1-2322

A propósito do novo código de processo civil brasileiro*

About the New Brazilian Civil Procedure Code

Manuel Atienza(1); Roberta Simões Nascimento(2)

1 Professor Catedrático de Filosofia do Direito na Universidade de Alicante (Espanha). Autor do recém-lançado no Brasil Curso de Argumentação Jurídica (Curitiba: Alteridade Editora, 2017). E-mail: [email protected]

2 [Tradutora]. Instituto Legislativo Brasileiro, Mestra em Direito pela UnB. Advogada do Senado Federal. Advogada do Senado Federal. E-mail: [email protected]

Resumo

O presente trabalho reflete sobre os sistemas tradicionais de criação judicial do direito e insere as súmulas brasileiras como um terceiro procedimento e as respectivas implicações. Aborda a maneira como o novo Código de Processo Civil brasileiro trata a tensão entre a certeza (a estabilidade) e a justiça (a coerência) e as interpretações fornecidas pela doutrina. Ao fim, aponta o que é verdadeiramente importante para o bom funcionamento do sistema: a obrigação de motivação adequada das decisões por parte dos órgãos públicos.

Palavras-chaves: Precedentes. Súmulas. Novo Código de Processo Civil.

Abstract

The present work reflects on traditional systems of judicial creation of law, and incorporates the Brazilian precedents system (súmulas) as a third kind of procedure and the resulting implications of this. It addresses how the new Brazilian Code of Civil Procedure deals with the tension between certainty (stability) and justice (coherence) and the interpretations that doctrine provides. Finally, it points out what is really important for the proper functioning of the system: the obligation for public bodies to adequately justify their decisions.

Keywords: Precedents. Súmulas. New Brazilian Code of Civil Procedure.

1.

1.1. Em todos os sistemas jurídicos, o ao menos nos sistemas jurídicos desenvolvidos, os juízes contribuem para a construção do Direito, ou seja, criam normas generais que têm algum grau de vinculação sobre os juízes inferiores e sobre eles mesmos. Tradicionalmente existiram duas formas de fazê-lo: mediante o precedente, nos países de common law; e mediante a jurisprudência, nos de civil law ou de Direito codificado.

As diferenças entre esses dois procedimentos têm a ver, entre outras coisas, com: a) a maneira de formação das normas e de modificá-las; b) o conteúdo mais ou menos amplo das normas criadas; e c) o grau de vinculação das normas e sua localização no sistema de fontes jurídicas ou de Direito.

1.2. Assim, na formação dos precedentes: a) têm grande relevância os fatos e as circunstâncias dos casos resolvidos pelos tribunais; b) as normas criadas não devem ser muito abstratas e gerais (embora sim universalizáveis), precisamente por sua vinculação com os fatos do caso; e c) reconhece-se às regras criadas (às rationes decidendi) um caráter vinculante (obrigatório), e ademais se atribui a ela um lugar de destaque no sistema de fontes.

1.3. Ao contrário, onde se segue o outro procedimento, o da jurisprudência: a) a criação e modificação das normas judiciais não estão ligadas às circunstâncias concretas dos casos resolvidos pelos juízes; b) as normas – a doutrina jurisprudencial – tendem a se construir de maneira mais abstrata do que ocorre com os precedentes; e c) o grau de vinculação da jurisprudência sobre os tribunais inferiores ou sobre os próprios tribunais que a geraram é menor (fala-se às vezes de “jurisprudência indicativa” frente a “precedentes vinculantes”) e ocupa um lugar secundário no sistema das fontes (no caso espanhol, o art. 1 ap. 6 do Código Civil assinala que a jurisprudência “complementará o ordenamento jurídico com a doutrina que de modo reiterado estabeleça o Tribunal Supremo ao interpretar e aplicar a lei, o costume e os princípios generais do Direito”).

1.4. Essas diferenças, em todo caso, não são de tipo qualitativo, mas sim de grau: a consideração dos elementos do caso podem ser maior ou menor, as normas criadas, mais ou menos gerais e abstratas, e o nível de vinculação, também variável. Isso faz com que possam existir (e de fato existam) sistemas mistos, e em dois sentidos: a) no de que podem se situar em algum lugar intermediário entre os extremos do precedente e da jurisprudência; b) no de que, conforme a matéria, o tipo de tribunal, etc., podem seguir um ou outro desses dois procedimentos de criação judicial do Direito.

