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A repetição do indébito tributário indireto e a (i)legitimidade do consumidor final: mudança de paradigma ou casuísmo do Superior Tribunal de Justiça?

The indirect tax refund liability and the legitimacy of the final consumer: paradigm change or casuism of the Superior Court of Justice?

Paulo Rosenblatt(1); Ítalo de Oliveira Gurgel Filho(2)

1 Doutor em Direito Tributário pelo Institute of Advanced Legal Studies - IALS, Universidade de Londres, mestre em Direito Público pela Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco – FDR/UFPE, graduado em Direito pela FDR/UFPE. Professor de Direito Financeiro e Tributário na Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Procurador do Estado de Pernambuco – PGE/PE, Coordenador do Centro de Estudos Jurídicos - CEJ da PGE/PE. Advogado. Membro efetivo do Instituto dos Advogados de Pernambuco - IAP.
E-mail: [email protected]

2 Pós-graduando em Direito Tributário e Gestão Corporativa pela Universidade Federal de Pernanbuco - UFPE. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Advogado.
E-mail: [email protected]

Resumo

O artigo 166 do Código Tributário Nacional (CTN), que trata da repetição do indébito tributário indireto, é uma das questões mais obscuras que o acompanham nos seus mais de 50 (cinquenta) anos de vigência. Nesse sentido, o presente artigo busca analisar, de maneira crítica, as peculiaridades do referido dispositivo legal, bem como os requisitos necessários à restituição dos tributos “que, por sua natureza, comportam a transferência do respectivo encargo financeiro”. Além disso, será discutida a polêmica decisão do Superior Tribunal de Justiça - STJ, tomada no Recurso Especial nº 1.299.303/SC, no qual a Corte considerou possível a restituição do ICMS incidente na demanda de energia elétrica pelo consumidor, posicionamento que caminhou em sentido oposto à Súmula 546 do Supremo Tribunal Federal - STF, até então invocada pelo STJ no julgamento das questões relacionadas à restituição de tributos indiretos. O estudo aborda os fundamentos e as contradições desse acórdão e debate a eventual mudança de paradigma jurisprudencial.

Palavras-chave: Repetição do indébito. Tributos indiretos. Repercussão. Contribuintes. Artigo 166 do CTN. RESP nº 1.299.303/SC.

Abstract

Article 166 of the Brazilian National Tax Code (CTN), which sets the rule on the restitution of indirect taxes, is one of the most obscure issues that accompany the CTN in its more than 50 years of existence. In this context, this paper seeks to analyze, in a critical manner, the peculiarities of the above-mentioned legal provision, as well as the necessary legal requirements for the restitution of taxes “which, by their nature, entail the transfer of the respective financial burden”. Moreover, this paper discusses the polemic decision of the Brazilian Superior Justice Court (STJ) in the special appeal (RESP) No. 1.299.303/SC. The Court decided that the final consumer is legitimate to obtain the restitution of the Brazilian sale’s tax (ICMS) on the consumption electrical energy, apparently changing its position based on the precedent No. 546 of the Brazilian Supreme Federal Court. This research soughts to discuss the rationale and criticize the contradictions of this decision, as well as debate whether it is possible or not to consider a complete paradigm shift.

Keywords: restitution of taxes. Indirect taxes. Tax shifting. Taxpayers. Article 166 of the CTN. RESP nº 1.299.303/SC.

1 Introdução

A repetição do indébito tributário indireto, consubstanciada no artigo 166 do CTN1, é uma das questões mais desafiadoras àqueles que se dedicam ao estudo do direito tributário. A matéria desperta fortes controvérsias, dividindo doutrina e jurisprudência, polêmica anterior, inclusive, à edição do CTN, que ocorreu há mais de 50 (cinquenta) anos.

Em matéria tributária, o princípio da legalidade constitui um dos pilares da cobrança e arrecadação dos tributos, também evidente nas hipóteses de pagamentos indevidos. A obrigação tributária, pelo seu caráter ex lege, nasce e é extinta em um ciclo determinado, de modo que a devolução dos valores indevidamente pagos, antes mesmo de ser um direito dos contribuintes, constitui um dever do fisco.

A antiga dicotomia entre os tributos diretos e indiretos, e especialmente a questão da legitimidade ativa ad causam para a ação repetitória, é um problema persistente e objeto de teses jurídicas diversas. Os contribuintes de fato voltaram a provocar o Poder Judiciário, na tentativa de ganhar relevância no âmbito da repetição do indébito tributário.

O acórdão do Recurso Especial (Resp) n° 1.299.303/SC traduziu essa realidade e fomentou maior debate sobre o tema. Isto porque, décadas após a edição da súmula 546 pelo STF, o STJ deu destaque à figura do contribuinte de fato, no caso, o consumidor final, e autorizou a este a restituição do ICMS incidente sobre a demanda de energia elétrica contratada, mas não consumida, por entender que nessa relação existiam peculiaridades capazes de justificar a mudança de posicionamento.

No presente artigo, faz-se, inicialmente, uma abordagem a respeito da clássica divisão dos tributos em diretos e indiretos, bem como das modalidades de repercussão do ônus fiscal, que decorrem diretamente daquela relação. Em sucessivo, fala-se da natureza jurídica da ação de repetição do indébito tributário e do chamado “tributo indevido”. Após, elabora-se um apanhado das teses existentes acerca da legitimidade ativa ad causam do contribuinte de fato e, por fim, estuda-se a evolução jurisprudencial do assunto, perpassando pelas súmulas já editadas, até alcançar o Resp n° 1.299.303/SC, que reacendeu a discussão e relativizou a regra, até então “absoluta”, aplicada pelo próprio STJ, da impossibilidade do contribuinte de fato repetir cifras pagas indevidamente a título de tributos.

