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A importância da autocomposição a partir das teorias de Jürgen Habermas e Axel Honneth

The importance of consensus building in the works of Jürgen Habermas e Axel Honneth

Karime Silva Siviero(1); Brunela Vieira de Vincenzi(2)

1 Mestrado em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil (2015). Professora da Universidade Vila Velha.
E-mail: [email protected]

2 Graduada em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (1997), mestra em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (2002) e Doutora em Direito Civil, Constitucional e Filosofia do Direito pela Johann Wolfgang Goethe Universität - Frankfurt am Main (2007). Estágio de Pós-Doutorado no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo e no Institut für Sozial forschung em Frankfurt am Main, na Alemanha (2009-2010). Professora Adjunta I no Departamento de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo - UFES, onde leciona na graduação e no mestrado, e coordena o Núcleo de Prática Jurídica e o Núcleo de Extensão e Atendimento Popular - Novo Balcão (Universidade Federal do Espírito Santo).
E-mail:
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Resumo

O presente artigo objetiva analisar a importância da autocomposição dos conflitos a partir das teorizações de Jürgen Habermas e Axel Honneth. Investiga, inicialmente, como a teoria habermasiana do agir comunicativo permite compreender o funcionamento dos mecanismos autocompositivos, bem como a forma como eles se apropriam da dinâmica dos conflitos para restaurar o canal de diálogo entre partes e favorecer o surgimento de soluções mutuamente satisfatórias. Em seguida, avalia como a reformulação da teoria da justiça de Honneth afeta a compreensão do sentido ético da liberdade jurídica das sociedades contemporâneas, e, ainda, como a democratização dos espaços de interação poderia contribuir para reforçar a liberdade e a autonomia dos cidadãos. Os referenciais filosóficos analisados denotam que a autocomposição constitui-se em legítimo instrumental de emancipação social.

Palavras-chave: Autocomposição. Jürgen Habermas. Axel Honneth.

Abstract

This article aims to analyze the importance of consensus building in the works of Jürgen Habermas and Axel Honneth. It initially investigates how the habermasian theory of communicative action allows us to understand the functioning of the alternative dispute resolution mechanisms and the way they make use of the dynamics of conflict to re-establish the channel of dialogue between parties, as well as encourage the emergence of mutually satisfactory solutions. It also highlights how Axel Honneth´s theory of justice affects the understanding of the ethical sense of the legal freedom in contemporary societies, and also how the democratization of spaces of interaction would help citizens to strengthen their freedom and autonomy. The philosophical reference analyzed denotes that consensus building constitutes a legitimate instrument of social emancipation.

Keywords: Consensus building. Jürgen Habermas. Axel Honneth.

1 Introdução

A pós-modernidade inaugura um tempo de heterodoxias. A infiltração do Sistema Judiciário em todos os poros da vida social reacendeu as reflexões sobre o monopólio estatal da administração da Justiça. Em 1986, Pierre Bordieu declarava na França que o conceito de juridicidade está plenamente inscrito na história moderna ocidental, sendo dela um farol como outros “ismos”, tal como o capitalismo, o individualismo e o estatismo1.

Paralelamente ao crescimento do direito informal, o Estado também passa a incorporar progressivamente os mecanismos alternativos consensuais aos novos diplomas normativos, institucionalizando-os. Mas apesar do crescimento recente da autocomposição, considerável parcela da doutrina ainda diverge sobre a legitimidade dos mecanismos alternativos na administração da justiça2.

Diante deste cenário, o presente artigo pretende analisar como as doutrinas de Axel Honneth e Jürgen Habermas podem fornecer subsídios teóricos para a construção de um novo paradigma de Direito.

Tenciona-se demonstrar que as teorias da ação comunicativa de Jürgen Habermas e o conceito de liberdade jurídica desenvolvido por Axel Honneth – ambos autores da chamada Escola de Frankfurt – solidificam doutrinariamente a importância da construção de consensus para as sociedades contemporâneas.

