21-1918

Baena e Dias: pioneiros dos privilégios atribuídos aos autores portugueses no século XVI e suas consequências nas novas tecnologias

Baena and Dias: pioneers of privileges attributed to Portuguese authors in the 16th century and the consequences in the new technologies

Victor Gameiro Drummond

Pós-doutor em Direito pela FDUL (2015). Doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá (2014). Mestre em Direito (Ciências Jurídicas) pela Universidade de Lisboa (2004). Graduado em Direito pela USU (1996). Atualmente é professor assistente do Centro Universitário da Cidade, professor visitante da Universidade de Lisboa, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, professor visitante da Universidade de Santiago de Compostela, professor colaborador da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro e professor visitante da Universidad Complutense de Madrid. E-mail: [email protected]

Resumo

O texto apresenta uma análise descritiva e crítica sobre os primeiros privilégios de impressão atribuídos a autores de língua portuguesa, os quais foram outorgados no século XVI pela monarquia de Portugal aos autores Gonçalo de Baena e Baltasar Dias, significando mais um importante passo na direção do ainda incipiente sistema de direito de autor e suas consequencias nas novas tecnologias.

Palavras-chave: Direito de autor. Privilégios. História do direito de autor.

Abstract

The text presents a descriptive and critical analysis of the first printing privileges attributed to Portuguese authors, which were granted in the 16th century by the Portuguese monarchy to the authors Gonçalo de Baena and Baltasar Dias, fact that means another important step towards the still incipient Copyright Law Sistem and the consequences in the new technologies.

Keywords: Copyright. Privilegies. Copyright history.

1 Introdução

Na biografia do direito de autor se atribui aos privilégios a condição de antecedentes daquela categoria jurídica. Esta indicação possui alguma razão de ser e alguma precisão. De fato, o direito de autor começa a manifestar-se historicamente somente após a atribuição de privilégios que conduziam à exclusividade na exploração de obras por parte de determinados beneficiários.

Os beneficiários dos privilégios seriam os sujeitos-criadores somente de maneira esporádica, como já foi corretamente indicado1. Antes disso, porém, há, em diversos países europeus, entre os quais Portugal, a atribuição de privilégios a outros beneficiários, que são, em regra, os impressores, os tipógrafos ou mesmo os livreiros, figuras muitas vezes reunidas em uma mesma pessoa. A constatação do fato de que os autores não eram os destinatários principais dos privilégios (e portanto das benesses da exclusividade para a impressão) desde o século XVI e nos seguintes, decorre de uma farta bibliografia que o indica2, mas sobretudo decorre da apreciação crítica dos documentos históricos que comprovam tal fato3. Assim, antes do advento das leis de direito de autor e a partir do século XVI, pode-se constatar, como indicado, que os beneficiários das exclusividades para a impressão de obras eram os impressores, tipógrafos ou até mesmo livreiros, e esse fato inicialmente parece contradizer o espírito da expressão que nomeia a categoria jurídica estudada: direito de autor. Esta divergência semântico-ideológica não se evidencia de modo muito claro na análise do mesmo direito quando surgido no sistema de common law: copyright, ou seja, direito de cópia, mas ocorre no sistema a que se filiaria Portugal posteriormente.

Por outro lado, e tratando de compreender a definição de privilégio, esse pode abarcar uma série de sentidos4 e é também certo que o senso comum autoralista5 vê por bem em indicar os antecedentes do direito de autor genericamente por privilégios de impressão ou outras denominações, tais como privilégios graciosos6. A expressão privilégios foi utilizada e atribuída a sujeitos-criadores ou outros beneficiários que estivessem relacionados às atividades que transformavam obras em produtos, como foi o caso dos tipógrafos / impressores pioneiros da indústria da imprensa já nos idos dos séculos XV e XVI.

