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A arquitetura das primeiras casas modernistas de São Paulo

The architecture of the first modernist houses of São Paulo

Rogério Novakoski

Arquiteto e professor na área de Arquitetura (UNIP e Cursos Técnicos pelo SENAC).
E-mail: [email protected] | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1825-0097

Resumo

Em um período que o país buscava a sua identidade nacional, novos arquitetos paulistanos, como Henrique Mindlin, Gregori Warchavchik, Rino Levi, João Vilanova Artigas, entre outros, mostravam o impulso de inserir propostas arquitetônicas vanguardistas, influenciadas, principalmente, pela estética orgânica de Frank Lloyd Wright e pelo design progressista de Le Corbusier. No entanto, essa geração de arquitetos teve a resistência da burguesia conservadora, que enxergava o modelo tradicional da residência como símbolo de poder perante a sociedade. Assim, este trabalho, através de uma metodologia de pesquisa bibliográfica e documental, pautada em levantamentos e estudos de trabalhos nas áreas de Arquitetura, Urbanismo e Sociologia, fotografias, desenhos técnicos e visitas a residências de grande importância histórica, faz uma análise das características arquitetônicas das primeiras residências modernistas da burguesia paulistana, em seus aspectos plásticos e funcionais, observando a mescla das novas ideias do século XX com elementos tradicionais ecléticos europeus e neocoloniais.

Palavras-chave: Residências. Modernismo. Burguesia Paulistana.

Abstract

In a period when the country was seeking its national identity, new architects from São Paulo, such as Henrique Mindlin, Gregori Warchavchik, Rino Levi, João Vilanova Artigas, among others, showed the impulse to insert avant-garde architectural proposals, by the organic aesthetic of Frank Lloyd Wright and the progressive design of Le Corbusier. However, this generation of architects had the resistance of the conservative bourgeoisie of the city, who saw the traditional model of house as a symbol of power before society. Thus, this work, through a methodology of bibliographical and documentary research, based on surveys and studies of works in the areas of Architecture, Urbanism and Sociology, photographs, technical drawings and visits to houses of great historical importance, makes an analysis of the architectural characteristics of the first modernist houses of the São Paulo bourgeoisie, in its plastic and functional aspects, observing the mixture of the new ideas of the 20th century with traditional eclectic European and neocolonial elements.

Keywords: Homes. Modernism. Paulistan Bourgeoisie.

A arquitetura modernista1 paulistana

A necessidade de se ter uma identidade brasileira na arquitetura e na arte era bem nítida desde o início da década de 20, com a difusão do Neocolonialismo. Esse “espírito” era encontrado também na literatura e nas artes plásticas, através de jovens artistas, criando e fortalecendo um novo movimento, que seria chamado de Modernismo.

Entre os historiadores existe um consenso de que o marco inicial do movimento modernista no Brasil ocorreu em São Paulo, em dezembro de 1917, com a exposição de pinturas da artista Anita Malfatti. Essa exposição provocou uma reação negativa entre os críticos, que defendiam o estilo tradicional e acadêmico. Por outro lado, chamou a atenção dos jovens intelectuais que se solidarizaram com a pintora e se articularam na criação do primeiro grupo modernista brasileiro, colocando em debate os conceitos conservadores no meio artístico em geral e propondo a renovação do ambiente cultural. A primeira importante manifestação desse grupo foi a Semana de Arte Moderna, em fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo (SEGAWA, 2010).

Hoje, passados quase cem anos, pode-se ter mais clareza sobre os acontecimentos da época. A aparente contradição entre a necessidade de identidade, em contraponto com a modernidade, traduz uma nova visão do passado, só possível com a superação dos convencionalismos criada pelo Modernismo. Assim, a eclosão da Semana de Arte Moderna ocorreu com transposições francesas de Anita Malfati, que conviviam com as ideias da Antropofagia de Mário de Andrade, em uma mistura da cultura moderna internacional e a revisitação das tradições do Brasil colonial, antes escondidas pelas elites sociais.