Por isso tudo, o conhecimento do tema e de seus institutos abre espaço para que se busque delinear os parâmetros atuais da repetição do indébito tributário indireto, a fim de adequá-la aos ditames constitucionais. Afinal, o seu objetivo não é outro, senão vedar enriquecimentos ilícitos, seja por parte do Estado, seja de uma pluralidade de particulares.

2 Tributos diretos e indiretos x repercussão do ônus fiscal

As polêmicas relativas à repetição do indébito tributário indireto aparecem bem antes daquele que é o seu maior impasse: a legitimidade ativa para o manejo da ação repetitória. O inconveniente surge desde a clássica segregação dos tributos entre diretos e indiretos, recurso acolhido pela jurisprudência como um dos fundamentos para dar procedência ou improcedência às demandas desta natureza, notadamente quando em cena entra o fenômeno da repercussão, nas suas mais variadas modalidades.

Certificando a relevância do tema e a sua latente atribulação prática, Leon Frejda Szklarowsky (1991, p. 22), há tempos, ressaltou o embate causado pelos chamados tributos indiretos, no campo da repetição do indébito tributário, diferentemente dos tributos diretos.

As maiores discussões atinentes à repetição do indébito tributário surgem quando se questiona a devolução de tributos indiretos. Isso se deve ao fato de que, em se tratando de tributos diretos, não pairam dúvidas sobre a quem se deve restituir, na eventualidade de um pagamento em desconformidade com a lei. Afinal, o sujeito passivo é certo e determinado, pelo menos sob o ponto de vista da norma tributária, de modo que qualquer repercussão se torna irrelevante para fins tributários, a teor do artigo 123 do CTN.

O mesmo não acontece quando a devolução pleiteada tem como foco os tributos indiretos, pois, por força do artigo 166 do mesmo diploma legal, há tributos que, “por sua natureza”, comportam transferência do encargo a terceiro, casos em que, certificada a irregularidade no adimplemento do tributo, nascem as divergências quanto ao titular do direito à restituição, motivadas exatamente por esta cisão doutrinária dos tributos e pela redação imbricada do próprio artigo.

Durante muito tempo, utilizou-se o critério da repercussão econômica para distinguir os tributos entre diretos e indiretos, seguindo a lógica de que diretos seriam os tributos cujo encargo financeiro não repercute a terceiros; e indiretos seriam aqueles tributos nos quais o montante é repassado, pelo contribuinte de direito, a uma pessoa que não integra a relação tributária original, ou seja, o contribuinte de fato (MELO, 2008, p. 62).

Ainda que problemático, tal mecanismo da repercussão econômica foi adotado não apenas pelos tribunais pátrios, mas também difundido por cortes de inúmeros países (BECKER, 1998, p. 536-7; DIFINI, 2008, p. 28). Houve quem sustentasse, inclusive, que este foi o método escolhido pelo legislador do CTN como regra matriz para a repetição do indébito (CERQUEIRA, 2000, p. 385).

Entretanto, essa linha de pensamento despertou inúmeras críticas, mormente pela sua vulnerabilidade e pouca segurança jurídica. Como bem asseverado por Aliomar Baleeiro (2013, p. 1.295-6), no julgamento do ERE nº. 47.624, “o mesmo tributo poderá ser direto ou indireto, conforme a regra de incidência e até conforme as oscilantes e variáveis circunstâncias do mercado ou a natureza da mercadoria ou a do ato tributado”. No mesmo sentido prestam-se as lições de Hugo de Brito Machado Segundo (2004, p. 375-376), para quem “a rigor, todo tributo comporta transferência do encargo financeiro. Aliás, não apenas todo tributo, mas todo e qualquer ônus sofrido, por quem quer que seja, comporta, em tese, transferência do encargo financeiro a terceiros”. E, ainda, arrematou (2004, p. 375-376): “A “transferência dos ônus” de um tributo, portanto, considerada sob um prisma apenas econômico, é absolutamente difusa, e de impossível determinação”.

À vista dessas evidências, ganhou força o ideal da repercussão jurídica, que fornece ao artigo 166 do CTN uma interpretação condizente às premissas do sistema constitucional-tributário, no que tange à segregação dos tributos em diretos e indiretos. Para a doutrina filiada a esse método, a autorização legal de repercussão do tributo (repercussão jurídica), advinda das características próprias do seu fato gerador, é quem pode determinar se um tributo é direto ou indireto (MATTOS, 1991, p. 52-59; GRECO, 1991, p. 275-291; MACHADO, 1991, p. 231-249).

[...] diremos que o art. 166 do CTN se insere no sistema tributário brasileiro como norma de lei complementar que atribui relevância jurídica ao fenômeno econômico da repercussão, para os casos de restituição do indébito tributário. Não em relação a qualquer tributo, mas somente em relação àqueles que, por sua natureza, comportem a transferência do respectivo encargo financeiro. (MACHADO, 1991, p. 241).

Assim, dizem-se diretos os tributos que a lei impõe a obrigação de pagamento, integral e exclusivamente, à pessoa do contribuinte, impossibilitando, in abstrato, o repasse da quantia correspondente. Em outras palavras, tributos diretos são aqueles que indicam pontualmente o contribuinte obrigado a suportar a carga tributária, sem que lhe seja dada a faculdade, no plano normativo, da translação. E indiretos são os tributos cuja legislação possibilita a translação do encargo financeiro e, portanto, abre-se espaço para a figura de dois indivíduos: o primeiro, aquele cujo quantum tributário normativamente se faculta repassar, nomeado contribuinte de direito; e o segundo, quem efetivamente suporta o pagamento do montante, chamado contribuinte de fato.