Assim sendo, são raríssimas as análises doutrinárias do universo do direito de autor que diferenciam com profundidade as características dos privilégios atribuídos aos impressores, tipógrafos ou livreiros daqueles atribuídos aos sujeitos-criadores, e é exatamente o que se pretende em parte com o presente estudo, ao se destacar os primeiros beneficiários de privilégios na condição de autores em território português, descrevendo os documentos relacionados e analisando criticamente as circunstâncias fáticas inerentes às atribuições.

Dessa forma, serão apresentadas, portanto, análises sobre os primeiros privilégios que foram atribuídos exclusivamente a sujeitos-criadores e não aos investidores, sejam eles nomeados como impressores, tipógrafos, livreiros ou por qualquer outra atividade que receba nomenclatura equivalente ou correlata.

As fontes para a pesquisa foram, além de textos sobre os quais a revisão bibliográfica foi efetuada e que vão indicados nas referências bibliográficas, os próprios textos dos documentos originais, ambos datados do século XVI (1536 e 1537) e mantidos em perfeito estado de conservação no arquivo nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, Portugal.

O estudo apresentará as características dos referidos privilégios autorais e sua apreciação para que a discussão inerente aos destinatários iniciais de privilégios possa vir à tona. Isto porque esta discussão sobre o sujeito fundamental beneficiado pela exclusividade para a atribuição de um direito atravessou os séculos e se coloca presente na contemporaneidade, quando as novas tecnologias e a internet, e mais modernamente, as redes sociais, conduzem a que parte da sociedade parece crer que o direito de autor está morto7 e sua conceitualização não faria mais sentido, especialmente por uma impossibilidade fática de se alcançar o direito pela sua inexequibilidade. Ignorar um direito pela alegação de que o mesmo é inexequível ou de difícil constatação ou exercício é um erro que não se pode admitir no âmbito das ciências jurídicas e na compreensão do que vem a ser, propriamente, o conceito de justiça.

Nesse sentido, um dos objetivos desse artigo é apresentar fundamentos descritivos e críticos que demonstram existir até a contemporaneidade um constante conflito entre a proteção dos investidores do setor autoral e dos sujeitos-criadores no tocante à atribuição de direitos, desde os seus antecedentes históricos, quais sejam, os privilégios. Ou seja, se o conflito – ainda que na ocasião do século XVI ainda não expresso entre esses diferentes sujeitos – faz parte de todos os primeiros passos do direito de autor desde o mais antigo capítulo de sua biografia, é importante compreender o seu caminho histórico desde tenra idade. E, como consequência, compreender com esse conflito ou resultados se processam na contemporaneidade pós novas tecnologias.

Assim, no que se refere aos documentos originais utilizados como fonte de pesquisa são analisados exclusivamente os privilégios atribuídos a dois primeiros sujeitos-criadores para os quais esses foram outorgados na história dos países de língua portuguesa, quais sejam: Gonçalo de Baena e Baltasar Dias para daí se extraírem as constatações que conduzem às apreciações críticas.

A condição de pioneirismo absoluta dos beneficiados pelos privilégios é o que justifica a sua análise nesse estudo, dedicado especificamente a eles.

Antes disso, porém, deve ser compreendido que a história do direito de autor em língua portuguesa começa, no mínimo, pois, no ano de 1502 com a atribuição do primeiro privilégio de impressão a Valentim Fernandes, tipógrafo de origem alemã atuante no território de Portugal.

Experiente impressor, responsável pela edição de vários incunábulos entre os quais a clássica obra Vita Christi, Fernandes foi o pioneiro a ser outorgado com um privilégio real de impressão para a edição do livro com histórias de Marco Paulo escrito por Nicolau Vêneto. No ano seguinte, 1503, recebeu a mesma benesse, nesse caso para a impressão do importante Livro dos Regymentos dos Juízes e Oficiaes. Seguindo Fernandes, impressores como Jacobo Cromberger e Germão Galharde foram beneficiados com a outorga de poderes (na verdade, a concessão de benefícios para a impressão com exclusividade) para imprimir obras de distintas naturezas.