A Semana de Arte Moderna em São Paulo não propôs nenhuma mudança na arquitetura brasileira. O nome “moderno”, na arquitetura, ainda era um adjetivo vinculado à arquitetura neocolonial racionalizada. Somente em 1925, dois artigos escritos pelos arquitetos Rino Levi e Gregori Warchavchik trouxeram ideias alinhadas à vanguarda moderna europeia, lideradas por Le Corbusier, Walter Gropius, Mies Van der Rohe, o arquiteto norte-americano Frank Lloyd Wright, entre outros.

No artigo “A Arquitetura e Estética das Cidades”, publicado no jornal “O Estado de São Paulo”, Rino Levi chamou a atenção para a nova arquitetura prática e econômica, caracterizada por linhas e volumes simples e pelo uso de materiais diferentes, com novas técnicas construtivas. No artigo “Acerca da Arquitetura Moderna”, publicado no jornal carioca “Correio da Manhã”, Gregori Warchavchik elogiou o racionalismo das máquinas e ressaltou a importância da estandardização dos elementos arquitetônicos. Ambos propunham não somente novas ideias formais, mas colocavam em debate as questões econômicas na construção e a importância da velocidade na produção de edifícios, que poderia ser melhorada com o uso de novas tecnologias. No entanto, essas publicações não mudaram em nada o pensamento da maioria dos arquitetos da época, mas foram textos guardados para, mais tarde, serem resgatados pela historiografia do Modernismo, dessa forma tornando possível comprovar as ideias registradas na arquitetura desses dois arquitetos (SEGAWA, 2010).

Na Europa, Le Corbusier havia apresentado uma reinvenção do conceito da casa: “a máquina de morar”, pensamento gravado em 1923 em sua obra “Por uma Arquitetura” (2000), através das seguintes palavras: “Uma casa é uma máquina de morar. Banhos, sol, água quente, água fria, temperatura conforme a vontade, conservação dos alimentos, higiene, beleza pela proporção”. Essa “nova casa” deveria funcionar tão bem como uma máquina, e sua forma arquitetônica, de características cubistas, seria fruto de suas necessidades, conceito baseado nos padrões da Bauhaus e sintetizado na célebre frase: “a forma segue a função”. Tal ideia foi criticada por muitos arquitetos tradicionais. No entanto, foi apoiada por vários outros arquitetos vanguardistas e intelectuais no mundo inteiro, que viam esse novo modelo de arquitetura como um padrão universal e revolucionário. No Brasil, Gregori Warchavchik era um dos maiores admiradores e apoiadores de Le Corbusier, como mostra o texto a seguir, de sua autoria:

Na construção aperfeiçoada de uma máquina não procuramos criar um objeto de beleza. Queremos que seja de perfeita utilidade, de perfeito funcionamento, queremos também que não custe mais do que o necessário a esse perfeito funcionamento. Disto resultam proporções e formas tão harmoniosas e convenientes que não pensamos por um único segundo que essas formas poderiam ser diferentes.

Defronte a uma perfeita locomotiva, a um telescópio, defronte a qualquer maquinismo aperfeiçoado, temos o sentimento feliz e seguro de que assim, e não de outra maneira, poderiam estes instrumentos ser construídos.

Em arquitetura, os problemas são os mesmos e só da mesma maneira poderão ser resolvidos (WARCHAVCHIK, 2006, p. 57).

Essa necessidade de enxergar a casa moderna como uma verdadeira máquina de morar foi fruto da Revolução Industrial, que trouxe ao homem da época um impulso para otimizar o tempo e o espaço em suas ações cotidianas. Automóveis, aeroplanos, eletrodomésticos e outras máquinas surgiram como equipamentos que deram ao homem uma nova sensação de poder e domínio sobre a natureza, o espaço e o tempo. Por outro lado, trouxeram um ritmo diário mais acelerado e uma nova percepção de tempo e espaço à população das metrópoles, transformações essas que se refletiram claramente no modo de viver do homem moderno.