Aderindo a essa linha interpretativa, Misabel Derzi (2013, p. 1.297-1.302), em nota de atualização à obra de Aliomar Baleeiro, leciona que somente existem dois impostos juridicamente possíveis de se enquadrar na acepção de tributos indiretos por presunção: o IPI e o ICMS. Por esta razão, reputa que o artigo 166 do CTN tem aplicabilidade restrita aos dois impostos mencionados, uma vez que a expressão “por sua natureza” se refere à natureza jurídica do tributo, cuja essência só é absoluta no IPI e no ICMS, sendo encargo probatório único e exclusivo do solvens demonstrar que não recuperou o montante respectivo:

E somente existem dois tributos que, de acordo com a sua natureza jurídica, desencadeiam a transferência do respectivo encargo financeiro, ou seja, o ICMS e o IPI. [...] Contudo, o que interessa é a repercussão jurídica, que é sempre certa no IPI e no ICMS, podendo corresponder ou não à econômica.

[...] A rigor, a ilação é extraída diretamente da Constituição Federal, porque, em relação a eles, a Carta adota dois princípios – o da seletividade e o da não cumulatividade – que somente podem ser explicados ou compreendidos pelo fenômeno da translação, uma vez que a redução do imposto a recolher, entre outros objetivos – em um ou outro princípio – se destina a beneficiar o consumidor, por meio da repercussão no mecanismo dos preços [...]. (DERZI, 2013, p. 1.297-1.298).

Para a referida autora, portanto, o caráter “indireto” do IPI e do ICMS é sempre certo, ao passo que tal peculiaridade, nos demais tributos, funciona como espécie de “especulação econômica”, frente às incontáveis variáveis capazes de promover uma oscilação dos preços e determinar ou não o transpasse econômico do seu quantum.

Hugo de Brito Machado Segundo (2011, p. 18) cita o posicionamento do STJ quanto à repercussão jurídica dos tributos, transcrevendo passagem do voto exarado no AGA 452.588/SP, que diz: “O artigo 166, do CTN, só tem aplicação aos tributos indiretos, isto é, que se incorporam explicitamente aos preços, como é o caso do ICMS, do IPI, etc”.

E Andréa Minatel (2015, p. 62), a respeito da repercussão jurídica dos tributos, esclarece que “doutrina e jurisprudência, depois de muita polêmica, passaram a se inclinar no sentido de que o essencial para configurar o “tributo que, por sua natureza, comporta a transferência do encargo financeiro” é a existência de prescrição normativa da repercussão”.

Diante disso, a divisão dos tributos em diretos e indiretos, e a consequente identificação dos “tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro”, pode encontrar certa dose de segurança jurídica quando se busca, na norma, detectar a autorização do referido repasse. Assim, sob a égide do artigo 166 do CTN, havendo alegação de pagamento indevido envolvendo repasse do quantum do tributo, o operador do direito precisa inicialmente extrair do caso concreto se o tributo comporta transferência (por permissivo legal), para somente após deter-se aos demais aspectos da lide.

3 O direito à repetição do indébito tributário e o “tributo indevido”

A atividade tributante, constitucionalmente repartida, atinge diretamente o patrimônio dos contribuintes e, portanto, deve obediência a regras e princípios cujos fins estão direcionados à satisfação do interesse coletivo e do bem comum. A Constituição Federal estabelece, a partir do artigo 150, limitações ao poder de tributar do Estado. E o artigo 37 da Lei Maior impõe à administração pública o dever de obediência a um rol de princípios, dentre os quais está a legalidade, máxime do sistema normativo pátrio. No mesmo sentido, o artigo 3º do CTN enquadra como tributo apenas a prestação que, dentre outras características, é instituída por lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

Logo, pela conjugação dos referidos dispositivos da Constituição e do CTN, vê-se que o ente tributante necessita de autorização legal para majorar ou criar um tributo, uma vez que a obrigação tributária decorre, pela sua própria essência, de previsão legal2. “As relações tributárias substantivas têm o caráter de obrigações ex lege, na medida em que é necessário para o seu nascimento a conjugação do pressuposto abstratamente definido na lei e o elemento fenomênico que se encaixa nessa hipótese ou pressuposto” (GARZA, 2008, p. 455).

Como consequência disso, pode-se afirmar que o fundamento da restituição dos valores indevidamente pagos a título de tributo provém de uma interpretação a contrario sensu, igualmente lastreada no princípio da legalidade tributária. Afinal, na medida em que o contribuinte apenas está incumbido de arcar com tributo lastreado na lei, o fisco também só pode incorporar ao seu patrimônio valores a título de tributo quando encontrem sintonia com a lei, pois todo montante recolhido à revelia dela viola essa premissa constitucional, motivo bastante para ser devolvido (MÖRSCHBÄCHER, 1999, p. 253; MINATEL, 2015, p. 10-11).

Isto posto, tem-se que o agir público vincula-se às disposições da lei, e somente a elas, de modo que toda conduta deve ser anteposta por uma norma permissiva. Em outras palavras, para que o Estado pratique quaisquer atos, é necessário que exista lei autorizando a conduta, sob pena de afronta ao princípio da legalidade, especialmente em matéria tributária.

Feitas as devidas observações quanto ao vínculo do tributo com a lei, imperioso trazer à baila outro aspecto de enorme relevância no atual contexto: a natureza jurídica do denominado “tributo indevido”. Basicamente, há duas correntes divergentes. A primeira é formada pelos que defendem o ideal de que tributo indevido não é propriamente tributo, mas tão apenas uma prestação de fato (TROIANELLI, 1998, p. 12; MARTINS, 1999, p. 170; AMARO, 2014. p. 445-446). A segunda, entende que o tributo indevido tem natureza tributária, posto que cobrado e recolhido sob essa nomenclatura, não sendo suficiente para desnaturá-lo como tal a simples averiguação de que não foram respeitados os parâmetros legais exigidos (CERQUEIRA, 2000, p. 237-239; CARVALHO, 2007. p. 473-474).

