. Isso porque, como as sabe, as obras literárias têm a capacidade de proporcionar um des-condicionamento no olhar dos juristas (TRINDADE; GUBERT, 2008).

Como se sabe, o desenvolvimento dessa linha de estudo interdisciplinar ainda é bastante recente no Brasil, diferentemente do que acontece nos meios acadêmicos da Europa e dos Estados Unidos, onde tais pesquisas vem sendo realizadas desde o início do século XX (TRINDADE; GUBERT, 2008, p. 15-50).

A distinção metodológica mais conhecida em Direito e Literatura pode ser apresentada por meio detrês categorias distintas: (a) Direito na literatura (Law in literature), corrente que estuda como se manifestam e como são representados os fenômenos jurídicos no interior de obras literárias; (b) Direito como Literatura (Law as literature), linha em que são analisadas as qualidades literárias do direito, examinando-se os textos e discursos jurídicos como literatura; (c) e, por último, o Direito da literatura (Law of literature), categoria que estuda as disciplinas de direito privado ligadas à regulamentação jurídica do meio literário (POSNER, 2008).

A presente pesquisa está enquadrada na linha de investigação em Direito na Literatura, possivelmente a mais profícua vertente das pesquisas jusliterárias, na qual se investiga de que modo os fenômenos jurídicos e as grandes questões ligadas à justiça são retratados pelas narrativas literárias ao longo da história. Tal corrente parte da premissa de que certas narrativas literárias são mais importantes para o estudo do direito do que grande parte dos tratados e manuais. Isso porque a literatura exsurge como um verdadeiro repositório de fontes para a reflexão crítica do direito. Além disso, serve como importante instrumento mediante o qual ocorre o registro histórico dos valores de um determinado lugar ou época, na medida em que suas representações do poder, da lei e da justiça, por exemplo, também conformam o imaginário coletivo e social (OST, 2005).

Nas últimas décadas, para Mittica (2015, presenciou-se uma verdadeira “renascença” dos estudos em Direito e Literatura, munindo esse gênero de análise interdisciplinar de elaborada estrutura metodológica. Esse amadurecimento proporcionou o surgimento de concepções bastante originais quanto ao papel da pesquisa jusliterária. Dentre essas vertentes, descata-se a “crítica literária do direito” (literary critiscims of law), que coloca a literatura como instrumento privilegiado de reflexão em torno da hermenêutica, da narratividade, da retórica e da linguagem, assim desvelando superfícies esquecidas da realidade e o lado obscuro e violento do Direito (BINDER; WEISBERG, 2001, p. 25)

A partir dessa linha crítica de investigação, propõe-se a reflexão sobre as tensões entre absolutismo e liberalismo na Constituição Imperial brasileira a partir da peça O juiz de paz, de Luís Carlos Martins Pena, escrita na primeira metade do século XIX. Essa curta cométida teatral retrata de modo visceral as engrenagens de funcionamento da magistratura brasileira no interior do Brasil no momento imediatamente posterior à proclamação da Independência. Martins Pena fornece um retrato caricato da figura do juiz de paz daquele momento histórico. Sua comédia oferece valiosos elementos para vislumbramos a primeira magistratura legitimamente brasileira. A construção dos “modelos de juiz” (modèles du juge) na contemporaneidade, de François Ost (2007), é uma das inspirações essa incursão na representação da magistratura brasileira no século XIX (STRECK; TRINDADE, 2015).

A intenção é recolocar em contexto o discurso político e jurídico de uma determinada época a partir da literatura. Nesse ponto, interpretar a dramaturgia da época imperial brasileira significa recontextualizar esses discursos de poder de acordo com a realidade social e humana proporcionados na peça teatral. Com isso, busca-se a criação de um “tecido de sentido” sobre um direito antigo, praticamente esquecido e ainda pouco estudado. A narratividade das relações humanas, políticas e jurídicas expostas na peça teatral expressam de modo preciso os maneirismos comportamentais da roça e, o mais importante, a ordem simbólica do direito durante o Império (MITTICA, 2010).

2 Crítica social e jurídica em O juiz de paz na roça, de Martins Pena

Luís Carlos Martins Pena (1815-1848) foi um dos principais dramaturgos do Brasil Império e o fundador da chamada comédia de costumes. Sua intensa atuação profissional – que englobava o estudo de literatura, teatro, desenho, história, línguas, arquitetura e música – também envolveu o exercício de cargo público no Ministério dos Negócios Estrangeiros do Império, fruto de sua vocação para o comércio. Sua atuação pioneira no campo do teatro lhe rendeu reconhecimento póstumo, especialmente por ter trabalhado intensamente pelo estabelecimento de uma dramaturgia genuinamente brasileira num momento de construção da literatura nacional.