O problema da casa é um problema de época. O equilíbrio das sociedades hoje depende dele. A arquitetura tem como primeiro dever, em uma época de renovação, operar a revisão dos valores, a revisão dos elementos constitutivos da casa”. (LE CORBUSIER, 2000, p. 159).

Sendo o problema da casa uma questão de época, como dizia Le Corbusier, os chamados arquitetos modernistas, no mundo todo, defendiam que o homem moderno não poderia se conformar com uma arquitetura do século passado e, assim, deveria abrir os olhos às novas possibilidades que os materiais industrializados e as tecnologias da época lhe proporcionavam para as construções e soluções das necessidades do homem do século XX. Para Le Corbusier, a verdadeira arquitetura era aquela que deveria se preocupar em resolver problemas de maneira simples e racional, sem o objetivo de se esconder atrás de ornamentos decorativos, como crítica a todas as correntes da arquitetura eclética.

Novos materiais de construção, como o aço e o concreto, permitiram o desenvolvimento de tipologias arquitetônicas com traços retos e mais simples, que se adaptaram à chamada nova “estética universal” e cobriram as necessidades de higiene, iluminação natural e funcionalidade dos ambientes residenciais, através do uso de técnicas construtivas ainda mais práticas e rápidas.

Dentro dessas novas possibilidades criativas, Le Corbusier fundamentou sua “máquina de morar” em tópicos, que ele chamou de os “5 pontos da nova arquitetura”: 1) o edifício elevado sobre pilotis; 2) a planta livre obtida através da independência entre os elementos estruturais e as vedações internas; 3) a fachada livre obtida através da independência entre os elementos estruturais e a vedação externa; 4) as janelas longas, resultado da criação de fachadas livres; 5) a laje-jardim (ou terraço-jardim). (Figura 1).

5 pontos le corbusier

Figura 1. Desenhos de Le Corbusier representando os “5 pontos da nova arquitetura”.

Fonte: Desenhos de Le Corbusier https://histarq.wordpress.com/2012/11/24/le-corbusier-1a-parte-1919-1932/ - copiada em 16-04-2015

Esses cinco tópicos foram resultado de pesquisas realizadas pelo arquiteto, em seus primeiros anos de carreira, e permitiram tornar independentes os elementos construtivos do projeto, possibilitando maior criatividade formal do edifício, maior comunicação entre o espaço interno e o externo, e maior continuidade espacial entre os ambientes em seu interior.

As ideias de Le Corbusier, com sua arquitetura modernista racionalista, influenciaram muitos arquitetos jovens brasileiros, entre eles Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, no Rio de Janeiro. Porém, devido ao fato de São Paulo ainda ser uma cidade que não aceitava facilmente novos conceitos e estilos revolucionários, e também por ser a metrópole brasileira de maior contato econômico e cultural com os Estados Unidos no início da década de 30, o maior prestígio de seus jovens arquitetos era em relação ao arquiteto norte-americano Frank Lloyd Wright e seu estilo modernista orgânico. A escassez do cimento e do aço importados, consequência da Segunda Guerra Mundial, também contribuiu para que alguns arquitetos encontrassem, em Wright, soluções modernas, independentes do uso desses materiais. Essa influência de Frank Lloyd Wright em São Paulo fez surgir, muitas vezes, uma solução mista, encontrada nas arquiteturas de João Vilanova Artigas, Rino Levi, Oswaldo Bratke, entre outros (BRUAND, 2010). Com esses arquitetos, a partir dos anos 1940, a arquitetura modernista de São Paulo passou a ter características bem próprias, cada vez mais diferenciadas da produção carioca. Além de Wright, influências como as de Richard Neutra, Gropius e Mies van der Rohe também podiam ser notadas em alguns projetos, e o rigor construtivo e funcional tornou-se a principal marca dessa geração na arquitetura paulistana.