Fortes críticas recaíram sobre essa segunda linha de pensamento, sobretudo pelos defensores da primeira corrente, que insistiam em afirmar o caráter não tributário da parcela indevidamente recolhida a título de tributo. Em que pese tais ataques, Brandão Machado, segundo Igor Mauler Santiago (2008, p. 1.230), formulou uma contraproposta doutrinária, a fim de reforçar a teoria da qual também era filiado, qual seja, a de que tributo indevido é, sim, matéria de direito tributário. Para tanto, lembrou que “o ato administrativo inexistente é tratado entre os atos administrativos” (2008, p. 1.230), de modo tal que o tributo indevido também deveria ser tratado segundo as normas tributárias.

A partir dessas considerações, e com respeito ao entendimento daqueles que consideram de caráter não tributário os valores indevidamente recolhidos a título de tributo, reputando errônea a expressão “tributo indevido”, não há como desprezar a natureza tributária que reveste o pagamento efetuado em desconformidade com o ordenamento jurídico, mesmo porque, até para se detectar que a prestação está maculada de ilegalidade, necessita-se analisar detidamente se foram ou não desrespeitadas as premissas que regem a matéria tributária.

Ademais, a fim de que sejam devolvidas as cifras pagas, há de se verificar questões outras, também previstas no CTN, a exemplo dos prazos do artigo 168. Não fossem suficientes tais argumentos, destaque-se, ainda, que a cobrança, seja de tributo devido ou posteriormente declarado indevido, desenvolve-se mediante atividade arrecadatória típica do fisco, sendo o adimplemento decorrente de ato impositivo, tal qual é no instante do pagamento legítimo. Portanto, nota-se que todo o escopo do tributo indevido gira em torno dos conceitos e das normas do direito tributário, sendo inegável a sua peculiar natureza, bem como a da ação repetitória, que não é, nem poderia ser outra, senão tributária.

4 O protesto e o erro como pressupostos à repetição do indébito tributário

À luz do destacado nas linhas acima, a repetição do indébito tributário constitui um direito do contribuinte que advém da própria lei, tal qual é a obrigação tributária, vez que ambas tratam de autênticas obrigações ex lege. “A obrigação tributária é ex lege. Nela não se prospera o brocardo do Direito Privado segundo o qual quem paga mal paga duas vezes, nem se precisa comprovar a justeza do erro (em termos subjetivos)” (COÊLHO, 2015, p. 728).

Nesse panorama, existem especificidades que atingem a restituição de tributos, oriundas do citado vínculo, que diferenciam a demanda tributária daquela manejada no âmbito do direito civil. Nas relações civis, é imprescindível que o sujeito adimplente produza prova cabal no sentido de que o pagamento desvirtuado ocorreu por erro (GOMES, 2008, p. 298). Exemplo disso é o artigo 877 do Código Civil, cujos termos são claros: “àquele que voluntariamente pagou o indevido incumbe a prova de tê-lo feito por erro”.

Tal peculiaridade aflora exatamente da característica contratual das relações cíveis, espaço onde se presume a boa-fé daquele que recebeu determinada quantia, ainda que além do devido. Ressalte-se, por conseguinte, que o diploma civil consagra hipóteses nas quais, mesmo se verificando o adimplemento indevido de uma obrigação, a restituição do valor não se mostrará cabível. São os casos de pagamento de dívida prescrita ou cumprimento de obrigação inexigível judicialmente. Assim sendo, na dinâmica das relações cíveis, não basta a identificação do pagamento indevido, sendo também imprescindível a prova de que o adimplemento se deu por erro.

Transpondo o foco da observação às regras do direito tributário, de logo se nota a diferença entre a exigibilidade desse fator como pressuposto à restituição de tributos, haja vista que o caput do artigo 165 do CTN é taxativo e expresso ao dispor que “O sujeito passivo tem direito, independentemente de prévio protesto, à restituição total ou parcial do tributo, seja qual for a modalidade do seu pagamento […]”.

Em sentido análogo, e corroborando à disposição do caput, presta-se o inciso I do mesmo artigo 165, ao consagrar regra de que o direito do contribuinte à repetição subsiste ainda que o pagamento tenha ocorrido de maneira espontânea, voluntária. A justificativa de ambos os comandos legais é consequência lógica da natureza da obrigação tributária (MACHADO, 2004, p. 193).

Resta incontroverso, pois, que provar o eventual erro no adimplemento do tributo, ou demonstrar tê-lo realizado sob prévio protesto, não constituem elementos imprescindíveis à devolução do tributo indevido, nem poderiam. Afinal, se toda a atividade arrecadatória deve respeito à lei, sem facultar ao sujeito passivo o cumprimento da obrigação tributária, por consequência lógica e dedutiva, todo valor que ultrajar a legislação há de ser ressarcido livre de quaisquer obstáculos.

5 Dos prazos para manejo da ação repetitória

Ultrapassada a discussão a respeito dos pressupostos para a ação de repetição do indébito tributário, assim como apontadas algumas das principais distinções entre ela e a demanda repetitória de natureza cível, convém analisar, doravante, os prazos dentro dos quais o direito de pleitear a restituição de valores pagos incorretamente deve ser exercido.

O artigo 168 do CTN estabelece o prazo geral de 5 (cinco) anos para aquele que suportou o adimplemento de tributo indevido pleitear judicialmente a devolução, sendo o marco inicial para contagem desse prazo computado de duas formas distintas. Nas hipóteses dos incisos I e II do artigo 165, os cinco anos fluem a partir do pagamento indevido, ou seja, o dies a quo é a data do adimplemento equivocado, quando se deu a extinção do crédito tributário. “O fato subjacente à repetição do indébito é o PAGAMENTO INDEVIDO, segundo os princípios da “actio nata” e do “tempus regit actus” (COÊLHO, 2015, p. 738).

