7-1970

Um olhar acerca da gênese e insurgências equivocadas em uma habitação modernista

A look at the mistaken genesis and insurgencies in modernist housing

Frederico Augusto Luna Tavares

Graduação em Comunicação Social – Jornalismo pela UFRN (1993). Especialista em Gestão Ambiental pela UFRN (2002). Mestrado em História pela UFRN (2011). Doutoramento visitante LNEC-Lisboa/PT (2014-2015). Doutoramento em Arquitetura e Urbanismo pela UFRN (2017). Pesquisador associado do Grupo de Pesquisa HCUrb (DARQ-PPGAU-UFRN). E-mail: [email protected]

Resumo

A cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, vem passando por um acentuado desmonte de seu patrimônio cultural construído. Parte deste acervo jaz em dois antigos bairros centrais: Tirol e Petrópolis, onde ainda resistem exemplares da arquitetura modernista residencial que datam das décadas de 1950 e 1970 passíveis de reconhecimento, onde diversos edifícios foram projetados por profissionais que não detinham o diploma acadêmico. Para este artigo, elencou-se a habitação da família Garcia, na “Praça das Flores”, em Petrópolis, projeto do desenhista prático norte-riograndense Aguinaldo Muniz. Devido à necessidade mercadológica, o imóvel passa por sistemáticas modificações, cujos resultados visuais e funcionais apagam as propostas modernistas atinentes ao projeto original. Propõe-se, assim, apresentar uma breve história da habitação e expor uma experiência dialógica na habitação enquanto um de seus reusos, por meio das fontes primárias e a prática do (re)conhecimento no lócus construído.

Palavras-chave: Fotografia e arquitetura. Petrópolis. História da cidade. Projetista prático. Natal-RN.

Abstract

The city of Natal, in Rio Grande do Norte, has been undergoing a sharp dismantling of its built cultural heritage. Part of this collection lies in two old central districts: Tirol and Petrópolis, where examples of the residential modernist architecture dating from the 1950s and 1970s still stand, where several buildings were designed by professionals who did not possess the academic degree. For this article, the Garcia family housing was set up in the “Praça das Flores”, in Petrópolis, a project of the Rio Grande do Norte state-based designed Aguinaldo Muniz. Due to the market need, the property undergoes systematic modifications, whose visual and functional results erase the modernist proposals related to the original project. It is proposed, therefore, to present a brief history of housing and expose a dialogical experience in housing as one of its reuses, through primary sources and the practice of (re-) cognition in the built locus.

Keywords: Photography and architecture. Petrópolis. City history. Practical designer. Natal, RN.

1 Introdução

A residência que ocupa o lote irregular, de esquina, na confluência das ruas Coronel Joaquim Manoel, número 731 e Desembargador Dionísio Filgueira, em Petrópolis, Natal-RN, completamente aviltada na expressividade de suas formas, ainda contrasta com tipologias e volumes até então dominantes da paisagem construída do bairro, tal presença no imaginário de muitos citadinos. A habitação reúne diversos elementos externos distintivos da escola modernista, prontamente perceptíveis, sendo passíveis de se elencar a testada com telhado borboleta, pilotis, rampa e jardim frontal ladeado por pequena grade, garagem abaixo do nível da rua, jardim interno, painel de azulejo queimado em Recife-PE. A vivenda fora construída para abrigar a família do funcionário aposentado dos Correios e Telégrafos, o também advogado, promotor e juiz Enock de Amorim Garcia e sua esposa, Nadir Mesquita Meira Garcia.

A responsabilidade de projetar em consonância com a efetiva quantidade de moradores e seus hábitos rurais coube ao prático Aguinaldo Muniz. Nascido em Macaíba, era filho de Miguel Muniz de Melo, topógrafo e projetista que atuou como técnico de nível médio exercendo a função de auxiliar de engenheiro na construção da estrada de ferro RN-PB. O mercado público da Cidade Alta, na capital do Rio Grande do Norte, destruído por um incêndio em 1965, é de sua autoria. Tinha por hábito levar Aguinaldo consigo para o trabalho de campo quando desempenhava a função de topógrafo.