Prova disso fica por conta de Aluísio de Azevedo ter escolhido Martins Pena como o patrono de sua cadeira de Imortal quando da fundação da Academia Brasileira de Letras ao final do século XIX. Chegou a ser chamado, possivelmente com exagero, de o Molière brasileiro. A vida do jovem dramaturgo foi abreviada por complicações decorrentes da tuberculose, vindo a falecer com apenas trinta e três anos de idade (MARTINS, 1977, p. 231-275).

Seu teatro possuía forte conteúdo social e caráter contestador (MARTINS, 1977, p. 243-245). Sua principal preocupação estava direcionada para a execução das peças teatrais, e não na estética do trabalho escrito. A linguagem e os recursos cênicos utilizados foram aperfeiçoados com vistas à eficácia dramática – e não propriamente literária –, pois Martins Pena contava com o impacto que a experiência teatral causava no grande público. O teatrólogo evitava o tradicional teatro palavroso, típico da tradição lusitana, optando por estabelecer diálogos curtos e direitos, o que representou uma inovação para a época (ARÊAS, 2007, p. 10).

Em parte significativa de sua obra é narrada a vida cotidiana na roça, com a descrição das relações sociais camponesas, desde a celebração de casamentos até a descrição de casos de corrupção das instituições. Suas personagens são figuras como juízes, homens bêbados, funcionários públicos, malandros, camponeses, entre outros. As descrições da vida cotidiana no campo são extremamente realistas – ao mesmo tempo que cruéis – o que lhe rendeu o esquecimento por longo período por parte das elites nacionais, que não suportavam enxergar seu escrutínio dos males da sociedade brasileira e da exploração a que era submetido o povo. De forma pioneira, temas sensíveis como a escravidão e a pobreza extrema eram abordados livremente. Somente perto do final do século XIX é que sua obra começa a ser apreciada pelo grande público e cultuada como uma fiel representação dos costumes do Brasil Império (MARTINS, 1977, p. 244).

A peça O juiz de paz na roça foi escrita em 1833, mas somente veio a ser encenada pela primeira vez em 4 de outubro de 1838. A crítica às instituições judiciárias é apenas um dos elementos do enredo, que se caracteriza por uma multiplicidade de episódios, na qual o escritor se vale do humor para pintar um retrato vívido da sociedade brasileira. Diversos elementos nos proporcionam uma releitura sobre os hábitos da sociedade, como, por exemplo, a sátira aos costumes sociais, a crítica aos métodos de alistamento, a análise da psicologia das classes populares e a descrença nas instituições e no direito (MARTINS, 1977, p. 243-246).

Ao juiz de paz não é dado nome em momento algum da peça. Martins Pena constrói a personagem com contornos pitorescos, cujas principais características é a ignorância jurídica e o arbítrio no exercício da função pública de magistrado. A comédia contém duas histórias que no decorrer da peça se encontram, se entrelaçam e se complementam. Em um primeiro plano, há o romance de Aninha, filha de um casal de camponeses, com José da Fonseca. De outro lado, é retratado o caricato cotidiano do juiz de paz no ambiente da roça (MARTINS, 1977, p. 245).

Logo no início da peça é constatada a penúria da vida na roça e são constantes as reclamações nas conversas entre Manuel João, um lavrador, e Maria da Rosa, sua esposa, sobre a falta de comida suficiente para o sustento da família. Nesse ambiente de pobreza, a ambição de Manuel João é ter dinheiro o suficiente para casar a filha e comprar uma escrava para ela. Contudo, naquele momento Manuel João sequer consegue alimentar de modo digno o seu escravo negro.

Aninha e José da Fonseca, seu amante, vivem um caso de amor escondido de seus pais. Os amantes desejam se casar e fugir da precariedade da vida no campo, nem que isso signifique romper com poder familiar e fugir para a Corte, recém instalada no Rio de Janeiro, na busca de uma vida melhor. José da Fonseca acredita que conseguiria arranjar um emprego na polícia e, desse modo, proporcionar uma vida digna para sua amada. A Corte é enxergada a partir de uma perspectiva lúdica, como um lugar perfeito para que conta com inúmeros espaços para diversão, como teatros e circos.

A estória segue até o momento em que o escrivão bate à porta com uma intimação assinada pelo juiz de paz endereçada ao pai de Aninha. Através deste documento, é dada a incumbência a Manuel João de levar um recruta até a cidade mais próxima para lutar na guerra – em clara referência ao contexto de Guerra dos Farrapos em andamento no Sul do país –, pois o conflito desafiava frontalmente a unidade territorial do Império. Manuel João esboça indignação com a convocação, porém acaba concordando com as instruções do escrivão, que ameaça prendê-lo em caso de desobediência.