Nada obstante, nem sempre a forma de contagem desse prazo (incisos I e II do artigo 165) foi pacífica, sobretudo nos casos de tributos sujeitos a lançamento por homologação. É que, antes da edição da Lei Complementar nº 118/2005, o prazo para propositura da ação repetitória, em tributos com aquela peculiaridade, iniciava apenas quando exaurido o prazo para homologação – tácita ou expressa, e não no dia do adimplemento. Esse fato era justificado pela interpretação literal do artigo 150, §4º do CTN, cujo teor é expresso em dizer que a extinção do crédito tributário só acontece quando da homologação do pagamento.

A Lei Complementar nº 118/2005, no seu artigo 3º, sob a pretensão de interpretação do inciso I do artigo 168 do CTN, fixou que a extinção do crédito tributário, no caso de tributos submetidos a lançamento por homologação, ocorre com o pagamento antecipado (FRATTARI, 2010, p. 88-89). Porém, o STF, no julgamento do RE nº 566.621/RS, declarou a inconstitucionalidade do artigo 4º, segunda parte, dessa lei, por entender que ele não foi meramente interpretativo, mas por ter supostamente retroagido para restringir um direito dos contribuintes, ao reduzir de 10 (dez) anos para 5 (cinco) anos o prazo para manejo da ação repetitória. Por essa razão, o STF atribuiu efeitos ex nunc às disposições da LC n. 118/2005 no sentido de que a extinção do crédito tributário, quanto aos tributos sujeitos à homologação, operar-se-á somente quanto aos pagamentos efetuados a partir de 9 de junho de 2005.

Retornando à análise das hipóteses abarcadas pelo inciso II do artigo 168 do CTN, nota-se um marco de contagem com outro referencial, distinto daquele previsto no inciso I. São os casos de decisão judicial que tenha reformado, anulado, revogado ou rescindido a decisão condenatória (artigo 165, III, CTN), quando, então, o início do lapso quinquenal será computado da data em que se tornar definitiva a decisão administrativa ou que ela passar em julgado no âmbito judicial. Por conseguinte, a pretensão ressarcitória encontrará espaço somente depois de esgotadas as oportunidades de questionamento da parcela paga, independentemente da esfera na qual se questione.

Por derradeiro, imprescindível realçar o último prazo previsto para exercício da pretensão restituitória, qual seja, aquele do artigo 169 do CTN. Da leitura desse dispositivo extrai-se que, subsistindo pagamento indevido de tributo, e tendo o solvens optado por pleitear a devolução dos valores na esfera administrativa, se negada a restituição, ele tem o prazo de 2 (dois) anos para propor a ação anulatória da decisão administrativa denegatória.

6 Legitimidade ativa ad causam do contribuinte de fato para a ação de repetição do indébito tributário indireto

Aspecto central da repetição do indébito tributário indireto é a legitimidade ativa ad causam do contribuinte de fato. Na doutrina, há diversos posicionamentos a esse respeito, que podem ser classificados em quatro grupos, conforme síntese de Luís Dias Fernandes (2002, p. 79): a) a total legitimidade ativa ad causam do contribuinte de fato; b) o direito do contribuinte de fato apenas à sub-rogação nos direitos do contribuinte legal ou o direito de regresso contra este; c) somente cabe ao contribuinte de fato autorizar o contribuinte de direito a propor a ação repetitória; e d) a irrelevância do contribuinte de fato na seara tributária. Estas correntes serão analisadas uma a uma a seguir.

A primeira teoria, que atribui legitimidade ativa ad causam ao contribuinte de fato, considera que o artigo 166 do CTN representa exceção à regra prevista pelo artigo 165 do mesmo diploma legal. Defende-se a interpretação a contrario sensu daquele dispositivo, concluindo que o terceiro detém sim capacidade para postular a devolução de valores indevidamente recolhidos aos cofres públicos, quando provar que assumiu o respectivo encargo (MORSCHBACHER, 1999, p. 258-259; TORRES, 2013, p. 296-299).

Seria razoável conceber que, uma vez operada a repercussão, o contribuinte de fato detivesse o status de verdadeiro legitimado ao ressarcimento, quando provar que o encargo do tributo, de fato, recaiu integralmente sobre si. Todavia, como bem asseverado por Hugo de Brito Machado Segundo e Paulo de Tarso Vieira Ramos (1999, p. 148), forçoso se torna atentar, ademais, aos aspectos jurídicos da repercussão ocorrida no caso concreto, para só então consolidar a legitimidade ad causam do contribuinte de fato:

Quando o art. 166 do CTN se refere a tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro, deve-se entender que tais tributos sejam apenas aqueles que, por sua natureza jurídica e não financeira, possam ser transferidos, tais como o ICMS, o IPI e o ISS, nos casos em que o tributo vem lançado e efetivamente destacado no documento fiscal. [...] Ressalte-se que o art. 166 aplica-se ainda aos casos de substituição em que se tem a nítida distinção jurídica entre o obrigado ao recolhimento do tributo e aquele que efetivamente suporta seu ônus.

No plano da repetição do indébito tributário indireto, deve-se examinar, primeiramente, a natureza jurídica do tributo e a aplicabilidade ou não da repercussão legal no mesmo, pois, desprezando-se esse procedimento, incorre-se no risco de admitir a restituição de todo e qualquer tributo, o que seria um erro, haja vista que, conforme alertado por Alfredo Augusto Becker (1998, p. 540-541), todo tributo, na prática, pode repercutir.

Já a segunda teoria, que teve como idealizador Gilberto de Ulhôa Canto (1954, p. 58), sustentava, inicialmente, a existência de um vínculo de sub-rogação entre o contribuinte de fato e o contribuinte legal. Desse modo, aquele que assumiu o ônus do tributo, no plano fático, e realizou o pagamento indevido, embora não integrasse a relação tributária original, sub-rogar-se-ia nos direitos daquele legalmente incumbido de pagar o tributo, figurando como o indivíduo a quem se deve repetir.