O acompanhamento profissional com o pai no trabalho de campo concorreu para que Aguinaldo Muniz se familiarizasse com diferentes tipos de materiais e exercitasse novas aptidões, como o desenho de planta, detalhes de iluminação, contato com cópias heliografadas. A importância deste momento fora fundamental para a sua carreira, que lhe reservava instigantes caminhos. Este artigo refere-se, em específico, a referida habitação por ele projetada em Petrópolis.

Estudante no Colégio Atheneu Norte-Riograndense, considerado o mais importante da capital, berço intelectual de escritores e políticos do Estado, aprende a língua francesa, que amplia o seu acesso à literatura estrangeira, cuja contribuição ampliará os conhecimentos e formarão sua biblioteca, também composta por livros de Oscar Niemeyer e lembranças de amigos que, ao viajarem, o presenteavam com publicações técnicas voltadas para a profissão.

A casa da Praça das Flores1 – vamos convencioná-la desse modo – foi um dos muitos projetos autorais de Muniz. Projetos originais e de reforma de residências, mais a criação intelectual de importantes edificações de lazer da cidade como o Cinema Rio Grande e o A.B.C. Futebol Clube (o primeiro foi adaptado para ser uma loja de departamentos e o segundo um centro comercial), atinam para o reconhecimento e a complexidade de alguns destes edifícios. Assim como ele, outro prático teve destaque na cidade num momento anterior (e, depois, concomitantemente) à chegada dos primeiros arquitetos efetivamente formados pela Academia: o carioca Arialdo Pinho2.

O telhado borboleta, a rampa sinuosa, a localização imponente no lote acidentado, o painel artístico e o jardim florido são alguns dos postulados atinentes às edificações modernistas. Essa reunião de preceitos está presente na residência da família Garcia, que residia em outro município; para efetivar a compra do terreno, fora preciso vender parte da fazenda onde a família morava, em Macaíba – Região Metropolitana de Natal. Só após esta etapa, obteve-se carta de financiamento do IPASE - Instituto de Previdência e Assistência aos Servidores do Estado para construção da casa, iniciada em 1950 e concluída em 19583, em um bairro onde boa parte de suas ruas e avenidas ainda continuava de areia dunar e iluminação deficiente.

De acordo com a sequência dos trâmites do processo, a Carta de Aforamento à prefeitura, nº 7078 data de 8 de março de 1955; oficialmente, a posse do imóvel ocorre em 25 de junho de 1956, com a construção autorizada e inconclusa, encontrando-se na etapa final de acabamento4. Em 25 de setembro de 1957, o proprietário recorreu a mais um empréstimo (de um total de dois) para concluir a casa, que fora avaliada pelo engenheiro Milson Dantas, credenciado ao IPASE, estando a construção do imóvel efetivamente concluída em 10 de agosto de 1958 (etapa necessária para a liberação das duas últimas parcelas)5.

A habitação iria receber essa gente rica da área rural, cuja região não oferecia serviços de qualidade que suprissem suas necessidades, como, por exemplo, instituições de ensino. Franklin Garcia apresenta os motivos para o êxodo:

[...] meu pai teve que vender uma parte da fazenda e construir essa casa para a gente estudar aqui em Natal. Foi quando nós nos mudamos em 1955. Com a construção dessa casa em 1950 [o início], viemos todos morar aqui: eu, meu pai, minha mãe, minha avó, os cinco irmãos, o motorista, as empregadas6, babá. Era uma curriola de gente.

O material de construção destinado à parte estrutural da construção não fora comprado em Natal; foi “com tudo vindo de Macaíba, pedra que era da pedreira da fazenda, tijolo construído nas olarias”, informa. A mudança em definitivo para Petrópolis ocorreu quando a construção se encontrava na fase de acabamento. Para o imóvel, Aguinaldo Muniz propõe a divisão dos cinco quartos de maneira não uniforme: na parte de trás da habitação, eles se localizam próximos à sala e à “cozinha”/área molhada, mediados por um corredor e banheiro. Na frente da casa, à esquerda da sala, uma pequena rampa direciona para as dependências frontais à praça. Embaixo, recepcionado pelo jardim e lateralmente à esquina do lote emoldurado pela rampa sinuosa, o prático seccionou a área “silenciosa”, composta por sala de estudo, escritório e banheiro. O jardim interno, protegido por parede basculante de vidro, emoldurada em madeira, incorporava-se à sala (era desejo do proprietário instalar uma pequena piscina para o lazer das crianças na área verde, entretanto o equipamento nunca foi construído).