No entanto, apesar de algumas diferenças plásticas e diversidades no uso de materiais construtivos, os diferentes estilos modernistas tinham sua base conceitual em comum, sintetizada nos “5 pontos da nova arquitetura”, descritos por Le Corbusier.

Portanto, a corrente orgânica possui uma personalidade indiscutível e exprime aspirações diferentes das do racionalismo, mas não se pode falar de antinomia absoluta: as duas tendências estão fundadas na exploração da planta livre e vinculam-se à criação de uma continuidade espacial fruto da visão cubista. É por isso que existem obras intermediárias, às vezes de difícil classificação, influências difusas num sentido ou noutro, sem esquecer as confusões originadas de uma denominação genérica capaz de recobrir diferentes interpretações (BRUAND, 2010, p. 271).

O uso de soluções mistas

A liberdade formal que a arquitetura modernista permitia ao edifício e suas linhas retas e isentas de ornamentos manufaturados, devido à utilização do aço, do concreto e peças industrializadas, refletiam-se também na organização do interior da casa, com a “planta livre”, na possibilidade de separar a estrutura dos elementos de vedação.

A utilização de elementos construtivos, como brises, pérgolas, cobogós, grandes vãos abertos e vedações com grandes placas de vidro; o uso de eletrodomésticos; e as novas necessidades residenciais, tudo isso trouxe fluidez, leveza, transparência e um controle maior do homem sobre o espaço em sua casa.

Surgiu, assim, uma arquitetura conceitualmente revolucionária e diferenciada em seus aspectos plásticos, tecnológicos e funcionais. Porém, em São Paulo, essa arquitetura era claramente contrária à ideologia de muitos da alta classe tradicional da época, que mantinham a imagem de suas residências neocoloniais como símbolo de riqueza, conquistada com as plantações de café, e como peça necessária de distinção social. Poucos representantes dessa elite social juntamente com vários jovens intelectuais da cidade mostravam interesse pelas diferentes formas de expressão do movimento modernista.

Na década de 40, o arquiteto João Vilanova Artigas, apesar da sua ideologia comunista, enxergava a burguesia industrial paulistana como a classe de poder transformador do país, e projetou grandes residências para essa classe social. Segundo seu discurso, ele buscava, com a sua arquitetura, “reeducar” essa nova burguesia, através de uma ética que propunha a limpeza de excessos em móveis, ornamentos e quaisquer outros símbolos de riqueza, em completa oposição a todos os modelos ecléticos, e incentivava o uso do capital de forma “útil”, com aplicações na industrialização e no desenvolvimento do país (ARANTES, 2002). Apesar do discurso, nos primeiros projetos de Artigas para a burguesia paulistana, pode-se perceber claras características ecletistas, como por exemplo as encontradas na arquitetura da residência do senhor Nicolau Scarpa Jr., no bairro do Pacaembu, projetada em 1942 (Figura 2). Nesse projeto, Artigas propôs uma arquitetura com um desenho normando, através de um telhado inclinado e repleto de recortes, construído em alvenaria portante pintada de branco e tijolos aparentes. No entanto, no interior da casa já se notava a preocupação modernista de dar continuidade aos ambientes, separados apenas por pequenos desníveis. É um projeto que reflete algumas influências de Frank Lloyd Wright, somadas às necessidades e ao pensamento conservador da alta classe social.

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Figura 2. Vista do corredor com a porta de entrada lateral no projeto da casa do senhor Nicolau Scarpa, criado por João Vilanova Artigas.

Fonte: PETROSINO (2009, p. 243).

Portanto, nessa arquitetura mista aplicada pelos arquitetos paulistas, discípulos de Wright, era comum notar uma busca da harmonia entre elementos ecléticos neocoloniais ou europeus com ideais e elementos estéticos modernistas. Alguns outros exemplares dessa característica arquitetônica da época são a residência do senhor Ismael Brandão (1938), na rua Leôncio de Carvalho, travessa da avenida Paulista; a residência do senhor Sylvio Suplicy (1941), na rua Maestro Elias Lobo, ambas projetadas por projetada por Eduardo Kneese de Mello; a residência do senhor Caio Pinheiro (1942), projetada por Oswaldo Bratke e Carlos Botti, na avenida Rebouças e a residência do senhor Jacob Klabin Lafer (1943), projetada por Gregori Warchavchik, na avenida Europa (Figura 3).