2.

2.1. As súmulas brasileiras (e penso que algo parecido se pode dizer das chamadas “teses de jurisprudência” no Direito mexicano) podem ser consideradas como um terceiro procedimento de criação judicial do Direito, em relação com os dois anteriores. De alguma maneira representam uma combinação do método da jurisprudência enquanto à formação e ao conteúdo das normas criadas, e do precedente, em relação à sua força vinculante e ao seu lugar no sistema das fontes. Mas sua característica mais marcante, que as assemelha às leis e as distingue tanto dos precedentes quanto da jurisprudência, é seu formato em um texto canônico: os enunciados das súmulas aparecem, como ocorre com as leis, fixados em documentos com caráter oficial.

2.2. Esse terceiro procedimento de criação judicial do Direito, cuja introdução obedece a compreensíveis motivos de simplificação e uniformização do Direito, não deve ser considerado como ilegítimo, isto é, contrário aos princípios do império da lei e da divisão de poderes que, como se sabe, são componentes fundamentais do Estado de Direito. Isso por diversas razões. Entre outras:

1) Porque seu formato em um texto canônico, oficial (o traço mais característico das súmulas) é também uma questão de grau: muitos ou alguns dos precedentes e das linhas jurisprudenciais podem chegar a alcançar um nível de formalização equivalente, ou parecido, ao das súmulas.

2) Porque o sistema foi criado pelo legislador. Goza, pode-se dizer, de uma legitimidade derivada ou delegada. E as súmulas podem ser derrogadas ou superadas por via legislativa.

3) Porque os enunciados das súmulas (como acontece com os precedentes, com a jurisprudência e com as próprias leis) têm – quando oferecem dúvidas – que ser interpretados, e isso terá que ser feito de acordo com as leis e, obviamente, de acordo com a constituição. Lembre-se que um precedente, em um país de common law, não é vinculante se vai contra uma lei do Parlamento; e a matéria regulada mediante precedentes pode passar a ser regulada por leis.

Existe, nada obstante, aqui um problema de legitimação das súmulas (vinculantes) quando quem as emite é o Tribunal Constitucional e em matéria constitucional. Porém, na realidade, esse problema (o do caráter contramajoritário dos tribunais constitucionais) não é muito diferente se, em lugar do procedimento das súmulas, o Tribunal constitucional seguisse a via do precedente ou da jurisprudência.

3.

A existência de um sistema de fontes complexo (como o do ordenamento jurídico brasileiro atual) é um aspecto mais da crescente complexidade do Direito no Estado constitucional e gera um problema de insegurança jurídica (e de justiça) grave na medida em que produza o resultado – como tantos já apontaram – de que casos iguais recebem um tratamento diferente. Dito de outra maneira, não parece facilmente alcançável, de maneira conjunta, a estabilidade do Direito (a segurança jurídica) e a coerência do mesmo, isto é, a justiça substantiva (a adequação das decisões judiciais aos princípios constitucionais). Esses dois grandes fins ou valores jurídicos não estão necessariamente em tensão (de fato, a segurança é um dos princípios de justiça do Estado constitucional; e nunca é demais recordar: sem a certeza do Direito não seria possível aos indivíduos gozarem de autonomia), mas podem entrar, em alguma ocasião, em conflito. Nesse caso, é necessário proceder a uma ponderação, a um equilíbrio razoável, que poderia levar em alguma ocasião a sacrificar um pouco de certeza, com a finalidade de obter uma solução mais justa; ou, pelo contrário, a se contentar com uma decisão que no seja perfeitamente justa, mas que não corrompa o sistema jurídico, isto é, que não ponha em risco um funcionamento aceitável das instituições.