Um contraponto à aceitação da propriedade intelectual é manifestado por Edgard Dantas e sua mulher, Zênia, filha de Aguinaldo Muniz7. De acordo com eles, a proposta criativa partiu de Aguinaldo Muniz, dando detalhes acerca da concepção e local de manufatura do painel decorativo de azulejo na área do pavimento superior. Desta chancela ao reconhecimento de autoria intelectual, há de se interpretar essas forças buscando os elementos reais que envolvem a propriedade, cujo temário se volta aos relatos orais e se estrutura no aclaramento das discussões particulares a circulação desse conhecimento. Edgard Dantas testemunhou as (in)tensões prementes nos diálogos:

Algumas pessoas gostavam e pediam a casa igual. O povo ia pro livrinho de planta, aí a pessoa interessava e: “Ah!, eu quero desse jeito!”. A inovação? Ele fazia a planta da casa, a ocupação do terreno, e fazia a concepção da fachada, de acesso, e como era um artista, mudava o projeto dele com a concepção artística que era um diferencial importante.

De “vizinhança rica”, “social e “boa”, entorno residencial; a fachada havia sido “projetada em harmonia com a vizinhança atual” de acordo com o Laudo de Avaliação, Processo 12/58, INSS (Imagem 01). Ao situar in loco o entorno onde a vivenda, a realidade materializava-se, contraditoriamente, na falta dos itens classificados pelo profissional computador:

É barro, areia, aí [aponta para o entorno da casa]. Daqui a estrada era areia e na frente era o campo [também de] areia, que a gente jogava bola, fazia São João, quadrilha, essas brincadeiras, foguetões... Ali só casinhas humildes. [...] eu aprendi a dirigir na caminhonete dele [do pai] fugindo e atolava. [...] todas as ruas eram barro, o asfalto que era essa pista americana, foi construída do aeroporto para aqui; só tinha uma mão, passava de lá da rua Potengi, tinha o campo de futebol do ABC. A gente vinha na areia, quando chegava aqui já era atoleiro. Era uma dificuldade para construir essa casa, depois foi que no governo de Agnelo Alves, em [19]65, passou um trator para construir uma pista para descer à maternidade [-Escola Januário Cicco, distante cerca de 500 metros]

A casa urbana era rastro das novidades. A historiografia desse período da arquitetura modernista natalense, em especial voltada às edificações erigidas em generosos lotes, revela a necessidade – e quase obrigatoriedade – por exemplo, de se incluir o local para acondicionar as aves no projeto da habitação (Imagem 02). A casa da Praça das Flores também tinha o seu. O local era importante para se manter os costumes alimentares e saudáveis, visto que, dever-se-ia manter essas aves soltas, livres, como ocorria nos sítios e fazendas. Franklin Garcia recorda:

Esse aqui era um terceiro jardim. Como a gente veio do interior, aqui tinha um galinheiro e um canil; a gente comia galinha de supermercado nem nada não, trazia de Macaíba [a] galinha caipira8, era alimentada aqui e no galinheiro de manhã. Os ovos que nós comíamos era daqui, e quando ia fazer uma galinhada era com a caipira.

Localizados nos fundos do lote, o galinheiro não era digno de ser visto/mostrado aos olhos dos visitantes, entretanto, imaginava-se como item indispensável das raízes interioranas a fazerem parte da vida na capital. Eram, de certa maneira, exigência não completamente esdrúxula dos clientes quando dos projetos dessas novas residências. Para a completude do projeto, a escolha de materiais para as soluções construtivas eram extensas (Imagens 03, 04, 05, 06).

Imagem 01. Detalhes da descrição do processo. Em sua íntegra, informações acerca do entorno e da classe social do bairro: a “vizinhança” do tipo rica. O terreno mede 555m².

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Fonte: Acervo INSS.

Imagem 02. No programa, a insolação nos quartos foi classificada como boas. Itens como “Residência de empregados” e “garage” compõem o projeto

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Fonte: Acervo INSS.

Imagem 03. Uso de janelas giratórias, venezianas e vidro somam ao projeto moderno idealizado por Aguinaldo Muniz. Da pavimentação às esquadrias, das janelas pivotantes à alvenaria e laje de concreto no forro, o processo detalhava as especificações

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Fonte: Acervo INSS.