No mesmo século, porém, cerca de trinta anos após a atribuição do primeiro privilégio àqueles que eram os primeiros investidores no sistema de impressão, houve a concessão de privilégios a sujeitos-criadores.

O que se analisa nesse estudo é a concessão de privilégio aos sujeitos-criadores pioneiros em Portugal (Gonçalo de Baena e Baltasar Dias) por meio do exame das fontes históricas primárias, quais sejam, os documentos por meio dos quais os referidos privilégio foram atribuídos.

Os dois privilégios analisados foram os primeiros atribuídos a sujeitos-criadores o que justifica a análise do mesmos e sua importância na história do direito de autor.

2 Alvará de licença com exclusividade para impressão de obra de autoria de Gonçalo de Baena (1536)

Gonçalo de Baena foi um músico, compositor e professor de música espanhol que logo no início de sua vida se instalou em Portugal e atendeu, na corte real, aos reis Dom Manuel I e Dom João III.

O privilégio que recebeu é, em verdade, o que se pode apontar como o primeiro privilégio em linha portuguesa atribuído a um sujeito-criador. Se é bem verdade que os privilégios atribuídos por documentos diversos a Valentim Fernandes foram os primeiros da história do direito de autor em Portugal, também é evidente que, assim como em outros países, as primeiras atribuições foram efetuadas em benefício de pessoas que não os próprios sujeitos-criadores. Em Portugal não foi diferente. Portanto, se desde 1502 já existia a figura dos privilégios de impressão destinados a investidores do setor da tipografia, a atribuição a sujeitos-criadores ocorreu em momento histórico um pouco posterior.

A doutrina, algumas vezes, parece valorizar mais a atribuição do privilégio a Baltasar Dias do que o privilégio atribuído ao seu antecessor, Gonçalo de Baena, como fazem Rebello e Pereira8. Ocorre que a primazia de Baena é incontestável quando se analisa os documentos originais. Isso porque a atribuição de privilégio a Baena é datada de 19 de Junho de 1536 e a de Dias no dia 20 de fevereiro de 1537. De toda forma, o fato de parte da doutrina não citar Gonçalo de Baena não significa que ele não foi o primeiro, mas que talvez o privilégio atribuído a Dias tenha sido mais paradigmático ou historicamente mais significativo.

Há, porém, uma razão que possa justificar a atribuição histórica da primazia de um privilégio autoral a Baltasar Dias em detrimento de Gonçalo de Baena, que é o fato de que este último era músico da câmara real, estando, potanto, mais aproximado do Rei. Também o fato de que Dias era um escritor que possuía uma deficiência pode ter colaborado com a equivocada ideia de que seria o primeiro a receber a graça na condição autoral, por ter recebido uma certa afeição por parte da doutrina. Estas são, porém, somente especulações.

Pelo que consta também, o privilégio atribuído a Gonçalo de Baena parece ter sido o primeiro em Portugal a ser outorgado por um prazo determinado9, 10. O privilégio foi concedido por alvará que atribuía exclusividade pelo período de 10 anos para a impressão de uma obra literária que também incluía obras musicais. Gonçalo de Baena, por sua vez, não teve prazo de exclusividade definido no privilégio que lhe foi outorgado. Ora, se foi a primeira vez em que foi atribuído um prazo de proteção genericamente a um privilégio de impressão em Portugal, no que se refere à atribuição a um autor, não parece haver controvérsia.

Além da atribuição de um privilégio, foi instituída também no alvará uma pena pecuniária e a perda dos exemplares para quem viesse a imprimir as cópias desautorizadamente, em determinação interessante que até hoje se mantém nas legislações contemporâneas de um modo genérico.

Determina o texto do alvará que “[...] alem da pena de cynquoenta cruzados perdera os livros que asy emprymir”.

Ora, comparando-se esta importante disposição com as legislações contemporâneas de Portugal e Brasil, verifica-se que a ideia segue intacta, demonstrando que a proibição pioneira prevista por Dom João III se mantém como uma penalidade prevista para combater uma grave ilicitude presente no sistema do direito de autor, ainda relevante na contemporaneidade.