Anos depois, o mesmo Gilberto Ulhôa Canto, trabalhando na elaboração do Anteprojeto de Lei Orgânica do Processo Tributário (1991, p. 3), trouxe outra proposta, qual seja, a de facultar ao terceiro o direito de regresso em face do contribuinte legal ou de integrar a ação repetitória como assistente, com a possibilidade de requerer ao juiz que a restituição, ao final, fosse feita a ele próprio. Entretanto, o entendimento esposado nessa última oportunidade caminhou em sentido contrário à sugestão ofertada inicialmente. É que, com o novo ideal, todo o propósito construído retornou ao status quo ante, porque novamente colocou o contribuinte de fato subordinado ao ajuizamento, por parte do contribuinte legal, da ação para reaver o tributo indevido.

Dessa maneira, uma orientação mais racional seria amadurecer o ideal da sub-rogação, em mitigação com a técnica defendida pelos autores da primeira teoria, a fim de conduzir a temática a um panorama mais justo e eficaz, mesmo porque o objetivo do instituto da repetição do indébito é repelir enriquecimentos ilícitos.

A terceira corrente, por sua vez, usa o argumento de que ao contribuinte de fato somente se concede o poder de autorizar o contribuinte de direito a pleitear a restituição dos valores indevidamente recolhidos aos cofres públicos. Para essa teoria, o contribuinte de fato, apesar de não manter relação jurídica direta com o fisco, é figura necessária para o ingresso da ação de repetição do indébito tributário indireto, porquanto só com a sua autorização é que se mostra possível o manejo da demanda (DIFINI, 2008, p. 300-301; VAZ, 1991, p. 92).

Os argumentos dessa última linha doutrinária recaem no mesmo impasse da segunda. Afinal, para que haja o ingresso da ação regressiva, pelo contribuinte de fato, é necessário o ajuizamento prévio da ação repetitória, por parte do contribuinte legal. Nesse panorama, mostra-se pouco sensato imaginar que o sujeito já reembolsado irá se dispor a demandar no Judiciário para reaver quantia que será entregue a outrem, em ulterior demanda regressiva.

E a última corrente sequer tece maiores comentários a respeito da figura do contribuinte de fato. Para seus adeptos (MARTINS, 1999, p. 168; BOTTALO, 1972, p. 320 apud CERQUEIRA, 2000, p. 403), na relação tributária só há um contribuinte, chamado “de direito”, de maneira que inexiste relevância daquele chamado “contribuinte de fato” para fins de análise tributária no campo da restituição de tributos indiretos. Essa última linha de pensamento adota extremo rigor técnico, desprezando quaisquer relações distintas daquelas elencadas na norma e tendo por consequência eventual enriquecimento ilícito do Estado.

7 A evolução jurisprudencial da repetição do indébito tributário indireto

7.1 As súmulas 71 e 546 do STF

Como delineado, a repetição do indébito tributário, nas operações que atingem os tributos indiretos, não é problema recente no universo jurídico, nem possui poucos pontos de discussão. Anteriormente à edição do CTN, a questão já suscitava calorosos debates no STF e, após a Constituição Federal de 1988, no STJ.

Em 13 de dezembro de 1963, foi aprovado um enunciado pelo STF, consolidando a posição da Corte frente à matéria da restituição de valores indevidamente pagos, envolvendo os tributos indiretos, cujo teor segue:

Súmula 71. Embora pago indevidamente, não cabe restituição de tributo indireto.

De fato, esta foi a primeira oportunidade em que se materializou uma tese jurisprudencial relativa à repetição do indébito tributário indireto, haja vista que, durante muito tempo, a questão percorreu o Judiciário de maneira nada uniforme.

Assevera Hugo de Brito Machado Segundo (2011, p. 25 et seq.), citando Brandão Machado (1984, p. 68), que o argumento da súmula 71 não era tão inovador quanto parecia, pois a presunção absoluta quanto ao repasse econômico do ônus tributário, e sua utilização como elemento desconstitutivo da pretensão repetitória, já era a tese defendida pela Fazenda Pública desde o ano de 1900. Tese esta, inclusive, acatada certa vez pelo STF em 1905.

O citado posicionamento esbarrava naquele até então adotado pelo STF, qual seja, de que a simples repercussão econômica do tributo não exauria os requisitos autorizativos da sua restituição. Na década de 1950, ao reverso, a alegação fazendária passou a ser aplicada de forma predominante no Supremo. Os Ministros estabeleceram a premissa de que os tributos indiretos eram sempre suportados pelo “contribuinte de fato”, com um único reflexo prático: a majoração do valor da mercadoria. Aduziram, ademais, que o fato não trazia quaisquer implicações ao contribuinte legal (“de direito”), indivíduo integralmente reembolsado na operação comercial3. Assim sendo, as primeiras impressões do STF foram no sentido de excluir a restituição dos valores sem que ao menos fosse apurada a ocorrência da repercussão.

Após alguns anos de vigência da Súmula 71, o STF superou o seu entendimento a respeito do tema e editou a Súmula 546, que tem o seguinte conteúdo:

Súmula 546. Cabe a restituição do tributo pago indevidamente, quando reconhecido por decisão, que o contribuinte de jure não recuperou do contribuinte de facto o quantum respectivo.

Cumpre colacionar a consideração feita por Andréa Minatel (2015, p. 122) no que toca ao intervalo entre os julgados que deram origem à Súmula 546 e a entrada em vigor do CTN: “Embora a Súmula nº 546 do STF tenha sido publicada posteriormente ao Código Tributário Nacional, sua referência legislativa continuou sendo o art. 964 do CC/1916, tendo em vista que julgados que deram origem à sua edição são anteriores ao Código Tributário Nacional”.