Imagem 04. Materiais naturais nobres como sucupira e cedro para as janelas, taco e ladrilho hidráulico, alvenaria de pedra e tijolo (que veio da fazenda em Macaíba

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Fonte: Acervo INSS.

Imagens 05 e 06. Plantas dos dois pavimentos.

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Fonte: Acervo MUsA.

A imagem do casal Enock e Nadir posando na curva da rampa (Imagem 07), sustentada por pilares em “v”, revela, de modo sintomático, as contradições entre a realidade “construída” para o laudo e o espaço real, vivido, experienciado. A rua e a casa, extensões de si. De modo que, é possível identificar a varandinha que delimitava o espaço entre a casa e a rua, cujo desenho decorativo era o mesmo da balaustrada e, ao fundo, a rua cel. Joaquim Manoel sem o canteiro central atual e sem a praça. As habitações da rua Seridó talvez fossem a representatividade das classes sociais dos moradores próximos.

Imagem 07. Elevado, o casal escolhe a posição estratégica na novidade acessível aos olhares dos passantes, posando na curva da rampa, cujo pano de fundo não denunciava a modernidade “sugerida” pela documentação do INSS

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Fonte: http://www.historiaegenealogia.com/2009/10/nadir-meira-garcia.html.
Acesso em: 19 de agosto de 2016.

Aguinaldo Muniz contemplou na proposta para a habitação do casal Garcia o partido que amalgama a funcionalidade à representação plástica – visual e pormenorizada – conforme se evidenciam as expressivas escolhas dos diferentes tipos e cores de revestimentos, os pilotis, a rampa, janelas em fita, painel decorativo, áreas verdes, brises e cobogós. Em registro de recentes anos é possível captar as expressões de preceitos da arquitetura modernista que integram a casa, onde se vê os azulejos decorativos no muro base para o suporte da varanda e pilares da garagem, o pequeno, porém exuberante jardim que protegia os ambientes abertos dos olhares indiscretos, e a frente do pavimento superior sem o pano de vidro, mais a janela pivotante e a fachada contínua (Imagem 08). Percebe-se, ainda, a supressão da varanda e do jardim do pavimento térreo com vistas a estacionamento, assim como a transmutação do escritório e da garagem em salas. Nos dois prismas, abertura de grandes vazios com pano de vidro para a adição de novos ambientes, ao mesmo tempo em que servem de vitrines. Na lateral à rua Dionísio Filgueira já não mais consta o muro; a calçada serve de estacionamento (Imagem 09).

Esta fidelidade se percebe nas soluções plástico-formais distintas, onde o apego às artes se mostra exuberante no emprego dos pilotis com revestimento decorativo (Imagem 10), assim como os azulejos decorativos e multicores, a cerâmica na garagem etc. Fidelidade que significa escolha, intenção. A sinuosidade do canteiro (Imagem 11), a superfície composta por mosaicos em cor, a escolha de plantas tropicais com função estética dialogando como entorno, assemelha-se ao que Burle Marx desenvolvia na década de 1950 para a arquitetura residencial modernista, por exemplo, para a casa de campo projetada por Henrique Mindlin em 1955. “Trata-se de um princípio de composição transposto da pintura moderna para a natureza viva”, assim percebia aquele momento criativo pujante à época o historiador suíço e um dos principais teóricos da arquitetura Sigfried Giedion (2002, p. 157, 158).

Imagem 08. Fachada principal com o telhado borboleta totalmente exposto.
Nota-se o piso da calçada e o azulejo decorado da mureta. Quebra de sisudez

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Fonte: Acervo MUsA.

Imagem 09. Provavelmente a segunda grande intervenção na caixa, supressão da vegetação, do muro, dos cheios e a predileção pelo vidro. Em junho de 2016, o processo de camuflagem por meio da afixação da placa do estabelecimento, deixa efetivamente de existir para dar uma feição contemporânea à fachada, mudando para o prisma retangular

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Fonte: Frederico Luna (2014).

Imagem 10. Aspecto artístico adotado nos pilotis. O painel decorativo do muro lateral é mais uma proposta dialógica inclusiva de diferentes tipos de materiais com forte apelo visual, evidenciada quando em espaços interligados

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Fonte: http://musaufrn.wix.com/iconesmodernistas#!joaquim-manoel/c1j2c. Acesso em: 12 set. 2016.