A proibição e penalização com a perda dos equipamentos utilizados com a finalidade criminosa é encontrada no artigo 107 da lei brasileira e no artigo 201o da lei portuguesa, como se verifica no Quadro 1.

Quadro 1

Brasil – Artigo 107 – Lei 9610 / 98.

Portugal – Artigo 201o - Lei 63/85.

Artigo 107. Independentemente da perda dos equipamentos utilizados, responderá por perdas e danos, nunca inferiores ao valor que resultaria da aplicação do disposto no art. 103 e seu parágrafo único, quem: I - alterar, suprimir, modificar ou inutilizar, de qualquer maneira, dispositivos técnicos introduzidos nos exemplares das obras e produções protegidas para evitar ou restringir sua cópia; II - alterar, suprimir ou inutilizar, de qualquer maneira, os sinais codificados destinados a restringir a comunicação ao público de obras, produções ou emissões protegidas ou a evitar a sua cópia; III - suprimir ou alterar, sem autorização, qualquer informação sobre a gestão de direitos; IV - distribuir, importar para distribuição, emitir, comunicar ou puser à disposição do público, sem autorização, obras, interpretações ou execuções, exemplares de interpretações fixadas em fonogramas e emissões, sabendo que a informação sobre a gestão de direitos, sinais codificados e dispositivos técnicos foram suprimidos ou alterados sem autorização.

Artigo 201º Apreensão e perda de coisas relacionadas com a prática do crime.

1 – Serão sempre apreendidos os exemplares ou cópias das obras usurpadas ou contrafeitas, quaisquer que sejam a natureza da obra e a forma de violação, bem como os respectivos invólucros materiais, máquinas ou demais instrumentos ou documentos de que haja suspeita de terem sido utilizados ou destinarem-se à prática da infracção.

2 – O destino de todos os objectos apreendidos será fixado na sentença final, independentemente de requerimento, e, quando se provar que se destinavam ou foram utilizados na infracção, consideram-se perdidos a favor do Estado, sendo as cópias ou exemplares obrigatoriamente destruídos, sem direito a qualquer indemnização.

3 – Nos casos de flagrante delito, têm competência para proceder à apreensão as autoridades policiais e administrativas, designadamente a Polícia Judiciária, a Polícia de Segurança Pública, a Guarda Nacional Republicana, a Guarda Fiscal e a Direcção-Geral de Inspecção Económica.

A obra se denominava (na grafia do alvará) “hũa obra e arte pera tanger ou “Arte novamente inventada pera aprender a tanger” ou ainda “A arte de tanger”. Era, em verdade, uma obra de natureza didática contendo também obras musicais. Na sua capa ostentava a indicação: “com privilégio real”. A indicação de que a obra possuía uma autorização ou licença passou a ser uma circunstância corriqueira na ocasião, sendo certo que tal fato decorria da necessidade de controle, por parte da monarquia, das obras publicadas naquele período histórico.

Há de se salientar a importância da obra, a qual, inclusive se pensava estar perdida, até a descoberta de um exemplar na Biblioteca Nacional de Espanha. Trata-se de uma obra fundamental para a compreensão e estudo da música ibérica de instrumentos de tecla dos século XV e XVI, especialmente no período compreendido entre os reinados de Dom Manuel I e Dom João III, ou seja, exatamente o período de atuação de Gonçalo de Baena em Portugal, como bem atesta Owen Rees11:

Finalmente, o nosso conhecimento da música na corte portuguesa durante os tempos de Manuel I e João III foi reforçado pela recém descoberta de uma cópia da obra de Gonzalo de Baena “Arte novamente inventada pera aprender a tanger” (Lisboa, 1540), fonte que fornece pistas adicionais sobre a importância do repertório espanhol e de outros repertórios musicais estrangeiros em Portugal naquele momento.