Na realidade, não há nada novo, mas sim um conflito e uma necessidade de equilíbrio que se apresenta no funcionamento de qualquer sistema jurídico. Assim, o precedente, baseado na doutrina do stare decisis, é um artefato idealizado para lograr que um sistema de case law possa produzir resultados previsíveis, mas para evitar a rigidez, os desajustes (a imobilidade), que uma aplicação estrita da doutrina gera foram introduzidas, entre outras coisas, as técnicas do distinguishing e do overruling. E em relação às leis, o remédio tradicional para evitar ou corrigir uma aplicação formalista das mesmas é a clássica equidade (epieikeya) aristotélica que, como enunciou o filósofo grego, vem a consistir na retificação da lei geral e abstrata (respeitando o princípio da universalidade: sem este não haveria igualdade) para adequar o texto às circunstâncias do caso que o legislador não pôde prever. Considerados esses procedimentos em seu nível profundo, se pode dizer que em um e outro se trata de recorrer a um mesmo tipo de raciocínio derrotável ou revisável. Ou, dito de outra maneira, nossos sistemas se baseiam em regras que podem ser aplicadas na maioria das ocasiões mediante procedimentos subsuntivos (por isso as regras são mecanismos de certeza); porém nem sempre: às vezes surgem situações que levam a reconhecer a existência de exceções implícitas nas regras, o que requer por sua vez o manuseio dos princípios. O funcionamento de um sistema jurídico, sobretudo no Estado constitucional, exige, portanto, conceber nossos ordenamentos em termos de regras e de princípios; qualquer problema jurídico de alguma complexidade envolve o uso (ao menos) de esses dois tipos de enunciados e das técnicas argumentativas requeridas para lidar com eles (simplificando: a subsunção e a ponderação).

4.

O novo Código de Processo Civil trata também de enfrentar esse problema, e busca um equilíbrio entre os dois grandes valores aos quais acabo de me referir: a certeza (a estabilidade) e a justiça (a coerência). Penso que isso é o que explica que tenha dado lugar a duas interpretações diferentes, conforme a ênfase que se ponha em uma ou outra dessas duas (imprescindíveis) finalidades que devem realizar os sistemas jurídicos.

Assim, alguns insistiram sobretudo na necessidade de promover a simplificação e a estabilidade do sistema (a segurança jurídica); e se enfatiza então (e em termos positivos) a tendência a transformar os tribunais superiores em tribunais de vértice (a realçar as relações de hierarquia entre os tribunais), assim como a necessidade de uma interpretação que poderíamos qualificar de “formalista” das súmulas (e também dos precedentes, da jurisprudência e da legislação), particularmente por parte dos tribunais inferiores; estes últimos, diz-se às vezes, não teriam propriamente que interpretar (ou teriam que fazê-lo poucas vezes), mas sim na verdade aplicar o Direito fixado nas instâncias superiores. Ao passo que outros, pelo contrário, veem no novo código (ou promovem que seja interpretado assim) a introdução de una cultura exigente da motivação, o que os leva a sublinhar os traços característicos dos precedentes em face dos da jurisprudência (a maior atenção às circunstâncias que deram lugar ao precedente e o cuidado em não formular regras excessivamente abstratas; alguns falam inclusive de um “direito subjetivo” à distinção, ou seja, a que os juízes usem a técnica do distinguishing), para reduzir o carácter vinculante das súmulas e para potencializar ao máximo os elementos de participação e de diálogo (caberia dizer também, de “horizontalidade”) que lhes parece encontrar no novo procedimento. De certo modo, o Direito judicial – de acordo com esses últimos autores – seria, na realidade, um Direito não produzido exclusivamente pelos juízes, mas sim fruto da inter-relação dialógica que se dá entre os diversos sujeitos processuais (o que inclui também os advogados e as partes no processo).

5.

A primeira dessas duas interpretações (a que chamemos interpretação “formalista”) me parece que é inaceitável na medida em que ela suponha não tomar em consideração as razões subjacentes aos enunciados (as normas) de origem judicial e, em geral, na medida em que negligencie o problema da interpretação. Como é óbvio, as súmulas, assim como o resto dos enunciados normativos, podem requerer ser interpretadas, e o formalismo (o apego excessivo aos textos, a desconsideração do contexto, das consequências, etc.) não é uma teoria adequada da interpretação. Porém acerta, na minha opinião, ao assinalar que as normas de origem judicial operam (com uma força maior ou menor segundo uma série de circunstâncias) como verdadeiras razões autoritativas ou independentes do conteúdo; quer-se dizer com isso que são razões às que os juízes recorrem (devem recorrer), em parte, pelo caráter justificado de seu conteúdo, mas também (legitimamente) porque provêm de um órgão ao que se reconhece autoridade, e exatamente por isso (o que implica que continuam sendo razões, embora o juiz que siga o critério da autoridade possa pensar que esse critério é equivocado). Isso não significa, naturalmente, que as razões autoritativas tenham que prevalecer sempre (podem ser derrotadas por razões de tipo substantivo), mas devem ser consideradas, ao menos, como razões prima facie de grande força e que somente em casos extremos poderiam ser substituídas por outras. É, na realidade, o que ocorre no sistema clássico do precedente: se os juízes têm que justificar quando se afastam do precedente (e recorrem por isso ao distinguishing ou ao overruling) é exatamente porque reconhecem o caráter vinculante (autoritativamente vinculante) do mesmo.