Finalmente, cumpre registrar que o aprofundamento do estudo das construções teóricas afetas à temática da autocomposição de conflitos ganhou ainda mais importância na ambiência processual da Lei n° 11.105/2015, que instituiu o novo Código de Processo Civil, na medida em que o diploma recém-inaugurado institui como regra a obrigatoriedade da conciliação e da mediação no início de todos os processos que seguem o procedimento comum, excepcionando apenas aqueles que sejam incompatíveis com a autocomposição. Portanto, a releitura das teorias habermasiana e honnethiana no contexto atual mostra-se extremamente necessária e útil à compreensão do atual cenário processual civil brasileiro.

2 Mecanismos autocompositivos de solução dos conflitos

A ordem consensuada de tratamento dos conflitos possui diversas estratégias para alcançar a pacificação, devendo-se optar casuisticamente por aquela que demonstre melhores condições de atender ao caso concreto.

Os doutrinadores costumam distinguir os mecanismos não-adversariais a partir da relação existente entre as partes, pela forma de intervenção do terceiro e pelo tipo de conflito envolvido3.

A negociação consiste no mecanismo autocompositivo de solução de conflitos marcado pelas tratativas diretas entre os envolvidos, sem a participação de um terceiro facilitador4. É o método consensual de solução de conflitos mais usado nas relações interpessoais, desde a infância até a vida adulta.

Trata-se uma ferramenta vocacionada para que as partes encontrem uma solução que satisfaça aos seus interesses, com ganhos múltiplos. A negociação exige que as partes estejam familiarizadas com o procedimento e com as estratégias que podem ser usadas. É preciso conhecer bem os interesses em jogo e as possibilidades de solução. Consoante ensinam Fisher, Ury e Patton:

A razão por que se negocia é para produzir algo melhor do que os resultados que seria possível obter sem negociar. Quais são esses resultados? Qual é a alternativa? Qual é sua MAANA – sua Melhor Alternativa à Negociação de um Acordo? Esse é o padrão em relação ao qual qualquer proposta de acordo deverá ser mantida. É o único padrão capaz de protegê-lo de aceitar termos demasiadamente desfavoráveis e de rejeitar termos que seria de seu interesse aceitar5.

Por outro lado, conciliação é o mecanismo não adversarial mais indicado para os casos em que as partes não possuem relação continuada e, por essa razão, buscam apenas o auxílio de um terceiro para encontrar a solução que melhor atenda a ocorrência. Possui um procedimento célere e normalmente é usada para solucionar litígios que envolvem questões puramente econômicas e materiais.

Finalmente, a mediação consiste no mecanismo autocompositivo adequado para lidar com conflitos onde preponderam os aspectos subjetivos. As relações conflitivas derivadas de laços sociais duradouros, como a relação entre pais e filhos ou entre vizinhos não são simples de serem resolvidas, pois demandam um conhecimento da raiz dos problemas (causas subjacentes) para somente depois ser possível aventar as questões objetivas postas em discussão.

Dessa forma, as principais distinções entre os mecanismos de conciliação e mediação residem no tipo de relação mantida entre as partes, na postura adotada pelo terceiro facilitador e na finalidade da intervenção em cada um dos institutos.

Na conciliação pretende-se obter um acordo que solucione uma questão controvertida pontual. Para alcançar esse objetivo, o conciliador intervém oficiosamente entre a as partes e exerce um papel ativo na condução do procedimento. Não há uma discussão aprofundada sobre as origens do conflito, e, muitas vezes, o conciliador pode induzir as partes a aceitar os termos da composição.

Diversamente, a mediação objetiva restaurar as relações sociais no plano da legitimidade, possibilitando a manutenção dos vínculos existentes entre as partes. O mediador apenas facilita o diálogo, sem forçar ou impor um acordo. Não por acaso, o professor Luiz Alberto Warat reconhece a mediação como a ética da alteridade6.

Nesse ponto, cabe uma observação fundamental. Embora a polarização classificatória dos meios autocompositivos em conciliação e mediação funcione bem no plano teórico, trata-se, a bem da verdade, de um reducionismo conceitual incapaz de refletir a complexidade do mundo real. Frequentemente as técnicas e procedimentos de ambos os mecanismos dão origem a procedimentos mistos para atender as especificidades do caso concreto.