Percebe-se claramente que a obra de Gonçalo de Baena possui importante significado histórico por conta de seu conteúdo e também pela sua presença na biografia do direito de autor em Portugal e, portanto, em língua portuguesa. Como se não bastasse, o primeiro editor da obra foi exatamente um dos pioneiros da tipografia e das impressões em Portugal, Germão Galhardo, que a editou no ano de 1540, considerando o privilégio real outorgado ao autor da obra e, nesse caso, como se observa, não havendo qualquer outorga de tais privilégios ao impressor, que naquela ocasião, também era beneficiário de outros privilégios.

Há, nesse caso, portanto, a atribuição de privilégio ao sujeito-criador em detrimento de qualquer privilégio ao impressor, o que parece indicar, no caso da biografia do direito de autor em língua portuguesa, um movimento que adequa o que seria um futuro direito, à realidade filosófica inerente ao processo da criação. Isto porque, ao menos nos países em que o direito de autor se vincula ao sistema romano-germânico, há um entendimento genérico de que a proteção do sujeito-criador decorre de um processo de criação que justifica esta sua proteção. Ainda que haja poucos estudos sobre a justificativa filosófica para o direito de autor, assim mesmo há autores que se debruçam sobre esse tema, como é o caso de Merges12 e Drahos13 no sistema copyright e Gonzaga Adolfo14 e Drummond15, no sistema romano-germânico.

Nesse sentido, cabe identificar alguns elementos altamente significativos da atribuição de privilégios a Gonçalo de Baena:

    1. o pioneirismo como sujeito-criador por ser o primeiro beneficiário da história lusa de um privilégio que atribuiu a exclusividade na impressão de obras da autoria do beneficiário;

    2. a relativa celeridade em se inverter o beneficiário dos privilégios da posição de empresário do setor para a posição de sujeito-criador do setor (de 1502 a 1536 foram 34 anos).

Como consequência dos pontos relevantes anteriormente apontados, há uma adequação e a pavimentação, ainda que incipiente até então, de uma justificativa de ordem filosófica para que o futuro direito de autor viesse a ser aplicado àqueles que seriam os reais beneficiários da proteção em decorrência do ato da criação: o sujeito-criador.

Não se pode afirmar que a partir de então o padrão de atribuição de privilégios passa a ser a outroga aos sujeitos-criadores, pois houve muito mais atribuições de privilégios a impressores e tipógrafos do que a autores. Esta padronização comprova que se está diante de um déficit filosófico do direitod e autor.

De toda forma, talvez a atribuição de privilégio a Gonçalo de Baena tenha aberto portas para a outorga de outro privilégio ainda mais paradigmático, qual seja, aquele outrogado a Baltasar Dias.

3 Alvará atribuindo privilégio a Baltasar Dias, escritor, para impressão de suas obras (1537)

O documento que outorga poderes a Baltasar Dias é simplesmente um alvará que atribuiu privilégio com exclusividade para a impressão de suas obras. Dias era escritor e temia, como outros autores, que suas obras pudessem ser impressas e portanto não poderia viver de seu ofício, ou como indicou o rei no documento, de sua “indústria”.

O privilégio que lhe foi atribuído é muitas vezes preferencialmente indicado pela doutrina quando se pretende demonstrar a importância de privilégios a autores e, por vezes, é indicado em detrimento do privilégio outorgado a Gonçalo de Baena16.

Por outro lado, enquanto Gonçalo recebeu o privilégio para uma só obra musical, Dias recebeu a outorga para toda e qualquer obra de sua autoria que viesse a publicar.

O privilégio não foi outorgado de ofício, mas decorreu de pedido do outorgado, considerando que Dias peticionou ao rei requerendo a outorga de exclusividade para a publicação de suas obras e, como informou: “[...] algũas obras asy em prosa como em metro, as quaes foram ja vistas aprovadas e allgũas dellas ymprimidas [...]”17, tanto para as que já foram feitas e publicadas como para aquelas que ainda o iria fazer.