No decorrer do dia, o juiz de paz atende a vários casos, fazendo uso de suas atribuições. Ao final do expediente, Manuel João finalmente chega na casa do juiz de paz, mas como já é tarde demais para levar o recruta até a cidade, e não existem há cadeia no povoado, este acaba sendo conduzido para a casa de Manuel João, por sugestão do próprio juiz de paz. Manuel João, então, vê-se obrigado a conduzir o prisioneiro para seu lar.

Para a surpresa de Aninha, o recruta era o próprio José da Fonseca, seu amante. O rapaz é confinado em um quarto da casa da família. Contudo, diante da aflição de ver José Fonseca na iminência de servir ao Exército nas violentas guerras do Sul, Aninha o destranca de seu cativeiro e ambos fogem, com a intenção de poderem, enfim, se casar.

Quando seus pais, alarmados, dão por conta da falta de José da Fonseca, Aninha aparece junto de seu novo marido e conta todo o ocorrido. Após deliberação, a família decide que o que resta a fazer é ir até a casa do juiz de paz para convencer o magistrado de livrar José Fonseca da obrigação de alistamento militar – visto que José da Fonseca, agora, é um homem casado –, e, portanto, não mais se enquadra na legislação imperial de alistamento militar compulsório. O juiz de paz, ao se deparar com a mudança de panorama do caso, acaba por reconhecer a impossibilidade de obrigar João da Fonseca a servir como um soldado na guerra e, inclusive, cede sua casa para a comemoração do casamento.

Paralelamente a essa estória familiar, são descritos então os hábitos e trejeitos típicos de um juiz de paz no ambiente da roça. A personagem do magistrado veste calça branca, rodaque de riscado e chinelas verdes, dispensando o uso de gravata. Frequentemente são ofertados presentes e cortesias ao juiz de paz, como forma de agradá-lo. Essa situação é ilustrada de modo irônico e sarcástico na passagem em que o juiz de paz recebe um presente de um cidadão do vilarejo e uma carta com os seguintes dizeres:

Tomo a liberdade de mandar a V. Sa. um cacho de bananas-maçãs para V. Sa. comer com a boca e dar também a comer à Sra. Juíza e aos Srs. Juizinhos. V. Sa. há de reparar na insignificância do presente; porém, Ilmo. Sr., as reformas da Constituição permitem a cada um fazer o que quiser, e mesmo fazer presentes; ora, mandando assim as ditas reformas, V. Sa. fará o favor de aceitar as ditas bananas, que diz minha Teresa Ova serem muito boas. No mais, receba as ordens de quem é seu venerador e tem a honra de ser – Manuel André de Sapiruruca. (MARTINS PENA, 2007, p. 21).

Resta bastante clara a intenção de Martins Pena em mostrar o caráter explicitamente promíscuo do juiz de paz, que aceita regalias de um jurisdicionado. O mesmo Manuel André, em outra cena da peça, entra em juízo para requisitar ao juiz de paz dirimir controvérsia sobre questão de direito de propriedade. A resposta dada ao litígio pelo juiz de paz é que este não pode deferir o pedido pois está muito ocupado com uma plantação. Quando Manuel André se insurge com a pífia prestação jurisdicional, o juiz de paz ameaça prendê-lo:

Juiz

Você replica? Olhe que o mando para a cadeia

Manuel André

Vossa Senhoria não pode prender-me à toa; a Constituição não manda.

Juiz

A Constituição!... Está bem!... Eu, o Juiz de paz, hei por bem derrogar a Constituição! Sr. Escrivão, tome termo que a Constituição está derrogada, e mande-me prender este homem.

Manuel André

Isto é uma injustiça!

Juiz

Ainda fala? Suspendo-lhe as garantias...

(MARTINS PENA, 2007, p. 25).

O poder discricionário do juiz de paz é tamanho que ele chega a se apropriar do próprio texto constitucional. Esse posicionamento se funda em dois fatores principais: (i) no poder quase ilimitado a que eram investidos os juízes de paz e juízes de direito durante o Império; (ii) e na ausência de bacharéis de direito capazes de preencher todos os quadros da magistratura nacional, em grande medida pela ausência de faculdades de Direito no Brasil durante um longo período de tempo.

Esta peça de teatro de representa uma das raras representações literárias dos membros da magistratura na época do Império. A narrativa construída em O juiz de paz na roça utiliza da estrutura da comédia para mostrar os trejeitos típicos de um juiz que atuava nos longínquos rincões do Brasil imperial. Em certo sentido, o autor da peça denuncia o caráter muitas vezes autoritário da atuação judicial brasileira: o juiz de paz derroga a Constituição, suspende as garantias constitucionais de quem quer que ouse se insurgir contra suas decisões.