Essa distinção conceitual entre conciliação e mediação é empregada nos países de língua latina, sendo que nos países de common law não há uma preocupação efetiva com as diferenças entre mecanismos autocompositivos e a forma de atuação dos terceiros.

Ainda que seja pragmaticamente impossível uma divisão compartimentada e estanque entre os mecanismos autocompositivos, cumpre registrar que o novo Código de Processo adota uma distinção conceitual entre os institutos da mediação e da conciliação, aduzindo no artigo 165, §§ 2º e 3º que o conciliador deverá atuar preferencialmente nos casos em que não haja vínculo anterior entre as partes e poderá sugerir soluções para o conflito, ao passo que o mediador atuará preferencialmente nos casos em que não haja vínculo entre as partes e auxiliará os interessados a compreender as questões e interesses envolvidos no conflito através do restabelecimento do diálogo, sendo papel das partes identificar, por si mesmos, as soluções consensuais que gerem benefícios mútuos.

3 A importância do consenso a partir da obra de Jürgen Habermas

Buscando uma racionalidade capaz de dar conta da complexidade social, Habermas desenvolve sua teoria do agir comunicativo7 a partir de uma concepção de sociedade estruturada em dois níveis: o mundo da vida e o sistema.

O mundo da vida é o contexto social onde atuam os sujeitos da comunicação, que compartilham experiências a partir de uma “pré-compreensão” gramatical do mundo e, à luz das interpretações sedimentadas pelas gerações passadas. Constitui o contrapeso conservador contra os riscos de desentendimentos8. Habermas o define textualmente como:

[...] uma rede ramificada de ações comunicativas que se difundem em espaços sociais e épocas históricas; e as ações comunicativas, não somente se alimentam das fontes das tradições culturais e das ordens legítimas, como também dependem das identidades de indivíduos socializados9.

É no ambiente do mundo da vida que os membros da comunidade linguística relacionam-se entre si. As interações sociais cotidianas funcionam como uma espécie de pano de fundo que, ao mesmo tempo, reproduz o conhecimento (consensos sociais prévios enredados historicamente) e possibilita a construção de novos conhecimentos por meio da ação comunicativa.

O mundo da vida é institucionalizado juridicamente por mecanismos de regulação sistêmica10. Os sistemas utilizam a lógica instrumental para reproduzir materialmente os valores que pretende tutelar (adequação dos meios aos fins), enquanto o mundo da vida identifica-se pela reprodução simbólica de valores, valendo-se de uma rede de significados que refletem uma visão de mundo marcada por normas sociais convencionalmente aceitas, fatos objetivos e percepções subjetivas.

Habermas sustenta que as crises e patologias vivenciadas pelas sociedades modernas derivam, em grande medida, da crescente instrumentalização do direito e da monopolização dos debates normativos por acadêmicos e especialistas. A consequência mais nefasta dessa colonização do mundo da vida pelo sistema do direito é o progressivo distanciamento entre ambos os níveis11.

Para superar tais distorções, o autor retoma as discussões iluministas sobre a importância da participação cidadã na estruturação da sociedade civil diante do Estado. Nessa medida, o principal objetivo do agir comunicativo é definir parâmetros e procedimentos legitimadores do discurso, para que os sujeitos sociais possam produzir consensos capazes de integrar socialmente as expectativas dos cidadãos.

Na visão de Habermas, o consenso social que fundamenta a teoria da ação consiste no primeiro elo de formação da vontade coletiva. A organização da comunidade depende do consenso normativo preestabelecido pela tradição em forma de um ethos compartilhado. A formação do consenso não pressupõe a concordância generalizada, mas denota que a comunicação deve pautar-se pelo entendimento, isto é, que o sujeito que expõe um argumento deve aspirar à validade da mensagem exarada e ao reconhecimento de seus interlocutores, que são forçados, racionalmente, a posicionar-se sobre o que se diz, seja por assentimento ou discordância.