Merece evidente destaque o fato de que o alvará foi requerido com exclusividade por Dias pelo fato dele ser cego, atribuindo-se a seu próprio pedido uma razão humanitária.

Aliás, ao que parece, toda a questão inerente à sua condição de cego foi por ele mesmo provocada, considerando que no alvará o rei cita a condição de dificuldade do requerente, justificando ser esse o seu único ofício:

[…] por ser homem pobre e nam ter outra yndustria pera viver por ho caricimento de sua vista senam vender has ditas obras, me pidia ouvese por bem, por lhe fazer esmolla, dar lhe privilegio pera que pessoa allgũa não posa ymprimir nem vender suas obras sem sua licença […]

Ou seja, Baltasar Dias pede ao rei que considere sua condição como um elemento importante e definidor de uma atribuição de exclusividade para a impressão de suas obras.

Por outro lado, e curiosamente, não se pode afirmar se por compaixão tenha sido o fato gerador do historicamente considerado o primeiro privilégio a obras em geral atribuído um sujeito-criador por esta condição, mas o fato é que isto ocorreu e que parte da doutrina vem assim considerando (equivocadamente, como se pode constatar) esse como o primeiro privilégio atribuído em terras portuguesas a a um autor.

Por outro lado, a questão de atribuição de exclusividade levando em conta as dificuldades do requerente Dias, além de um aspecto humanitário e também além do seu pioneirismo, trazem um elemento que deve ser considerado fundamental na história do direito de autor, qual seja: Baltasar Dias não poderia viver de outro ofício! Dom João III, portanto, ainda que considerasse Dias pobre – como parecia ser – e comiserado pela sua condição de cego, determinou a atribuição do privilégio por esses fatores aliados ao fato de que Baltasar “não tinha outra indústria para viver.” Ora, mesmo considerando-se as dificuldades apresentadas pelo requerente, e mesmo que Dom João III as tenha considerado em primeiro lugar, o que se extrai também de modo simbólico e bastante significado no tocante a uma justificativa filosófica para o direito de autor é o fato de que o sujeito-criador, enquanto tal, também não tem outro ofício para viver. E assim, consequentemente, mantem-se esta ideia até a contemporaneidade. Um escritor sabe escrever textos, um compositor sabe escrever composições e um ator sabe atuar. Deixar, pois, que seus ofícios sejam exercidos por lhes desamparar por falta de direitos que lhes possam ser atribuídos é não permitir o desenvolvimento da arte que, como parte significativa da vida humana, faz com que parte do sentido da própria vida humana se perca. Pode-se, inclusive, em algum sentido, atribuir um pioneirismo nesse privilégio a duas outras questões bastante caras ao direito e bastante vinculadas ao direito de autor, quais sejam: uma proteção à liberdade de escolha profissional e a própria proteção ao livre exercício de atividades profissionais, ideias não existentes ainda naquelas quadras da história.

Dom João III foi sutilmente visionário nesse particular e deveria ser exemplo para os legisladores contemporâneos ao estabelecerem os sistemas e legislações de direito de autor nos seus ordenamentos jurídicos.

Por outro lado, e seguindo adiante, à diferença do privilégio atribuído a Gonçalo de Baena, que se aplicava somente sobre uma única obra musical, o privilégio inerente à Baltasar Dias outorga poderes ao escritor sobre toda a sua obra, até então escrita ou que viesse posteriormente viesse a criar. Esta natureza de atribuição de exclusividade genérica também é altamente positiva para a compressão do futuro direito de autor, especialmente para os que defendem que esta categoria de direitos deve proteger, fundamentalmente, os sujeitos-criadores, origem subjetiva fundamental das criações.

Essa sutil característica faz com que o privilégio de Dias seja mais aproximado ao conteúdo genérico do direito de autor, que pretende a atribuição de direitos a toda e qualquer obra de um criador. Já o direito atribuído a Gonçalo, ainda que não possa ser assim nomeado, de fato se assemelha a uma espécie de licença, ainda que se deva admitir uma forçosa comparação.