Imagem 11. Entrosamento de propostas artístico-funcionais para parte do pavimento térreo. À esquerda, parte dos pilotis que muda de completamente de desenho no pavimento superior

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Fonte: http://musaufrn.wix.com/iconesmodernistas#!joaquim-manoel/c1j2c. Acesso em: 12 set. 2016.

Em 1971, Bruno Zevi salientava (e concordava) com a crítica que o suíço Max Bill, considerado por ele “um dos melhores arquitetos europeus da segunda geração, dirigente do CIAM9”, estabelecia para a apropriação quase alegórica dos elementos funcionais criados por Corbusier. Quase uma aventura irresponsável:

Enfim, os pilotis. É notório para todos que Le Corbusier ama suspender seus prismas construtivos sobre pilastras que permitem, no térreo, uma livre circulação; no Ministério da Educação os pilotis são colunas de concreto armado espaçado ritmicamente. Os brasileiros, porém, são exuberantes, apropriaram-se do motivo dos pilotis e neles disseparam sua fantasia: pilotis grossos e finos, retos e tortos, altos e baixos, circulares, quadrados, freqüentemente de moldes estranhos e fantasiosos, barbaramente desordenados. “Tais obras nasceram de espíritos desprovidos de qualquer decência e de qualquer senso de responsabiliade para com as necessidades humanas”: menos diplomático impossível, mas Max Bill não aprecia acordos frívolos (ZEVI, 2002, p. 175).

Em nível local, Aguinaldo Muniz criou grandes espaços abertos na residência que se relacionavam tanto com o ambiente externo quanto na intimidade familiar. Porém, as necessidades impostas pelo comércio de serviços, em específico ao imóvel da família Garcia, privilegiado pela localização geográfica e projeto arquitetônico, faz-se debalde. A ausência de cuidados com o bem, no sentido de proteção à memória e ao patrimônio cultural construído presenciado no local é apenas um dos muitos casos que acometem, rapidamente, as principais avenidas e ruas de Petrópolis (refiro-me apenas ao bairro em questão).

Franklin Garcia relata o desmonte que a residência sofre a cada reuso. A eloquente sedução do mercado imobiliário e de serviços frente a edificações como a casa da sua família, atina à vulgarização estética e funcional às quais são submetidas as habitações características do final de 1940 à década 1970 em Natal. Como exemplo dessa realidade, o extermínio do jardim e janelas frontais, a retirada de parte do piso à derrubada de paredes e portas (embora, confidencia, eleja alguns itens proibidos de sofrerem alteração, como o painel de azulejo característico da arquitetura modernista)10. Esse espólio ao bem material fica evidente nas vicissitudes da compreensão às forças que se depreendem ao valor institucional e à memória do patrimônio, conforme evidenciado no relato de Garcia: “[...] por isso que eu digo, a memória é uma constante, era para gente até, não fomos consultados, mudar, fugindo do contrato, tirando, descaracterizando a casa”.

2 Perspectivas de um passeio visual

A partir do instante em que a casa da Praça deixa de cumprir a sua principal função, que é a de servir de abrigo aos seus moradores, os desmontes são em contínuos e incisivos para a desmantelamento de seu patrimônio. A fachada que se abria à rua Coronel Joaquim Manoel e se fechava para o logradouro lateral, por exemplo, passa por uma ocorrência que quebra essa discrição, para torná-la exposta. Ao transformar a habitação em imóvel comercial – e a tendência dessa finalidade é durar até a próxima oferta do mercado – rompe-se com a racionalidade da proposta arquitetural, evidenciando o desrespeito à memória afetiva dos ex-habitantes, citadinos, à história urbana e ao autor do projeto, contribuindo para nascimento de anomalias na paisagem, desnudando sem pudores seus atributos autênticos, seus segredos tão bem guardados.