Eis como o autor apresenta as suas ideias:

A aceitabilidade racional depende de um procedimento que não protege “nossos” argumentos contra ninguém nem contra nada. O processo de argumentação como tal deve permanecer aberto para todas as objeções relevantes e para todos os aperfeiçoamentos das circunstâncias epistêmicas. Este tipo de prática de argumentação a mais inclusiva e contínua possível se subordina à ideia de uma limitação cada vez maior das formas de entendimento atuais com respeito a espaços sociais, tempos históricos e competências factuais. Com isto se alarga o potencial de réplica sobre o qual se comprovam as exigências de validez racionalmente aceitas12.

Na hipótese de dissenso, a racionalidade comunicativa exige que os interlocutores busquem restabelecer o consenso por meio da persuasão argumentativa. Nessa perspectiva, o ato de argumentar para a formação espontânea de concordâncias é uma prática necessária para a boa convivência. A ação linguística se orienta para o entendimento, para o qual normas e instituições servem como fundamento de legitimidade.

Como a estabilidade obtida pelo consenso é inconstante, as instituições sociais funcionam como compensações para o risco de dissensos. Além disso, a falibilidade dos argumentos inviabiliza um consenso definitivo, razão pela qual Arthur Kaufmann substitui a ênfase ao consenso pelo que descreve como princípio da convergência13. De tal modo, a verdade ou o acerto de um enunciado não resulta do consenso, mas do fato de que a maioria dos sujeitos comunga da mesma percepção sobre o tema. Ou seja: para a teoria da convergência, o fundamento de aceitabilidade do consenso não é o consenso ideal, porém a convergência de opiniões.

Habermas entende que uma vez abertos à argumentação, os atores sociais podem buscar cooperativamente reproduzir ou modificar a sua visão de mundo, influenciando-se mutuamente e repartindo experiências. A convivência implica em uma constante reconstrução comunicativa de consensos.

O perfil relacional dos homens ganha relevo, ainda à luz da teoria habermasiana, especialmente quando, em sociedades supercomplexas, a preocupação é identificar mecanismos destinados ao tratamento de conflitos e, fundamentados em uma proposta conciliativa.

Transpondo as análises de Habermas para do tratamento dos conflitos, observa-se que os mecanismos consensuais sobressaem como uma via alternativa de participação. A participação consensuada auxilia no restabelecimento da comunicação entre as partes, possibilitando que as mesmas se confrontem em busca do consenso. Consoante esclarece o autor:

A teoria da modernidade, que delineei em grandes traços, permite reconhecer que nas sociedades modernas se ampliam a tal ponto os espaços para interações desligadas de contextos normativos, que o sentido do agir comunicativo se torna “praticamente verdadeiro”, seja nas formas não institucionalizadas dos relacionamentos que se solidificam na esfera privada da família, seja no espaço público, cunhado pelos meios de comunicação de massa. [...] Talvez essa ameaça provocadora, que desafia as estruturas simbólicas do mundo da vida como um todo possa fornecer razões plausíveis para entender por que tais estruturas se tornaram acessíveis para nós14.

A justiça consensual consagra uma postura dicotômica das partes na construção de uma resposta para o conflito, enquanto os processos judiciais apresentam estrutura triádica, ou seja, cabe a um terceiro estranho à lide solucioná-la por intermédio de uma decisão imperativa.

Nesse contexto, as práticas comunicativas fundadas no consenso ajudam a reparar as insuficiências próprias da justiça adjudicada e permitem que os cidadãos participem diretamente da formação de consensos, como também que assumam os riscos e consequências do processo decisório15. Pretende-se com isso a pacificação sem decisão, em complemento ao papel historicamente desempenhado pelo Judiciário de decidir sem, obrigatoriamente, pacificar16.

Portanto, a teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas significa reconhecer a importância do agir comunicativo na resolução dos dissensos. Veja-se que uma noção de jurisdição mais abrangente corresponde justamente à perspectiva de superação da subjetividade solipsista do Direito tradicional – que pretende colonizar o mundo da vida pela imposição coercitiva de decisões –, mediante a criação de novos procedimentos que possibilitem a autonomização das partes.

4 A importância das práticas comunicativas para Axel Honneth

Em sua obra “Das Recht der Freiheit: Grundriß einer demokratische Sittlichkeit”, o filósofo alemão Axel Honneth dedica-se ao intento de esboçar uma teoria da justiça a partir da ideia hegeliana de luta por reconhecimento.