O STF passou a analisar, em cada caso, se a repercussão havia se operado, afastando-se, gradativamente, do conteúdo da Súmula 71. Essa nova forma de ponderar a restituição do indébito indireto ficou clara no acórdão do RE 45977/ES, que serviu de base para a edição da Súmula 546. A partir de então, na forma do voto de Aliomar Baleeiro, o STF remodelou a sua visão sobre a repetição do indébito dos tributos indiretos (MINATEL, 2015, p. 125).

Destarte, o que ocasionou a edição da Súmula 71 foi a concepção de que todo tributo indireto repercute e, por isso, não havia substrato legal para restituir o tributo, ainda quando indevido, ao contribuinte de direito, já que ele repassava sob qualquer condição o ônus ao contribuinte de fato. Quando então verificado que a repercussão, pelos diversos fatores que exercem influência sobre ela, podia ou não acontecer, o STF publicou a Súmula 546, que permanece vigente até os dias atuais, corroborando o artigo 166 do CTN.

7.2 O Resp nº 1.299.303/SC e a legitimidade ad causam do consumidor na restituição do ICMS incidente sobre a demanda de energia elétrica contratada e não consumida: mudança de paradigma ou mero casuísmo?

A polêmica a respeito da ação repetitória sempre foi tratada pelo STJ segundo os ditames do artigo 166 do CTN, complementado pelo entendimento consagrado na Súmula 546 do STF. Desse modo, para que a Corte considere legítima a restituição de tributos indiretos, o contribuinte de direito precisa provar o não repasse do encargo financeiro relativo ao tributo ou, no caso de havê-lo feito, estar munido de autorização do contribuinte de fato para que a restituição lhe seja feita.

Apesar de aparentemente demonstrar entendimento pacífico em matéria de restituição dos tributos indiretos, o STJ, no ano de 2012, ao julgar recurso repetitivo representativo de controvérsia (Resp nº 1.299.303/SC), definiu que, nos casos em que se pleiteia a restituição do ICMS incidente sobre a energia elétrica, recolhido de forma indevida, o consumidor final é o verdadeiro legitimado a propor a demanda repetitória.

Na ocasião, a Corte invocou como argumento as especificidades existentes na relação Estado-concessionária-consumidor, especialmente àquela do artigo 7º, II, da Lei 8.078/90, destacando que a concessionária, em matéria de cobrança de ICMS, figurava como longa manus do Estado, estando numa posição de paridade com o ente público, de modo tal que o consumidor seria contribuinte de fato e a concessionária contribuinte de direito, mas apenas em aspectos formais, porquanto o dever desta última seria recolher aos cofres públicos as quantias pagas pelos consumidores.

Outra justificativa utilizada no caso é de que a concessionária não possui o animus de defender as prerrogativas do consumidor em juízo, exatamente porque, nas palavras do ministro relator, não há concorrência no mercado de energia elétrica, diferentemente do que aconteceria no caso do comerciante varejista ou produtor.

Acontece que é pouco relevante utilizar o argumento de que o fornecedor sofrerá perda no quantitativo de clientes em face do seu preço elevado pelos tributos indevidos, a fim de justificar seu interesse em demandar a quantia indevida pelo consumidor e em prol deste. Não se pode admitir, como absoluta e correta, a ideia de que, por aspectos de mercado e concorrência, o fornecedor terá interesse em demandar a restituição do quantum de tributo indevido pago pelo consumidor. Afinal, o interesse em demandar não se restringe a aspectos de pura “captação de clientela” ou “justiça fiscal”, mormente vindo de quem não desembolsou efetivamente a quantia que se deseja repetir. Para propor demandas e judicializar conflitos, há muitas outras variantes que tão apenas interesses comerciais, sobretudo por conta dos ônus aos quais os demandantes são tipicamente submetidos, v.g, a contratação de profissional para postular, o pagamento de custas, a morosidade judicial e tantos outros entraves.

Na verdade, o que se verifica é que o STJ, numa tentativa de criar, sem previsão no CTN e em violação à súmula 546 do STF, uma exceção ao tema da repetição do indébito tributário indireto pelo contribuinte de fato, invocou peculiaridades das concessões públicas, notadamente a de energia elétrica, trazendo consigo, data vênia, inúmeros pontos vulneráveis ao debate, que podem reascender as discussões a respeito dessa matéria.

Basta ver que, se um dos cernes da tese é o direito de esclarecimento do adquirente de energia elétrica para defender os seus direitos, conforme retratado no artigo 7º, II, da Lei 8.987/95, dispositivo utilizado no acórdão, igual direito se concede a todo consumidor, independentemente da relação consistir no consumo de energia elétrica. Essa transparência em relação aos tributos incidentes sobre o consumo é um ditame constitucional previsto no artigo 150, §5o, disciplinado pela Lei n. 12.741/2012 e regulamentado pelo Decreto n. 8.264/2014. Além disso, alterou-se o artigo 6º, III, da Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) para consagrar, nas mesmas palavras do dispositivo da lei de concessões invocado no voto, direito a “informações para a defesa de interesses individuais ou coletivos”, ao definir como um dos direitos básicos do consumidor a informação sobre os tributos incidentes nas mercadorias.

Nessa seara, se o problema está voltado, sempre, ou à ausência de vínculo jurídico entre o consumidor (contribuinte de fato) e o Estado, ou de legitimidade do contribuinte de direito que repassa o tributo, uma opção para solucionar a restituição de tributos indiretos incidentes sobre o consumo seria a mudança legislativa sugerida por Hugo de Brito Machado Segundo (2011, p. 108):

[...] a solução será, como já apontado, alterar as disposições relativas a tais impostos para fazer com que o consumidor seja, juridicamente, alçado à condição de contribuinte com todas as consequências daí decorrentes. Não seria, como já explicado, a melhor alternativa, mas ainda assim preferível em relação à situação atual. O que não se pode admitir, convém reiterar, é que uma relação jurídica tenha em seu pólo passivo pessoas que dividem essa posição (de fato e de direito), de sorte a que nenhuma delas possa exercer as faculdades que lhes são próprias, sem que se lhes aliviem, contudo, os ônus.