As soluções impostas à edificação, voláteis a cada momento de sua historiografia, hoje em franco esquecimento do momento anterior às características que a habitação apresentava, não consideram em nenhum momento a gênese intelectual, pensada para ela. No pavimento superior onde, após subir a sinuosa rampa e desembocar na “área” da entrada da habitação, deparava-se com painel de azulejos O Jangadeiro ocupa a dimensão da parede; sua considerável dimensão possibilitava a observação dos passantes na rua. Na extremidade direita da imagem, nota-se o decorativo guarda-corpo em ferro. Assim como a pintura, a cerâmica não mais existe. À esquerda, a presença de janelas pivotantes em fita. Já a perspectiva de dentro da varanda (Imagem 12) possibilita notar a supressão do guarda-corpo, substituído por pano e porta de vidro, e a substituição da cerâmica original do piso pelo revestimento aparente. Por seu turno, o ponto de vista da varanda a maneira da sala (Imagem 13), permite identificar, à direita, parte do mobiliário de escritório da empresa locatária; ao fundo, a Praça das Flores, com sua cobertura em lona tensionada para abrigar bares e serviços, cuja maioria desses estabelecimentos encontra-se fechada, fora de operação.

Imagem 12. Pano e porta de vidro substitui a grade da varanda,
barrando também a ventilação natural

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Fonte: Frederico Luna (2014).

Imagem 13. Visão da sala a descortinar na praça das Flores

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Fonte: Frederico Luna (2014).

Muniz privilegiou as laterais da varanda do pavimento superior com a escolha de dois expoentes nacionais, que reúnem a forma/função e a arte, não necessariamente separadas no significado. O cobogó em cerâmica (Imagem 14) – que faz parte de outros ambientes - dirimia a incidência poente e facilitava o escoamento da ventilação, entretanto, a instalação do condicionador de ar exigiu a adição de vidro na face interna, eliminando suas funções primeiras. Na outra extremidade, o anteriormente citado painel ocupa lugar de destaque, atentando para a criação artística, nomeadamente a dimensão, o desenho e a paleta de cores da obra. Antes de ser completamente apagado da memória edificada (e afetiva), apresentava sinais de desgaste (Imagem 15), com várias peças terem-se descolado, ocasionando hiatos à concepção original da obra.

Imagem 14. O cobogó ainda preservado com pano de vidro, também foi usado para bloquear a passagem natural do vento, no momento artificial

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Fonte: Frederico Luna (2014).

Imagem 15. Isolado, o Jangadeiro apresentava sinais de desgaste,
como o descolamento das peças

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Fonte: Frederico Luna (2014).

A extensão do vão único das salas de estar, jantar e a copa, mostra a atenção que o prático destinou para o conforto e bem-estar da família. O amplo volume, outrora organizado de acordo com a distribuição do movelário em madeira, com o balcão “torneado de coluna” que acomodava as peças antigas de dona Nadir, mais o sofá, demarcava o uso dos espaços. No vazio encontrado, o incômodo da liberdade ilusória. A observação feita da rua Desembargador Dionísio Filgueira com foco na lateral da habitação não dá subsídios para que se compreenda a distribuição interna desses ambientes; não se imagina que são as salas e a cozinha.

Uma vez adentrando à habitação, a visão que se tem a partir da entrada, com a sala ampla em primeiro plano indica, à direita, os cobogós, que fazem divisão com o jardim interno, quebram a monotonia e permitem a entrada do ar e da luz. Entretanto, nos dois dias em que se esteve na residência, a composição não ostentava as finalidades às quais haviam sido pensadas: seu uso resumia-se à entrada de ventilação para área da estação de trabalho (Imagem 16). O piso em madeira apresentava estágio de deterioração por conta dos cupins. A diversidade de materiais escolhidos por Aguinaldo Muniz para os revestimentos, com as suas cores e funções, é considerável. Parte dessa representatividade (Imagem 17) traz elementos disponíveis a época e que eram considerados também consonantes para se entender a arquitetura modernista, devido a propagação de seus usos, como o ladrilho hidráulico (em hexágono), o mármore entre a divisão de ambientes e rodapés, a junção de diferentes tipos de madeira para o piso - com função decorativa - e os azulejos de diferentes cores causando efeito visual nas paredes.

Imagem 16. A delimitação do cobogó e a ampliação da área social interna.
Os móveis são contemporâneos

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Fonte: Frederico Luna (2014).

Imagem 17. Multiplicidade de revestimentos, texturas e cores.
A madeira apresenta nichos de insetos roedores

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Fonte: Frederico Luna (2014).