A intenção de elaborar uma teoria da justiça como uma análise da sociedade parte de quatro premissas fundamentais. De acordo com a primeira premissa, a reprodução das sociedades, até os dias atuais, está ligada à condição de um compartilhamento de ideais ou valores. Tais normas éticas determinam, não apenas condicionam “desde cima” as possibilidades de desenvolvimento sociais (ultimate values), como também produzem objetivos de educação mais ou menos institucionalizados, que devem guiar a vida dos indivíduos17.

Honneth acredita que este requisito transcendental de coerção e integração normativa se aplica, inclusive, para as sociedades heterogêneas (com formação étnica ou religiosa diversificada). Para o professor da Universidade Johann Wolfgang Goethe, de Frankfurt, se por um lado surge a pressão de que os valores éticos se generalizem e se estendem no sentido de conter os ideais das culturas minoritárias, mesmo assim, é inevitável orientar a reprodução material e a socialização cultural dos requerimentos das normas compartilhadas18.

A segunda premissa estabelecida pelo autor exige, como pontos de referência para a construção de uma teoria da justiça, apenas aqueles valores ou ideais que constituam, ao mesmo tempo, condições de reprodução da sociedade em cada caso. Assim, o conceito de justiça não pode ser entendido fora do contexto valorativo do âmbito social. Honneth apropria-se substancialmente do conceito hegeliano de justiça, segundo o qual o conteúdo prático do justo apenas pode ser encontrado caso a caso, a partir a partir do sentido interno de práticas de ação já estabelecidas.

Mas, à diferença das teorias kantianas de justiça – de que derivam as teorias da justiça de John Rawls e a teoria do direito de Habermas, Honneth esforça-se por reconstruir normativamente a sua teoria da justiça através da teoria da sociedade. Para tanto, o autor analisa os critérios de liberdade nas três esferas de reconhecimento: jurídica, moral e social. Nessa incursão, questiona-se sobre como cada esfera investigada contribui para assegurar a realização dos valores institucionalizados socialmente. Essa necessária aderência a um procedimento metódico de reconstrução normativa consiste na terceira premissa aceita pelo autor.

Ainda de acordo com o pensamento honnethiano, a imagem das sociedades contemporâneas que surge quando as preconcepções sobre o seu funcionamento são substituídas por investigações criteriosas, pode diferir muito do que é difundido hoje pelas ciências sociais oficiais, pois se destacam instituições e práticas que costumavam desaparecer em segundo plano.

Ao identificar as condições estruturais das sociedades contemporâneas, o professor alemão constrói um esboço sistemático daquilo que Hegel chamou a seu tempo de eticidade. Tanto como seu antecessor, Honneth não queria que o seu conceito de eticidade fosse entendido como uma simples descrição das formas de vida já existentes. Nessa linha, a quarta premissa baseia-se em que a aplicação do procedimento não se restrinja à ratificação de instâncias éticas reconhecidas. Ao contrário, a reconstrução normativa possibilitaria incluir, sob a rubrica de eticidade democrática (demokratische Sittlichkeit), práticas sociais capazes de contribuir com suficiente amplitude para a sedimentação dos valores comuns.

Sobre o ambicioso projeto de reformulação da teoria da justiça a partir da análise social, interessam particularmente para esta pesquisa, a segunda parte do livro, dedicada à liberdade jurídica.

Honneth afirma que a compreensão do sentido ético da liberdade jurídica depende, em primeiro lugar, do conhecimento sobre a função dos elementos jurídicos para a constituição da autonomia privada19. Isso porque o conjunto de direitos subjetivos, tal como conhecidos hoje, resulta do esforço por criar, em relação ao sujeito individual, uma esfera protegida das intromissões externas, sejam elas estatais ou não, dentro da qual seja possível exercer os seus objetivos particulares20.

Acontece que o sistema institucionalizado da liberdade jurídica exige de seus participantes um alto grau de abstração e, por esse motivo, dá margem a interpretações equivocadas. Diante de cenários de crises e disputas sociais, os indivíduos interiorizam a tal ponto o papel de portadores de direitos subjetivos que o potencial de entendimento pelo canal da ação comunicativa acaba esquecido.