Seguindo a sugestão do autor acima transcrito, surgiria a possibilidade de minimizar, por meio de lei complementar, as incertezas legalmente criadas pelo artigo 166 do CTN, com uma profunda mudança do sistema de tributação do consumo. Isto porque, imputando ao contribuinte de fato a obrigação legal – e não apenas factual – de pagar os impostos incidentes sobre o consumo, retira-se do atual contribuinte de direito o ônus de provar um fato negativo, qual seja, o não repasse do tributo, e, ao mesmo tempo, atribui-se ao contribuinte de fato a legitimidade que atualmente carecem.

Com efeito, o posicionamento adotado no Resp. nº 1.299.303/SC trouxe muito mais dúvidas que certezas. Uma matéria que parecia pacificada foi relativizada, abrindo espaço para novos questionamentos. Não se pode negar que o julgado, de uma única vez, reconheceu as inconsistências do artigo 166 do CTN, ao mesmo tempo em que destacou a sujeição imposta por ele aos contribuintes, especialmente ao contribuinte de fato, indivíduo que, conforme próprio entendimento da jurisprudência, é quem acaba por arcar com o ônus do tributo, muito embora não tenha – ou não tivesse, em certos casos – legitimidade para a ação repetitória. Por outro lado, tal exceção casuística pode criar um perigoso precedente para duplicidade de repetições de indébito, pelo contribuinte de direito e de fato, em decorrência de um mesmo indébito tributário. De fato, nada está esclarecido, tampouco consolidado.

8 Conclusões

No decorrer desse artigo, discutiu-se que a repetição do indébito tributário indireto é um dilema antigo e ainda sem solução. Há mais de 50 (cinquenta) anos, o artigo 166 do CTN causa problemas. Pelas exigências imprecisas que contém, tanto aquele legalmente incumbido de adimplir o tributo, quanto aquele que o suporta de fato, veem-se impossibilitados de repetir o tributo recolhido, e o Estado de saber se e a quem ressarcir.

A evolução dos estudos ajudou a estabelecer o conceito de repercussão jurídica, que muito importa ao tema, além de demonstrar a utilidade metodológica das classificações e fomentar o debate sobre elas. Muito embora existam duas correntes a respeito da natureza jurídica que reveste a restituição dos tributos, por alguns considerada como de direito tributário e por outros de direito civil, não há como enquadrá-la noutro entendimento, senão naquele primeiro, tal como estabelecido pelo CTN.

O artigo 166 do CTN, à luz da exposição feita, traz norma que inviabiliza, em muitos casos, a restituição do indébito indireto. Na prática, o dispositivo é inexequível (MARTINS, 1999, p. 168.). De uma banda, exige do contribuinte de direito prova diabólica, quase impossível de ser produzida, qual seja, aquela referente à ausência de transpasse do ônus relativo ao tributo. Noutro viés, nega legitimidade ao contribuinte de fato, sobre quem o ônus do tributo normalmente recai, sob o argumento da inexistência de relação jurídico-tributária deste perante o fisco. Se, por um lado, essa regra pode ensejar o enriquecimento ilícito pelo Estado, por outro, pode impedir a multiplicidade de legitimados a repetir um mesmo indébito em prejuízo dos cofres públicos.

O assunto também é recorrente na jurisprudência, haja vista o fato de que foram editadas duas súmulas, a 71 e a 546, ambas do STF. Apesar disso, nenhuma das controvérsias foi solucionada. No ano de 2012, com o Resp. n° 1.299.303/SC, o STJ reconheceu a legitimidade do consumidor (contribuinte de fato) para a demanda repetitória de ICMS, quando este for recolhido sobre energia elétrica contratada, mas não consumida. Essa decisão ganhou destaque, mas logo se tornou isolada e ocupou espaço de exceção casuística à regra do artigo 166 do CTN, cuja interpretação permaneceu inalterada.

Tal julgado, contudo, não resolveu a questão da repetição do tributo indireto e trouxe maiores incertezas para a seara do direito tributário. Em todo caso, uma premissa é verdadeira: não há como manter uma regra que confere direitos em abstrato, mas não os concretiza, por exigências formais que vão além do que se pode conseguir.

Repensar a legislação talvez seja a melhor alternativa, a fim de adaptá-la ao atual contexto socioeconômico, que muito importa ao direito tributário, quer alçando os contribuintes de fato ao patamar de contribuintes legais dos impostos de consumo, em substituição dos anteriormente legitimados, como sugerido por Hugo de Brito Machado Segundo; quer estabelecendo critérios legais objetivos para que um ou outro venham a demandar a restituição do indébito, de modo que não haja enriquecimento ilícito de um lado, nem duplicidade ou multiplicidade de repetições em prejuízo do erário.

Essa regulamentação é fundamental para dar segurança jurídica tanto ao Estado, de que não será instado a pagar mais de uma vez a contribuintes distintos, quanto ao contribuinte (de fato ou de direito), a quem a lei atribuir a condição de legitimado para pleitear o que for pago indevidamente a título de tributo. Exceções casuísticas criadas pelo Poder Judiciário, além de desprovidas de amparo no ordenamento jurídico, findam por trazer maiores incertezas ao fisco e aos contribuintes ou consumidores.

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Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, vol. 14, n. 3, p. 214-234, Setembro-Dezembro, 2018 - ISSN 2238-0604

[Received/Recebido: Junho 16, 2017; Accepted/Aceito: Dezembro 10, 2018]

DOI: https://doi.org/10.18256/2238-0604.2018.v14i3.1973

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