Por outro lado, no privilégio inerente ao presente documento há uma evidente e clara indicação da censura que vem a ser estabelecida no que se refere à temática das obras:

E porem, se elle fizer algũas obras que toquem em cousa de nosa santa fee, nam se ymprimiram sem primeiro serem vistas e enjaminadas por mestre Pedro Margualho, e sendo por elle vistas, e achando que não falla em cousa que se não deva fallar, lhe passe diso sua certidam, com a quall certidam ey por bem que se ymprimam as taes obras e doutra maneira nam. […]

Por fim, o privilégio atribuído a Baltasar Dias não atribui nenhum prazo ou limite de tempo, o que não pode ser interpretado, de forma algum, nesse momento da história, como por todo o seu intervalo de vida. Essa constatação decorre do fato de que até aquele momento tal prazo nunca havia sido atribuído, e, muito pelo contrário, o intervalo de tempo era ainda de 10 anos para os privilégios que o antecederam.

Poderia ser dito que a não atribuição de prazo se daria por um interesse por parte o rei em observar o comportamento do beneficiário da outorga, especialmente pela sua atribuição relacionada com a censura prévia régia relacionada a Santa Sé. e dependendo de seu comportamento, manter ou não a outorga de poderes. Esse argumento, porém, ainda que possa ser levantado, se fragiliza ao se compreender que, por se tratar de privilégio, basta nova determinação real para que o mesmo deixe de atribuir qualquer poder ao seu beneficiário, visto ainda não se tratar de leis com natureza universal. Mais parece que a não atribuição de prazo determinado tenha se dado por simples esquecimento ou por ausência de uma tradição na ocasião na atribuição de privilégios.

A atribuição a toda e qualquer obra é bastante relevante porque trata dos privilégios como uma necessidade de aplicação geral às obras criadas, e como tal, se aproxima do conceito de universalidade de direitos típica do direito de autor, que não faz restrição às obras protegidas ou não individualiza as obras ou atribuições de direitos. Nesse sentido, também, há uma nítida evolução entre o privilégio atribuído a Baena e o atribuído a Dias.

A importância do privilégio atribuído a Dias, portanto, se dá pela atribuição de exclusividade sobre toda e qualquer obra de sua autoria e, ainda mais, refere-se a uma atribuição que se dá a um sujeito pela sua condição de criador. É importante, nesse sentido, observar uma evidente evolução desde o privilégio atribuído a Valentim Fernandes e a outros impressores como Cromberger, Galharde – privilégios, portanto, não vinculados à figura dos criadores, mas sim dos empresários – e, nesta observação constatar que com Baena e Dias, o sujeito destinatário dos privilégios passa a ser outro.

Com Dias, claramente se observa uma evolução – ainda que aparentemente sutil, mas bastante significativa, ao se aplicar o privilégio por ser a única “indústria” do requerente.

4 Considerações finais

O presente estudo apresentou descrições e análises críticas de dois dos principais documentos históricos na evolução da biografia do direito de autor em língua portuguesa, quais sejam: os privilégios de impressão com exclusividade atribuídos aos sujeitos-criadores Gonçalo de Baena e Baltasar Dias.

Salintou-se que nas atribições dos privilégios anteriores aos atribuídos aos dois autores citados, havia uma proteção real sobre investimentos e baseada obviamente numa relação de confiança entre o rei e aqueles que acabavam ostentando, inclusive, condições igualitárias com a mais alta nobreza.

Com o advento dos privilégios atribuídos a Gonçalo de Baena e a Baltasar Dias, o sujeito-criador entra em cena, fortalecendo-se a ideia do vínculo entre esse e a necessidade de se aplicar a ele condições de sustentabilidade pelo seu ofício. Se tal ideia surge, em alguma medida com Baena, se fortalece muito mais com Dias, pois faz parte do requerimento do escritor a sua indicação de impossibilidade de viver de outro ofício ou outra “indústria”.