O juiz de paz construído por Martins Pena é um juiz iletrado, que não sabe despachar os requerimentos que chegam até seu gabinete, e sequer se envergonha disso. Ele é o reflexo da carência de profissionais qualificados para estruturar o aparato burocrático da nação.

Noutro trecho da obra, o juiz de paz aceita um leitão de presente das partes, quando na realidade era a posse do próprio animal que se encontrava em litígio, ou seja, Martins Pena retrata de modo bastante duro os atos de corrupção dos agentes estatais brasileiros desde o Império. Martins Pena denuncia com precisão certos vícios da magistratura que perduram até hoje, como a cultura de desrespeito à Carta Constitucional e a prática reiterada de corrupção na atividade jurisdicional.

Em O juiz de paz na roça vislumbram-se três características determinantes da magistratura no período imperial: o corporativismo elitista, a burocracia como forma de poder de construção nacional e a corrupção como prática oficializada (WOLKMER, 2002, p. 90-92). A representação elaborada por Martins Pena é uma síntese das contradições de uma nação que começava timidamente a se organizar e se autogovernar, ainda que de forma não-democrática. Esta curta peça de teatro apresenta a descrença do povo com seus magistrados – iletrados, subornáveis e autocráticos –, mesmo depois da outorga uma Constituição que, apesar seus vários defeitos, concedia direitos e garantias.

3 O juiz de paz e a débil formação de uma cultura jurídica no Brasil Império

O juiz de paz no Brasil Império era uma peça importante para a composição dos quadros da justiça brasileira, carente de funcionários com formação adequada para a magistratura. Essa característica é um reflexo de uma cultura jurídica débil e essencialmente atrelada à antiga metrópole colonial. Em uma época de poucas pessoas com formação condizente com o desempenha da magistratura, surgem os dois primeiros cursos de Direito no Brasil, em Olinda (posteriormente transferido para o Recife) e em São Paulo, nos quais a maioria do corpo docente era composta por professores portugueses. Devido à falta de bacharéis para preencher todos cargos da magistratura depois da Independência, e também pela inviabilidade em se enviar o número suficiente de estudantes para estudar no estrangeiro, o Decreto de 9 de janeiro de 1825 criou os cursos de Direito no Brasil (LIMA LOPES, 2013, p. 289).

Esses cursos serviram para gradualmente suprir a ausência de homens habilitados a exercer os cargos da justiça, até então ocupados por muitos juízes de paz, em especial nas profundas áreas do Brasil continental. As escolas de Direito no Brasil seguiram os moldes da Universidade de Coimbra, imitando seu ordenamento de estatutos e regulamentações. Essa nova elite intelectual e burocrática, forjada nas faculdades de Direito, tinha como objetivo principal a promoção dos interesses da Coroa, ainda que esse cenário comece a se alterar timidamente no decorrer do século XIX (LIMA LOPES, 2013, p. 289).

Contudo, ainda que essas medidas tenham sido tomadas, ainda se faziam imprescindíveis os juizados de paz. A instituição dos juízes de paz se dá através da Lei de 15 de outubro de 1827, regulamentando as disposições dos artigos 161 e 162 da Constituição Imperial de 1824. A Lei Orgânica das Justiças de Paz definia que em cada freguesia e paróquia haveria de ter um juiz de paz e um suplente, eleitos pelas Câmaras municipais ao mesmo tempo e da mesma forma que os Vereadores. Somente poderia desempenhar a função de juiz de paz quem também era eleitor: homens livres maiores de vinte e cinco anos (ou maiores de vinte e um quando casados, oficial militar, bacharel ou clérigo de ordem sacra) que comprovassem renda liquida anual superior a cem mil réis em bens (VIEIRA, 2002, p. 91-99).

Esse magistrado podia conciliar as partes e julgar as pequenas demandas cujo valor não ultrapassasse dezesseis mil réis. Era autorizado a fazer autos de corpo delito, interrogar e prender delinquentes e direcioná-los ao juiz competente. Além disso, possuía competência de cunho policial, como a de destruir e impedir a formação de quilombos.

Ao juiz de paz era atribuído um caráter descentralizador, representando o poder imperial nas mais distantes localidades do Império, atribuindo certo grau de autoridade a esses representantes do soberano, especialmente em terras distantes dos grandes centros da nação. Suas atribuições eram direcionados à conciliação entre os cidadãos, assim prevenindo a escalada possivelmente violenta de contendas entre particulares e evitando a criação de inimizades no seio do povo (PIMENTA BUENO, 1958, p. 331-332).