Honneth aduz que “en los últimos años nada impactó de manera más fatal en los esfuerzos por llegar a un concepto de la justicia social que la disposición a convertir de antemano a todas las relaciones sociales en relaciones jurídicas […]”21. Esse abuso das liberdades jurídicas conduz ao que o autor define como patologia social da esfera jurídica.

O autor considera como patologias sociais os acontecimentos sociais que provocam ou intensificam a deterioração das capacidades racionais dos membros da coletividade de participar de formas decisivas de cooperação social. Ou seja, no âmbito da teoria social, as patologias surgem quando os modelos constitutivos de liberdade – jurídica ou moral – pendem para uma unilateralidade radical22.

Escreve o professor alemão:

El proceso de juridificación, que desde los años sesenta empieza a abarcar la familia, la escuela, el esparcimiento y la cultura con el objetivo de brindar protección estatal a la parte que sea más vulnerable en cada caso, llevó en poco tiempo a que los participantes de estas esferas antes reguladas informalmente ahora empiecen a entenderse a sí mismos como portadores de derechos: allí, donde estaban acostumbrados a comunicarse ante todo recurriendo a valores, normas y costumbres compartidas, pueden ahora, en grado creciente, adoptar mutuamente una actitud estratégica para imponer jurídicamente sus intereses amenazados frente a las otras partes en la interacción.

O lado obscuro da crescente jurisdicionalização das esferas da vida comunicativa consiste na necessidade de que os participantes do “jogo jurídico” planejem as suas ações desde uma perspectiva estratégica, ou seja, a partir de um “cálculo de êxito” frente às instâncias julgadoras, e então vão perdendo a habilidade de lidar com questões que não possam ser articuladas comunicativamente. As necessidades só adquirem valor quando possam ser subsumidas a normas gerais e abstratas.

Honneth exemplifica a dinâmica da patologia social do Direito com a disputa judicial retratada no filme estadunidense “Kramer vs. Kramer”. A partir do momento em que soube que sua então mulher, Joanne, decidiu disputar judicialmente a guarda do filho, Ted Kramer começa a calcular todas as suas ações cotidianas, levando em conta o grau de influência que elas poderiam exercer sobre a formação do convencimento do juiz. Depois que a empresa o despede, ele se dispõe a aceitar um trabalho com o salário mais baixo unicamente porque um posto fixo poderia contribuir para demonstrar sua aptidão para o exercício da guarda. Da mesma forma, toda a interação do protagonista com a criança articula-se sob uma perspectiva de amor e cuidado que possam ser publicamente demonstráveis23.

Conforme observa o autor, o filme capta com maestria o curso que pode tomar a patologia da liberdade jurídica: na disputa pela guarda, os pais, provocados pelo Judiciário a pensarem estrategicamente, perdem de vista que atrás das intenções perceptíveis de êxito, ainda existem necessidades e dependências comunicativas. Quanto mais se prescinda do transfundo do mundo da vida (como o denomina Habermas); quanto mais se infiltre nas partes em conflito a lógica processual, maior será a tendência de considerar válida apenas a categoria de interações jurídicas, reconhecidas pelo sistema como forma legítima de interrupção da comunicação. A liberdade negativa, que o direito abre como uma oportunidade, converte-se, modernamente, em estilo de vida24.

O autor conclui que a liberdade associada ao direito moderno pode ser distorcida ou mal interpretada em dois sentidos. No primeiro, os direitos subjetivos, pensados como garantia de proteção, aparecem no lugar de toda orientação de ação mediada intersubjetivamente. Em tais hipóteses, as pessoas condicionam suas ações a objetivos puramente privados e perdem a conexão com as práticas comunicativas do seu entorno social.

No segundo sentido, a compreensão equivocada da liberdade jurídica provoca um sentimento de rejeição aos laços afetivos e sociais, procurando preencher os vazios deixados por eles com direitos subjetivos. Quando isto acontece, verifica-se uma postergação ou uma interrupção dos fluxos comunicativos, de maneira que o surgimento de aspirações ou projetos de vida perenes não pode prosperar. As pessoas são moldadas, pelo caráter suspensivo do direito, a manterem-se livres de toda decisão vinculativa25.