Assim, em linhas gerais, se pode afirmar que o primeiro privilégio atribuído a um autor em Portugal não foi o atribuído a Baltasar Dias e sim a Gonçalo de Baena, e vale indicar, outrossim, que há uma clara evolução de Baena a Dias em pelo menos três aspectos:

    1. O privilégio atribuído a Baena se fez para outorgar poderes para uma única obra, enquanto o objeto do alvará de Dias o foi para toda e qualquer obra do escritor madeirense;

    2. O privilégio atribuído a Baena ocorre, em certa medida, dentro das fronteiras da corte, visto que aquele era músico da real câmara enquanto o privilégio outorgado a Dias o foi para uma pessoa comum, inclusive de classe social não abastada e que não possuía relação com o rei por não participar das atividades cortesãs;

    3. O privilégio atribuído a Dias foi outorgado principalmente porque a sua única possibilidade de trabalho (ou, como indicou o rei, a sua única indústria) eram a literatura e a dramaturgia. Ainda que Dom João tenha outorgado tal privilégio por comiseração pela sua difícil situação de deficiência, acabou por indicar a necessidade de se atribuir direitos a ofícios insubstituíveis.

Tanto um quanto outro documento possuem enorme relevo para a biografia do direito de autor, mas a sua análise conjunta é o que faz compreender a evolução dessa categoria jurídica e, principalmente, a compreensão de que desde os seus primórdios havia aqueles que defenderiam, como Dom João III o fez, o verdadeiro destinatário do direito de autor: o sujeito-criador.

O presente estudo, além de se basear na análise de fontes históricas primárias, pretende indicar como se faz necessário na contemporaneidade e sobretudo com o advento das novas tecnologias, compreender que o direito de autor vem sofrendo reveses sem ter nunca, sequer, ter sido adequadamente atribuído aos sujeitos-criadores. Sem se observar o nascedouro do direito na história, os erros do passado podem ser repetir na contemporaneidade.

É o que particularmente se constata quando grandes bases de dados ou grandes corporações das novas tecnologias alardeiam que o direito de autor não deve ser sequer considerado, por exemplo, quando se tem acesso ilimitado a gratuito à sites como Youtube, Facebook ou outros grandes sujeitos atuantes no mercado que diz respeito ao direito de autor. Isto porque a cultura jurídica e o senso comum autoralista contrário ao direito de autor (é curioso, mas ele de fatio existe) afirmam que qualquer necessidade de autorização prévia, pagamento de direitos ou mesmo admissão da existência da direitos comportariam em violações da liberdade de expressão ou da liberdade criativa.

Ora, fingir que não existe discussão jurídica sobre direito de autor porque Google, Facebook, Youtube e outras enormes corporações típicas da nova era tecnológica necessitam do que famigeradamente se denominou genericamente por “conteúdo” não pode significar que o direito deva deixar de existir. Assim o fosse, a escravidão não teria terminado, os votos censitários ainda existiriam e as mulheres não teriam evoluído em suas condições sociais, pois havia oposição ou porque simplesmente as coisas “eram como eram”. Há de se superar o “mito do dado” que envolve o direito de autor. Se esses exemplos parecem radicais – e é necessário que o sejam – também deve se radicalizar na compreensão de que o direito de autor deve ter como destinatário aquele a quem uma única “indústria” seja possível, como bem já indicou Dom João III, adiantando os problemas que viriam a se repetir (ou mesmo se manter) quinhentos anos depois: o sujeito-criador. Mal sabia Dom João III que, além de os problemas não estarem ainda resolvidos, eles se mantiveram e todavia seguem, nunca tendo deixado de ser problemas de verdadeira adequação do direito na direção de efetiva justiça.

Referências

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Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, vol. 13, n. 3, p. 420-436, Set.-Dez., 2017 - ISSN 2238-0604

[Received/Recebido: Maio 18, 2017; Accepted/Aceito: Dez. 14, 2017]

DOI: https://doi.org/10.18256/2238-0604.2017.v13i3.1918

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