A substituição das discretas janelas pivotantes em grandes prismas de vidro permite a compreensão do interior aos olhos da rua (Imagem 18); toldos de proteção contra chuva e sol foram instalados em toda a dimensão externa onde, outrora, essa função era das árvores plantadas para este fim. Internamente, no pequeno corredor à direita de quem entra na sala, é possível aferir a pequena rampa elevatória para os ex-quartos, transformados em salas da – então - imobiliária, e a oclusão, também à direita, do local onde havia as janelas que se abriam para a varanda (Imagem 19). A escada que outrora ligava os dois pavimentos teve sua função à comunicação do primeiro andar com o térreo interrompida: a ela coube o destino da demolição.

Imagem 18. A quebra total da parede atinge a privacidade invatida. Banners, toldos e panos de vidro deixam a rua entrar sem convite

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Fonte: Frederico Luna (2014).

Imagem 19. Os ex-quartos frontais transformaram-se em salas de escritório. Na circulação, as janelas pivotantes ocupavam a depressão retangular à direita

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Fonte: Frederico Luna (2014).

Ao adentrar pela primeira vez no generoso vão retangular, a sensação que se tem ao caminhar dentro da ex-habitação era a de não compreensão espacial dos fundamentos elencados para o programa. Acrescente-se a experiência, a falta de conhecimento do partido e das intenções programadas para o uso da vivenda, mais a ausência de móveis e objetos de decoração, as condições da vida intrafamiliar diária, o sentimento de morte prematura, e se tem uma espécie de eutanásia ao espírito moderno que a marcou, vulgarizada pela modernidade enlevada.

Assim, a área destinada às salas quedou insuficiente, cuja solução foi ocupar o espaço da cozinha com mais um ambiente de escritório (Imagem 20). As persianas bloqueiam a incidência solar e a visão da rua, recurso indispensável para cobrir a extensa parede de vidro (salienta-se que todos os blocos de janelas desta face foram trocadas pelo material transparente e ocupam a extensão destas). O jardim interno, onde havia as reuniões festivas e era o local de brincadeira das crianças, excetuando-se a rua, que também era utilizada para este fim, recebeu uma grade de segurança (Imagem 21), quebrando a relação antes volátil entre os ambientes.

Imagem 20. De cozinha para escritório

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Fonte: Frederico Luna (2014).

Imagem 21. As grades oficializam o caminhar condicionado

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Fonte: Acervo do autor.

Os pequenos elementos cilíndricos vazados, adotados para a ventilação de um dos quartos que compõem a outra ala dos aposentos, na parte dos fundos do edifício, coroam a porta do aposento, emoldurada em desenho geométrico, que tem a superfície interna composta pela textura resultante de pequenos orifícios. Aguinaldo Muniz utilizou os azulejos em preto e branco para delimitar a área – no mesmo perímetro – molhada. A passagem para a circulação que leva a mais dois quartos e banheiro aparece timidamente à direita da fotografia (Imagem 22). O brise-soleil em alvenaria recupera a luz externa ao mesmo tempo em que dialoga com o jardim interno; presume-se que este elemento não possibilitava a coerente iluminação nas primeiras horas da manhã, visto que estava voltado para o poente (Imagem 23).

Imagem 22. Porta de madeira decorada em texturas, azulejos na área molhada formando grafismos, a simétrica passagem para ventilação do quarto

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Fonte: Frederico Luna (2014).

Imagem 23. Circulação do bloco de trás é iluminada pelo brise em alvenaria, solução encontrada em outras habitações da época em Tirol e Petrópolis

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Fonte: Frederico Luna (2014).

Cruzando ausências, interferências, novos vazios e poucos cheios, chega-se à área molhada. A preferência pelo uso multicor dos revestimentos, os grafismos das combinações em simetria destinados a cada superfície, são outras aplicações que remetem ao racionalismo moderno. O piso em cerâmica e os azulejos em diferentes matizes explicitam o diálogo plástico contido na proposta para os revestimentos (Imagem 24). O cobogó que limita o final da habitação tem proporção maior da área vazada do que os aplicados nas outras dependências; ao transpô-lo, chega-se à entrada de serviço (Imagem 25), feita pela rua Desembargador Dionísio Filgueira. Destoantes à concepção projetual, as barreiras de ferro refletem a crescente insegurança promovida por agentes externos.

Imagem 24. O colorido da área molhada. Ao fundo, nota-se mais um modelo de cobogó

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Fonte: Frederico Luna (2014).

Imagem 25. Entrada lateral pelos fundos da casa. Grades de diversos tamanhos e gramaturas delimitam o lugar

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Fonte: Frederico Luna (2014).