Há uma questão central relacionada à maneira de investidura do juiz de paz que merece ser destacada. Em razão do cargo ser eletivo, o juiz de paz representava um partido político. Na prática, isso significava que, quando o partido político possuía sintonia o governo, sua autoridade era respaldada. Caso contrário, o juiz de paz perdia parte de sua autoridade. A instituição de juizados de paz fortes nos vastos territórios do Império era um mecanismo de tímida reforma por forças liberais: vislumbrava-se um magistrado de poderes limitados, mas vinculado a escolha democrática, com autonomia e poder sobre determinada localidade (WOLKMER, 1997, p. 96).

O bacharelismo liberal dos juízes brasileiros do Império é um traço distintivo do que era a magistratura depois da Independência. São funcionários públicos de cúpula que pautam suas ações pelo individualismo político e pelo formalismo jurídico. As condutas desses juízes pouco se distinguiam daquelas dos juízes portugueses que serviam aos interesses da Metrópole. Ainda assim, a magistratura se transforma em um dos pilares do nascente Estado Brasileiro e adquire o papel de desenvolver ações rígidas, hierarquizadas e disciplinadas que favorecem o exercício e o fortalecimento do poder público burocratizado. Um dos objetivos centrais era ainda proteger os interesses das elites agrárias e manter a ordem no establishment brasileiro (WOLKMER, 2002, p. 91-94).

O juiz de paz retratado por Martins Pena retrata o longínquo antecedente de privilégios obtidos através das carreiras jurídicas. Esta era uma das principais formas de ascensão social, e as inúmeras vantagens percebidas pelos magistrados são prova de como, na estrutura do Império, dividia-se poder e riqueza com os juízes. Quando da publicação do Código de Processo Criminal, promulgado em 1832, reforça-se a instituição do juiz de paz ao mesmo tempo em que se acabava com determinados institutos ligados ao sistema legal português, como o do juiz de fora e da ouvidoria. A nova legislação processual penal representou um dos primeiros esforços de estabelecimento de um corpo legislativo genuinamente brasileiro. Aos juízes de paz fora dada competência para julgar as infrações punidas com penas leves, para a lavratura de auto de corpo de delito e termo de bem viver a vadios mendigos bêbados habituais e prostitutas perturbadoras do sossego público, por exemplo (PIERANGELI, 1983, p. 104-105).

Assim como grande parte dos elementos do dia-a-dia do povo brasileiro, os ideais de liberalismo também são influências essencialmente europeias. Nas ideologias dos alunos que estudaram nas primeiras faculdades de Direito recém-fundadas, ou mesmo dos professores estrangeiros que trabalhavam nos cursos do Brasil, estavam presentes as doutrinas revolucionárias que conquistaram grandes mudanças na Europa. Com os resultados positivos conquistados no continente, houve a tentativa de reprodução das reinvindicações no país, resultando em conquistas parciais, como veremos a seguir. Nesse momento da história brasileira, algumas décadas depois da criação dos primeiros cursos de Direito brasileiros, de Olinda e de São Paulo, é que começam a surgir grandes nomes da literatura jurídica nacional, como Pimenta Bueno, Tobias Barreto e Visconde do Uruguai (LIMA LOPES, 2013. p. 289-291).

Na Inglaterra, em 1689, com o fim da Revolução Gloriosa, o Bill of Rights garante os direitos fundamentais dos cidadãos ingleses, além de instituir o Parlamento e dar início à democracia de Westminster. Juntamente com a Declaração da Independência dos Estados Unidos da América, a Declaração de Direitos do Povo da Virgínia traz ao continente americano as reivindicações do resto do mundo. Nesse mesmo diapasão – porém com maior intensidade e simbologia –, irrompe em 1789 a Revolução Francesa. Estimulada pelo agravamento da crise e pela Revolução Americana, a burguesia se volta contra o absolutismo monárquico ao reclamar por liberdade, igualdade e fraternidade (BONAVIDES; ANDRADE, 2008, p. 99-150).

Assim como nas revoluções inglesa, francesa e americana, um dos principais ideais da Independência Brasileira era a liberdade. O liberalismo no Brasil reivindicava maior representação política, divisão de poderes e descentralização administrativa. A disseminação do liberalismo em solo brasileiro era, então, um dos mais fortes meios de luta contra o absolutismo monárquico. Em linhas gerais, era um movimento que pretendia remover do plano institucional brasileiro os abusos do passado, os vícios do poder, os erros da tradição e o prestígio injusto dos privilégios”. Ao contrário de muitos outros países das Américas, o Brasil não caminhou no sentido republicano. Da mesma maneira que a Europa – que presenciava um retorno ao absolutismo monárquico e o enfraquecimento dos parlamentos –, o país não desfrutou plenamente do sopro de novas ideias liberalizantes. Sob outro prisma, a figura forte do monarca absolutista garantiu um processo de separação de Portugal com o mínimo de traumas e violências, o que não pode ser diminuído (BONAVIDES; ANDRADE, 2008, p. 99-150).