6.

A segunda interpretação do novo código (a qual poderíamos chamar “hermenêutica”) pareceria ser, em principio, a mais adequada: a que melhor se ajusta aos princípios do Estado constitucional e também a que melhor encaixa com uma concepção pós-positivista ou argumentativa do Direito. Porém tal e como eu a vi formulada em escritos de alguns importantes juristas brasileiros (estou pensando em artigos recentes de Dierle Nunes ou de Lenio Streck), apresenta, na minha opinião, algumas dificuldades de valor considerável.

a) Por exemplo, pretende-se que o novo código deve cumprir uma “função contrafática” (a expressão é de Dierle), no sentido de que o mesmo deve fazer possível uma construção dos precedentes mediante um “diálogo genuíno” que há de ter lugar entre os juízes, os advogados das partes e outros participantes no processo. Porém tal coisa, na minha opinião, obedece a uma concepção idealizada, distante da realidade, em relação não somente com o processo, mas sim com o Direito em seu conjunto. E uma concepção que talvez tenha a ver com a famosa tese alexyana de que a argumentação jurídica é um caso especial da argumentação prática racional. Esta última tese, na minha opinião, é simplesmente equivocada: não dá conta da enorme variedade de contextos jurídicos nos quais se argumenta (uniformiza ilegitimamente todos os tipos de argumentação jurídica) e oferece uma visão idealizada e deformada do Direito. O Direito não é um grande diálogo no qual participam, e em condições de plena liberdade e igualdade (suponho que se não, não seria “genuíno”), os juízes de qualquer grau, juntamente com os advogados, os doutrinadores, etcétera. O Direito (a prática jurídica argumentativa) contém, obviamente, um componente importante do que se costuma chamar diálogo racional, mas também muitos ingredientes de caráter estratégico; e, sobretudo, o Direito tem um componente autoritativo inevitável. Eu não falaria, por isso, de “função contrafática”, mas antes de função “ideológica”, dado que me parece de impossível cumprimento (no sistema judicial brasileiro e no de qualquer outro país). E daí, talvez, a pretensão na qual tanto insistem esses autores de que para melhorar a situação, o único de que se necessitaria é que se cumprissem as normas do novo código: as que estabelecem as condições para que uma decisão judicial se considere fundamentada (art. 489), a obrigação de os tribunais de “uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente” (art. 926), e outra série de requisitos que os juízes e tribunais devem observar na tomada e justificação de suas decisões (art. 927). Por exemplo, entre estes últimos requisitos se inclui que “A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia” (art. 927, § 4º), que deverá ser lida conjuntamente com o art. 489, § 1º, II, no qual se estabelece que não se considerará fundamentada (será nula) qualquer decisão judicial que empregue “conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso”. Não me parece tão fácil de cumprir.

b) Nega-se, consequentemente, a dimensão autoritativa do Direito ou, se se prefere, o aspecto autoritativo do Direito judicial. Assim, se eu entendi bem Streck, o que este afirma é que no Direito brasileiro as decisões judiciais obrigam, mas o fariam “por coerência e integridade”, o que parece querer dizer que não obrigam porque se reconheça autoridade a quem pronuncia essas decisões. Já antes disse que esse ponto de vista me parece equivocado. E agora acrescento que esse equívoco pode ter origem em uma tese que também julgo insustentável, em relação a como funciona o precedente (no common law): diz-se às vezes (tese que parece aceitar também Streck) que a ratio decidendi de um caso é a regra que constrói um tribunal posterior quando tem que considerar o caso; porém isso (esta forma cética de entender a ratio) leva certamente ao absurdo, visto que (como algum autor apontou) isso quer dizer, por exemplo, que um tribunal nunca pode ter entendido (interpretado) mal uma ratio de um caso anterior.