3 Considerações finais

A vivenda traz alguns elementos relevantes de um momento da arquitetura brasileira. O crítico Mário Pedrosa (2002), ao comentar acerca da “tendência entre arquitetos” de darem especial teor de diferenciação atinentes “as pesquisas plásticas no plano das superfícies, talvez em detrimento de um pensamento espacial mais articulado e mais aprofundado, nos jogos dos volumes e dos espaços interiores”, quando das querelas entre a “integração funcional e plástica”, que ainda carecem de soluções. Tal processo se faz perceber pela maneira que “as tentativas de revestimento das paredes em mosaico com azulejo, por exemplo, velha e encantadora arte portuguesa transplantada para o Brasil colonial e morta no século passado, ainda não deram resultados convincentes” (PEDROSA, 2002, p. 193).

Na referida casa do bairro Petrópolis, conservavam-se os revestimentos em azulejos na área molhada; em algumas superfícies, o prático optou por afixá-los em meia parede. A representatividade plástica e o significativo simbolismo do painel na área de entrada ajudam a compreender o uso dessas alternativas por ambas as classes trabalhistas.

O interior da habitação não comportava a divisão entre as salas de jantar, de visita e a copa. O amplo ambiente único era organizado de acordo com a distribuição do movelário em madeira, tendo o balcão “torneado de coluna” que acomodava as peças antigas de dona Nadir. Coube ao sofá as funções de demarcação dos ambientes. O rigor da arquitetura era quebrado pelas adaptações ao estilo de vida rural. A casa urbana demandava a manutenção dos hábitos interioranos, de modo que diversos relatos orais colhidos para a tese dão conta dessa exigência dos clientes quando dos projetos dessas novas residências.

Franklin Garcia deixa perceber a lacuna da alma provocada pela falta da (con)vivência diária na habitação, que o acompanhou por décadas: “Faz seis anos que eu saí daqui. Tô aqui morrendo de saudade. Ave maria, viver toda a infância... vim com quatorze [anos]”. Este tipo de lembrança, misto de relações sociais, aventuras, descobertas, brincadeiras, festas, liberdade vivenciadas pelas crianças, junto à rua, à praça, ao campinho de futebol e principalmente sob o aconchego da habitação, não só ajudam a contextualizar a paisagem e o meio construído, mas, sobretudo, evidenciam o hiato de uma vida que não mais volta, presa no espaço-tempo.

Aguinaldo trabalha intensamente até os 70 anos de idade. Com o avanço desta, perde a firmeza da mão; mantém a habilidade, porém a agilidade, rapidez, decaem. Falece em 4 de abril de 2010 em Natal, acometido de pneumonia e depressão. Sua importância para um momento particular da arquitetura modernista de Natal, no Rio Grande do Norte, segue a mesma estrada em vias de pavimentação emocional que a “casa da Praça das Flores” escreve seu destino. Ambas se cruzam nos caminhos do esquecimento, presentes apenas nas lembranças afetuosas de um passado recente.

Referências

GIEDION, Sigfried. O Brasil e a Arquitetura Contemporânea. In: Depoimento de uma geração. Arquitetura moderna brasileira, XAVIER, Alberto (org.). Cosac & Naify, São Paulo, 2002.

HISTÓRIA E GENEALOGIA. Disponível em: <http://www.historiaegenealogia.com/2009/10/nadir-meira-garcia.html> Acesso em: 19 ag. 2016.

MUsA - Grupo de Pesquisa em Morfologia e Usos da Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Disponível em: <http://musaufrn.wix.com/iconesmodernistas#!joaquim-manoel/c1j2c> Acesso em: 12 jul. 2016.

PEDROSA, Mário. Arquitetura moderna no Brasil. In: Depoimento de uma geração: arquitetura moderna brasileira. XAVIER, Alberto (org.). São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

ZEVI, Bruno, XAVIER, Alberto (Org.). A moda lecorbusiana no Brasil. In: Depoimento de uma geração. Arquitetura moderna brasileira. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

Revista de Arquitetura IMED, Passo Fundo, vol. 6, n. 1, p. 85-105, Jan.-Jun., 2017 - ISSN 2318-1109

DOI: http://dx.doi.org/10.18256/2318-1109/arqimed.v6n1p85-105

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