O próprio processo de independência do Brasil se confunde com a marcha para a constitucionalização do país. Ao mesmo tempo que o D. Pedro fazia questão de se autodenominar Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Império do Brasil, seu temperamento absolutista não o deixava tolerar o menor arranhão às prerrogativas que se julgava investido. A outorga do sistema constitucional, portanto, marca a tentativa de adequação do Brasil à modernidade, que conserva uma postura dúbia quanto à evolução do constitucionalismo liberal (NEQUETE, 1973, p. 31-35).

O teor das discussões que pautaram o período que culmina na Independência, e posterior outorga da Constituição do Império de 1824, revelam um clima de tensão nos bastidores da política nacional. Existiam vertentes que propunham o estabelecimento de soberania absoluta sem qualquer limitação constitucional, o que configurava uma tentativa de estabelecer um sistema que se assemelha ao constitucionalismo antigo ou medieval, que procurava manter viva a ideia de restaurar um pacto imemorial fixado entre o rei e seus súditos (GOMES, 2011, p. 41-42).

Outros setores políticos creditavam à nova Constituição uma afirmação veemente da separação dos três poderes nos moldes propostos por Montesquieu. Para outras facções, o estabelecimento de direitos e garantias, a partir dos ideais de Benjamin Constant, proporcionava união nacional e o estabelecimento de reciprocidade entre o Monarca e o povo. Apesar de a Constituição do Império poder ser conceituada como carta constitucional avançada e progressista para a época, somente a partir da segunda metade do século XIX é possível afirmar que o Brasil estabelece uma cultura jurídica em sintonia com o constitucionalismo moderno, com a gradual consolidação do conceito moderno de constituição (GOMES, 2011, p. 41-42).

4 Entre liberalismo e absolutismo: os paradoxos da Constituição Imperial de 1824

Ainda que de modo tardio e com sobressaltos, a história constitucional brasileira caminha paralelamente aos principais desenvolvimentos políticos da Europa e dos Estados Unidos. A independência americana e a ruptura do ancién regime na França, juntamente com a Revolução Inglesa, são os marcos do surgimento do Estado Liberal de Direito.

O próprio constitucionalismo imperial introduz no país uma forma política de organização de poder com clara inspiração liberal, que rivalizava de modo paradoxal com a natureza absolutista do Império. Enquanto a Constituição Imperial de 1824 previa uma série de direitos liberais, sua estrutura sofria uma inesquivável ambivalência, caracterizada pela tensão entre absolutismo a liberalismo. Foram necessárias muitas décadas para que as pressões liberais conseguissem fazer erodir o sistema monárquico-absolutista. Os influxos liberais que atacam os alicerces jurídicos do Império durante todo o século XIX acabaram por minar a base de sustentação jurídico-política da Carta Constitucional de 1824.

Os turbulentos acontecimentos europeus e norte-americanos, especialmente aqueles do final do século XVIII e começo do XIX, representavam poderosos freios à adoção imediata de um sistema estritamente liberal no país. As circunstâncias possivelmente desagregadoras de estabelecimento de um sistema político liberal e democrático, como o norte-americano, era também visto com fortes ressalvas pelo pensamento conservador brasileiro. Dessa forma, era desaconselhado ao Imperador tomar movimentos bruscos em direção ao constitucionalismo moderno, de cunho liberal, sob pena de ver seu poder imperial tolhido (FAORO, 2003, p. 319).

O instituto do juiz de paz incarna as contradições de seu momento histórico. Esse magistrado era incumbido de mediar os interesses de um Imperador absolutista, ao mesmo tempo em que devia zelar por garantias individuais típicas do liberalismo dos séculos XVIII e XIX. Em certo sentido, a figura do juiz de paz encarna a dicotomia estabelecida entre absolutismo e liberalismo que permeia toda discussão sobre teoria do Direito e do Estado durante o Brasil Império.

O constitucionalismo oitocentista brasileiro é marcado por uma cultura liberal ainda não amadurecida e devidamente recepcionada. No âmbito burocrático, o trânsito para a modernidade iluminista não havia sido efetivado pelas instituições nacionais. A população tinha pouco conhecimentos sobre os avanços alcançados pelo liberalismo e a descrença no direito como fator transformador da sociedade ainda era muito grande (LOPES, 2010, p. 91-125).