c) E nega-se que a argumentação jurídica tenha (como antes assinalava) um importante componente de caráter dedutivo, silogístico. Sobre isso, vale a pena recordar (dado que é um autor muito presente na cultura jurídica brasileira nos últimos tempos) a insistência, e inclusive diria a radicalidade, com a qual MacCormick (da mesma forma, ainda mais, que Alexy e muitos outros teóricos da argumentação jurídica) defendeu a tese de que a estrutura profunda, e com frequência superficial, do raciocínio justificativo judicial (incluído o raciocínio com precedentes) é dedutivo. Porém, ao que parece, a lógica dedutiva (é dizer, a lógica) não é algo de muito agrado dos autores hermenêuticos.

7.

Há um fator muito importante do que depende o bom funcionamento do Direito judicial e ao qual, parece-me, não se prestou toda a atenção que merecia, em relação ao novo Código de Processo Civil. Trata-se do que se poderia chamar o fator institucional (de desenho institucional). E o que quero dizer com isso é o seguinte.

Um propósito muito importante dos redatores do código (a “função contrafática” antes mencionada) parece ter sido o de contribuir para que se produza uma mudança na cultura jurídica (judicial) brasileira, em matéria de motivação das decisões judiciais. Para isso, regulou-se mediante uma série de obrigações, nulidades, etc. o comportamento dos juízes com a ideia de que, dessa maneira, obter-se-ia também uma elevação considerável da qualidade argumentativa das sentenças e de outros tipos de decisões judiciais. Pois então, penso que não se prestou a devida atenção a uma série de fatores institucionais (não redutíveis exclusivamente a termos normativos) que podem ser mais determinantes, inclusive que os anteriores (o requerimento de uma motivação exigente), para produzir essa mudança cultural. Por exemplo, em relação ao funcionamento clássico do precedente há, penso, praticamente unanimidade na hora de considerar que, para que esse sistema possa funcionar (ou possa funcionar bem), é conveniente que os juízes que ocupam o vértice da pirâmide não sejam muitos, que exista uma hierarquia judicial bem definida e, sem dúvida, que os juízes que estabelecem os precedentes gozem de um grande prestígio. Tudo isso que, naturalmente, se vincula com uma série de outras questões, como as seguintes: qual é o sistema de recrutamento e de promoção dos juízes; como estão organizados os tribunais, quais procedimentos (seriatim ou mediante relatores) se utiliza na tomada de decisões e na motivação das mesmas; qual papel desempenham as equipes de assessores dos juízes na redação das sentenças; até que ponto existe ou não um funcionamento colegiado dos tribunais (que impulsione para que o tribunal fale dentro do possível “com uma só voz”); qual é o número de casos que têm que resolver anualmente os tribunais superiores; qual é o estilo de redação das sentenças (são talvez excessiva, desnecessariamente, extensas?); e, ao fim, até que ponto os juízes (sobretudo, os que integram os órgãos supremos) incorporam as típicas – e imprescindíveis – virtudes judiciais da prudência e da moderação ou auto-restrição.

8.

Outro aspecto que me parece muito importante considerar e que está, pelo que pude ver, muito mais ausente na discussão entorno ao novo Código de Processo Civil, é o papel que nessa mudança de cultura jurídica deveria desempenhar a dogmática. Na minha opinião, e como antes apontei, o modelo de diálogo cooperativo entre os juízes e os advogados das partes no processo não pode funcionar, porque carece de realismo: descansa em uma concepção idealizada e, penso, falsa do que é o processo e o Direito. Porém talvez não seja necessário renunciar completamente o modelo, ao que se pretende lograr com ele, mas sim que se poderia tentar simplesmente mudar o cenário e também, de certo modo, os atores; quero dizer, a instância que, parece, deveria ser chamada a desenvolver essa função não é bem a jurisdição, mas a própria dogmática jurídica.