Ao final de sua incursão filosófica, Honneth pergunta-se de onde proviriam os recursos morais capazes de fomentar uma cidadania democrática, em oposição às anomalias percebidas na realização social da liberdade jurídica.

Para responder a esta indagação, ele registra preliminarmente que o instrumento por excelência dos processos históricos de realização dos princípios da liberdade institucionalizada não é o direito, e sim as lutas sociais, por sua adequada compreensão dos contextos sociais. Disso resulta que as teorias de justiça contemporânea não podem orientar-se segundo um paradigma de Direito; ao contrário, é preciso considerar igualmente as influências da sociologia e da historiografia, disciplinas que sempre estiveram atentas às transformações do comportamento moral cotidiano26.

Honneth defende que o sistema social de eticidade democrática representa uma rede complexa de dependências recíprocas, em que a realização da liberdade, numa esfera de ação, depende de que também se realizem em outros campos os mesmos princípios de liberdade fundamentais27. Para que as esferas da vida se interconectem, é preciso democratizar os espaços de interação, uma vez que, para o autor, a construção da vontade pública constitui o substrato e o esqueleto das liberdades prometidas pelas sociedades contemporâneas28. In verbis:

Dicho en el lenguaje de los debates actuales acerca de la justicia política, ello quiere decir que las teorías de una democracia deliberativa tienen como condición previa necesaria circunstancias ‘justas’, es decir, conforme a sus propios principios, en la esfera económica y en las familias, y que no se las puede considerar como resultado de un proceso que ellas colocan en el centro. La idea de la ‘eticidad democrática’ da cuenta de esta circunstancia cuando considera realizada la democracia solo donde verdaderamente se han puesto en práctica los principios de libertad institucionalizados en las distintas esferas de acción y donde estos están reflejados en prácticas y costumbres; por lo tanto, tiene lugar, entre las respectivas esferas, la misma relación de reciprocidad contributiva que produce, dentro de cada una de ellas, entre las actividades especificadas por el rol de cada uno de los individuos, unidos en un ‘nosotros’.

Os estudos desenvolvidos por Axel Honneth justificam, no plano teórico, a disseminação dos mecanismos autocompositivos de resolução de conflitos, bem como autorizam uma aproximação entre o Direito e estas práticas emancipatórias.

5 Considerações Finais

O presente artigo ocupou-se de investigar de que maneira as teorias do agir comunicativo de Habermas e as concepções honnethianas sobre a liberdade jurídica contribuíam para ressaltar a importância da construção de consensos em tempos hipermodernos.

A análise demonstrou que a disseminação das práticas conciliatórias tem o potencial de provocar uma mudança substantiva no entendimento sobre a administração dos conflitos.

Além da dimensão pacificadora, a autocomposição também instrumentaliza o processo de emancipação social e de consolidação das liberdades individuais dos cidadãos, pois autonomiza os indivíduos a assumirem o controle sobre o desfecho de seus relacionamentos conflituosos, instando-os ao debate e ao exercício de se colocar no lugar do outro para entender os seus anseios e as suas pretensões.

Percebidos como prática social transformadora, os mecanismos autocompositivos podem habilitar as comunidades a “coser-se a si mesmas”, sem a influência de ideologias ou referencias exógenas. Quanto à sua institucionalização pelo Judiciário, o estudo das obras de Habermas e Honneth permite concluir que o Judiciário poderá assumir a importante missão de educar para a autonomia cidadã pessoas habituadas com a lógica adversarial do conflito, para que, em longo prazo, as próprias comunidades desenvolvam a mediação como paradigma de justiça.

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Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, vol. 13, n. 1, p. -250, Jan.-Abr. 2017 - ISSN 2238-0604

[Received: Feb. 25, 2016; Approved: Nov. 15, 2016]

DOI: http://dx.doi.org/10.18256/2238-0604/revistadedireito.v13n1p235-250

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