Por essa razão, as conquistas liberais que abalaram as estruturas de poder na Europa e alteraram o rumo do direito norte-americano não podem ser pura e simplesmente transplantadas para a realidade brasileira. A doutrina liberal brasileira por muito tempo se manteve ancorada apenas entre restritos grupos revolucionários e progressistas, tanto civis quanto militares. As tentativaa revolucionárias de maior envergadura, como a Inconfidência Mineira e a Revolução Pernambucana, apesar da notória importância simbólica, não tiveram grande alcance ideológico. A população se mantinha em grande medida analfabeta e alienada (WOLKMER, 2002. p. 74-79).

Não causa surpresa, portanto, o completo descrédito das instituições, do direito e da Constituição. A figura do direito como mecanismo essencial de transformação social e desenvolvimento nacional somente se consagraria muitas décadas mais tarde. Essa postura cética e cínica do povo para com o direito acarretou reflexos negativos no tratamento dispensado à Constituição. Não é exclusividade da literatura de Martins Pena a descrição dessa essa situação. Erico Veríssimo também retrata de modo provocativo a representação da Constituição brasileira no diálogo entre o protagonista Capitão Rodrigo e Juvenal, na célebre saga “O tempo e o vento”:

[Capitão Rodrigo] – Ora, a portuguesada disse que não queria saber mais dessa história do rei mandar e desmandar sem dar satisfação a ninguém. Queriam que ele jurasse uma constituição.

[Juvenal] – Me desculpe. Mas nunca ouvi falar nesse negócio. Sou um homem rude.

[Capitão Rodrigo] – Constituição é... - Rodrigo calou-se, embaraçado, e começou a fazer gestos, como se estes pudessem substituir as palavras. - ... é um papel, um regulamento que um país tem, dizendo todas as coisas... vosmecê sabe... todas as leis... um negócio desses... compreende?

Juvenal mirava-o em silêncio, com sua cara inexpressiva, o olhar morto.

[Juvenal] – Seja como for, a junta governativa de Porto Alegre não estava muito disposta a jurar a tal constituição... Ora, chegaram notícias que nas outras capitanias havia barulho. Por toda a parte se falava em revolta (VERÍSSIMO, 2004, p. 211-212).

A Constituição Imperial de 1824 foi relativamente original em sua redação. Criou-se um Estado centralizado, no qual fortes poderes são conservados e concentrados na figura do imperador. Contudo, concomitantemente a esse processo, são garantidas formalmente liberdades civis e gerais e, de mesma forma, o sistema era dependente de expressiva dose de boa vontade dos particulares e dos organismos locais para funcionar com eficiência, especialmente no que se refere aos poderes particulares locais (LIMA LOPES, 2002, p. 317).

Com isso, a estrutura jurídico-política concedia amplo espaço para proliferação de discricionariedades, desmandos e corrupções cotidianas, gerando graves distorções na administração estatal brasileira como um todo. Por outro lado, o crescente liberalismo do século XIX surge, especialmente para as camadas mais pobres, como um movimento que propunha o fim do preconceito de cor – primeiro e mais importante passo para a igualdade social –, e sinalizava a emancipação total com os vínculos com Portugal.

A Constituição Imperial dedica um título às garantias dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, com um maior destaque para o artigo 179, no qual “A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio [...]”. Nos trinta e cinco incisos do referido artigo são detalhados como seriam garantidos tais direitos. Além do disposto no capítulo em questão é possível verificar a influência do liberalismo em outros artigos, como o art. 4º, o qual especificava que a religião oficial do Império era a católica, porém era permitido o culto às demais religiões (PIMENTA BUENO, 1958, p. 23-24).

As influências não foram somente liberais, pois, igualmente advindo da Europa, o absolutismo se fez presente na Constituição outorgada. Marca patente desse processo, em que o ufanismo democrático-liberal foi logo freado por um autoritarismo latente, foi a dissolução da Assembleia Constituinte pelo Imperador D. Pedro I, em 12 de novembro de 1823. Diante da perspectiva de ter seus poderes parcialmente tolhidos, D. Pedro logo desconfiou do projeto de racionalização da organização do Estado, e consequente limitação de seu poder imperial (SARLET, 2012, p. 224).

Reflexo do absolutismo monárquico europeu, principalmente o vivenciado na França, o Poder Moderador, também conhecido como quarto poder, era a chave de toda a organização política e delegado privativamente ao Imperador (CATTONI DE OLIVEIRA; ALVES, 2011). Assim como os monarcas, o Imperador tinha poderes especiais e tratamento diferenciado, como disposto na Constituição. Além dos vistosos títulos que se autodesignou, sua pessoa era inviolável e sagrada. Além disso, o Imperador não era sujeito a qualquer tipo de responsabilidade (artigos 98, 99 e 100, da CI/24) (NEQUETE, 1973, p. 37-38).