A dogmática, efetivamente (ou a dogmática bem entendida), tem como uma de suas funções principais a de racionalizar e sistematizar o Direito: ordená-lo para facilitar sua interpretação e aplicação, e também, ao menos de vez em quando, para propor critérios de reforma do Direito. Conta, para isso, com recursos que são claramente superiores àqueles dos que podem dispor os juízes e os advogados no contexto de um processo: essencialmente, os dogmáticos estão pessoalmente separados dos conflitos e das respectivas soluções apresentam às questões jurídicas; não estão pressionados pelo tempo (ou o estão em medida muito menor que os juízes e os advogados das partes); podem dispor, consequentemente, de mais amplas informações, de maneira que o estudo dos problemas pode ser mais profundo e completo; e suas soluções, definitivamente, poderiam aspirar a um maior grau de sistematicidade e de coerência. Devo esclarecer aqui que não estou pensando em uma concepção da dogmática do tipo da chamada “jurisprudência de conceitos”, mas sim que meu modelo se aproxima mais ao do “segundo Ihering”: a dogmática, na minha opinião, deve ser concebida como uma técnica prática (tecno-praxis), uma técnica dirigida a encontrar respostas para problemas práticos (por isso, a elaboração de conceitos não é um fim em si mesmo, mas sim meramente um instrumento), e que exige levar em consideração também elementos da filosofia prática; de alguma maneira, a dogmática jurídica é filosofia aplicada à resolução de certo tipo de problemas práticos.

Um exemplo de trabalho dogmático que obedece a esse esquema (embora não seja o único exemplo possível) é o que nos Estados Unidos se chamou os Restatements of the Law. Trata-se, como talvez saiba o leitor, de uma tarefa levada a cabo pelo American Law Institute (uma instituição privada), a partir dos anos 20 do século XX e que consistiu em publicar uma série de tratados sobre diversas matérias (contratos, ilícitos, etc.). Do Instituto formam parte juristas teóricos e práticos (juízes e advogados) de grande prestígio que buscam extrair o “black letter law” a partir dos casos resolvidos pelos juízes. O resultado dessa “reformulação” do Direito não tem um caráter vinculante (oficialmente vinculante) mas, de fato, tem uma considerável força de persuasão: são uma fonte de Direito, em um certo sentido da expressão. Os diversos Restatements (redigidos muito cuidadosamente e de maneira nada apressada) incluem as regras e os princípios do common law, juntamente com comentários, ilustrações e discussões acerca dos casos que geraram essas normas; muitas vezes há também uma proposta de regulação ou, mais exatamente, indica-se qual se considera a “melhor visão” de tal problema.

Para dar uma ideia um pouco mais concreta. O segundo Restatements de Contratos (de 1981) contém uma seção, a 205, dedicada à obrigação geral de boa-fé aplicável às relações contratuais. Em boa medida, a seção está inspirada pela proposta de Robert Summers (em trabalhos que havia publicado nas décadas anteriores), consistente em entender que o conceito de “boa-fé” opera fundamentalmente como um “excludente”, ou seja, não tem por si mesmo significado, mas sim serve para excluir uma ampla variedade de formas heterogêneas de má-fé. E daí que, em uma das subseções (a d), se assinalem (sem pretensão de exaustividade) uma série de condutas consideradas em diversas decisões judiciais como má-fé contratual. Não parece que um método semelhante poderia servir de ajuda para tornar mais produtivo, por exemplo, um artigo como o 489, § 3º, do novo Código de Processo Civil (ou parte dele): “A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé”?

É certo, de toda forma, que a elaboração dos Restatements não esteve isenta de críticas. Mas me parece que é uma via que valeria a pena explorar, embora obviamente, se se quisesse transferir essa experiência ao Direito brasileiro (a algum de seus ramos), não se poderia proceder exatamente da mesma maneira que o Direito estadunidense, entre outras coisas, pela singularidade que envolvem as súmulas.

9.