O Imperador da mesma forma tinha o poder de nomear e demitir, sem justificar, os Ministros de Estado, nomear os Senadores, suspender os Magistrados, perdoar os réus, entre outras atribuições referentes ao Poder Moderador. Além de seus encargos como Imperador, o monarca também era chefe do Poder Executivo, tendo obrigações como tal. Por outro lado, o artigo 178, da Constituição Imperial, por exemplo, traduzia a lição de Benjamin Constant, preceituando limitações expressas à alteração da Constituição e o respeito à separação dos Poderes, onde deveriam ser respeitadas as atribuições de cada um, observados os direitos políticos e individuais dos cidadãos (NEQUETE, 1973, p. 37-38).

Assim, diferentemente de diversos países da América Latina, o Brasil não caminhou no sentido republicano quando do começo da forte influência de ideias liberalizantes, e por essa razão acabou preso às circunstâncias europeias de retorno ao absolutismo monárquico e de enfraquecimento dos parlamentos. Dentro desse contexto, surge a figura forte de um monarca, que se torna um garantidor de um processo de separação de Portugal com o mínimo de traumas e violências (BONAVIDES; ANDRADE, 2008, p. 99).

Em relação a essa situação dicotômica, Tobias Barreto afirmou com acerto que, em razão de o Imperador figurar como um “ser” preexistente à Constituição – pois ficou independente dela e superior a ela –, no lugar de o Imperador ser uma criação do Brasil, o Brasil acabou sendo criação do Imperador (BARRETO, 1977, p. 130).

5 Conclusão

A mistura entre medidas liberais – revestidas de um véu autoritário – pautou boa parte da vida política brasileira durante o século XX, ocasionando evidentes limitações estruturais para o estabelecimento de um projeto político de nação. Esse fenômeno foi uma das marcas da República Velha e os reflexos desse processo de modernidade tardia ainda se mostram vivos na formação contemporânea do Estado brasileiro.

A clara dualidade existente na Constituição Imperial de 1824 desvela a tensão existente no Brasil à época, onde se constata um forte desprezo do povo e das instituições pelo Estado de Direito, especialmente na primeira metade do século XIX. A peça teatral O juiz de paz na roça, de Martins Pena, funciona como porta de entrada privilegiada para tratar do Direito brasileiro do Império. Até mesmo porque são poucos os clássicos sobre Direito Público publicados durante o Brasil-Império em virtude das peculiaridades e das fragilidades da formação jurídica brasileira da época (LIMA LOPES, 2010, p. 91-126).

Nesse ponto, resta bastante nítido o caráter essencialmente hermenêutico da literatura para reconstruir parte da realidade e do discurso jurídico. Sem o teatro de Martins Pena, esse empreendimento seria sensivelmente dificultado. A literatura de Martins Pena oferece aos juristas uma oportunidade privilegiada de analisar a personagem do juiz de paz e, desse modo, compreender o funcionamento e a ideologia vigente no sistema legal imperial. A partir dessa singela peça teatral, observa-se o caráter paradoxal entre absolutismo e liberalismo que marca o Brasil imperial. Essa situação de tensão, que perdurou durante todo século XIX, originou profundas sequelas estruturais décadas mais tarde. Isso porque, como se sabe, a tradição liberal condena o absolutismo, mesmo sob sua forma iluminada, censurando a natureza tirânica e imprevisível do governo pessoal e o desprezo pelo Estado de Direito (CAENEGEM, 2009, p. 124).

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Constitution, absolutism and liberalism. A portrait
of imperial magistracy in “The judge of peace
in the countryside”, by Martins Pena

Abstract

Based on the theoretical and methodological contributions of Law and Literature studies, this article analyzes the representation of the judge in the work O juiz de paz na roça [The justice of peace in the countryside], written in 1833 by Luis Carlos Martins Pena (1815-1848), in order to identify the place of the Constitution and the role of the judiciary during the imperial period. This theater piece describes the tensions of the time and, above all, the paradox observed in the 1824 Charter between absolutism and liberalism. Thus, literature emerges as a powerful ally for both the construction of national identity and for the understanding of social reality, revealing (a) the weak legal formation of nineteenth-century Brazil, (b) the systemic and official corruption of the nascent judicial power, (c) the lack of knowledge of common people on the constitution and of law in general, and, finally, (d) the distinctive features of what is commonly called imperial constitutionalism.

Keywords: Law and Literature. Martins Pena. The justice of peace in the countryside. Imperial Constitution. Magistracy.

Recebido em: 14/08/2015

Aprovado em: 10/11/2015

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1 O presente ensaio faz parte dos resultados do projeto de pesquisa “O direito na literatura: a representação dos juízes nas narrativas literárias”, desenvolvido no biênio 2012/2013 pelo KATHÁRSIS – Centro de Estudos em Direito e Literatura, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Direito da IMED, com financiamento da Fundação Meridional.

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