Um uso adequado do Direito judicial (e uma interpretação adequada do novo código) requer sem dúvida uma concepção do Direito e da argumentação jurídica equilibradas, que deem conta tanto do aspecto autoritativo do Direito e do papel da dedução na justificação das decisões, quanto da necessidade de considerar o Direito como uma empresa dirigida ao alcance de fins e valores, o que exige, entre outras coisas, recorrer às vezes à ponderação. Isso é incompatível, na minha opinião, com o formalismo jurídico (na realidade, com qualquer forma de positivismo jurídico: nem todas elas são formalistas), mas também com o que se costuma chamar neoconstitucionalismo, e com as aproximações “hermenêuticas” ao Direito, que tanta difusão têm no Brasil. O neoconstitucionalismo é uma concepção do Direito extremamente frágil do ponto de vista teórico e cujo principal déficit, no meu juízo, consiste em não cuidar do componente autoritativo do Direito: não assume que o Direito, em uma ampla medida, apresenta-se e opera como um conjunto de regras, de razões autoritativas independentes do conteúdo; nesse sentido, vem a ser a contrapartida do formalismo, que reduz todo o jurídico a essa dimensão, a regras. E pelo que faz à hermenêutica, à parte de que os autores que seguem essa inspiração incorrem com certa frequência em afirmações que me parecem questionáveis (veja-se o ponto 6 antes), o principal inconveniente que apresenta essa concepção, no meu juízo, não é tanto esse, mas sim a propensão de apresentar como grandes descobertas teóricas o que não passam de meras banalidades expressadas, isso sim, em uma linguagem muito mais confusa e imprecisa. Uma teoria do Direito e da argumentação jurídica que possa servir para a prática, em síntese, necessita de certo grau de formalização e de sistematização, e isso não se pode encontrar (ou eu não o encontrei) nos autores hermenêuticos que, no melhor dos casos, não me parece que ofereçam outra coisa que uma prototeoria do Direito.

O que se necessitaria desenvolver, então, é uma concepção pós-positivista do Direito que, na minha opinião, deve se diferenciar claramente tanto do positivismo jurídico quanto do neoconstitucionalismo (ou da hermenêutica). Penso que elementos importantes dessa teoria podem ser encontrados nas obras de autores como Dworkin, Alexy, MacCormick ou Nino, embora considero que nessas teorias haveria que introduzir alguma correção para evitar certa tendência à idealização do Direito (do Direito dos Estados constitucionais) e a não dar conta adequadamente dos elementos de conflito que contém a experiência jurídica. Dito de outra maneira, uma teoria do Direito deve olhar em direção à filosofia moral e política, mas também em direção às ciências sociais, pois embora o Direito deva aspirar à correção moral, o que o gera não é outra coisa que o conflito social.

10.

Por fim, a conclusão mais importante a que cheguei depois de ter estudado a problemática do precedente e das novidades introduzidas pelo novo Código de Processo Civil brasileiro talvez possa parecer paradoxal. Pois não é outra que a reivindicação do caráter unitário do método jurídico e, portanto, a essencial afinidade de qualquer procedimento argumentativo referente ao Direito, seja em se tratando de um sistema de common law, de um de Direito legislado, seja de algum sistema que combine elementos de ambos, como hoje em dia é o usual. As técnicas argumentativas são essencialmente similares e as teorias do Direito necessárias para operar com elas não podem tampouco se diferenciar muito entre si. Isso significa, entre outras coisas, que o jurista bem treinado em argumentação jurídica em um sistema de tipo europeu-continental, não vai encontrar grandes dificuldades na hora de manusear técnicas características do common law (o distinguishing, por exemplo, não é mais que uma forma de argumento analógico).

Vistas as coisas de perto, o que (aos juristas da tradição de Direito legislado) nos parece admirável do funcionamento clássico do precedente no common law não é, na realidade, outra coisa que a prática de motivação cuidadosa de suas decisões por parte dos juízes; algo, além do mais, que não responde às exigências de carácter político (democrático), mas sim a razões internas, a que o sistema não poderia funcionar se não se pudesse conhecer com certa precisão quais são as rationes decidendi nas quais se baseiam as decisões judiciais. Mas então o verdadeiramente importante (o que requer toda uma mudança de cultura jurídica) não será tanto a incorporação do sistema do precedente (além disso, em qualquer dos ordenamentos jurídicos evoluídos o precedente e outras formas de Direito judicial devem desempenhar um papel relevante; porém o Direito não é somente o Direito judicial, não é só o que fazem os juízes), mas sim a assunção da obrigação de motivação adequada das decisões por parte dos órgãos públicos, e não só dos juízes. Esse último é um traço predominante do constitucionalismo contemporâneo que explica e justifica a importância crescente dos enfoques argumentativos do Direito.

Nota do autor

* Exponho aqui a parte final (as conclusões) da palestra proferida no dia 13 de setembro de 2017 no Superior Tribunal de Justiça.

Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, vol. 13, n. 3, p. 3-15, Set.-Dez., 2017 - ISSN 2238-0604

[Artigo convidado]

DOI: https://doi.org/10.18256/2238-0604.2017.v13i3.2322

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