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Figura 3. Frente da casa do senhor Jacob Klabin Lafer, projetada por Gregori Warchavchik, marcada por combinações de elementos neocoloniais e modernistas.

Fonte: Revista “Acrópole”, n. 66. São Paulo: 1943, p. 160.

Os estilos neocolonial e modernista diferiam, mais nitidamente, no uso de materiais construtivos e no partido arquitetônico. A liberdade maior no desenho da planta e no aspecto plástico do edifício, conquistada pelo uso de novas tecnologias construtivas, conseguiu promover diferentes possibilidades de organização entre os ambientes, sem grandes alterações no programa.

Dessa forma, na primeira metade do século XX, a elite paulistana dividia-se em residências neocoloniais, existentes em bairros nobres, como o Pacaembu e os da região dos “Jardins”; nas poucas residências construídas na arquitetura modernista, em novos bairros mais afastados do centro da cidade; e apartamentos dos primeiros prédios residenciais voltados às famílias mais abastadas, no bairro de Higienópolis.

A residência construída nos moldes da arquitetura modernista de Le Corbusier demorou a ser aceita em São Paulo. Foi somente a partir da década de 50 que a burguesia industrial e uma elite intelectual realmente passaram a aceitá-la como modelo de arquitetura residencial2. Esse fenômeno ocorreu, principalmente, após a primeira exposição da arquitetura modernista brasileira no MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova York), em janeiro de 1943, denominada “Brazil Builds”. Esse evento teve total incentivo do governo dos Estados Unidos e procurava ilustrar as diversas manifestações da cultura arquitetônica no país. Porém, ele ocorreu devido a óbvios interesses políticos, durante o período pós-guerra, quando os Estados Unidos, claramente, buscavam promover uma aproximação diplomática com o Brasil3 (CARRILHO, 1998).

A exposição “Brazil Builds” começou em Nova York e circulou por várias cidades norte-americanas, Toronto, Cidade do México, Londres, entre outras, durante quase dois anos. No Brasil, também foi apresentada, inicialmente, na cidade do Rio de Janeiro e, posteriormente, em Belo Horizonte, São Paulo, Santos, Campinas, Jundiaí, Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre. Ela mostrava fotos da chamada arquitetura brasileira “antiga”, que contava um pouco da história da arquitetura no país, e da arquitetura modernista de “vanguarda”, que se produzia naquele momento, exaltando, principalmente, obras modernistas progressistas da produção carioca. Esse evento teve repercussão mundial, com elogios da revista norte-americana “Life Magazine” e do jornal “New York Times”. (CARRILHO, 1998). No Brasil, essa exposição contribuiu para apresentar, à própria população a nova arquitetura, inovadora nas técnicas construtivas e no desenho chamado de “futurista”, baseada nos conceitos de Le Corbusier. Devido ao impacto da exposição e à reação positiva internacional, ela contribuiu, também, para fortalecer e impulsionar a produção desse modelo arquitetônico no país e, em contrapartida, desvalorizar tudo aquilo que não estivesse conforme esse padrão.

Diferentemente da arquitetura modernista orgânica, o desenho cubista da arquitetura de Le Corbusier era inédito e livre de influências do século anterior. Esse estilo chamava a atenção por sua estética “futurista”, como era chamada na época, e foi usado em São Paulo, nas décadas de 30 e 40, por profissionais como Antônio Garcia Moya, Henrique Mindlin, Gregori Warchavchik, Jayme Fonseca Rodrigues, entre outros, em poucos projetos de residências, principalmente para a nova classe burguesa industrial paulistana e jovens intelectuais da época apoiadores do movimento progressista. No entanto, foi somente a partir da década de 50 que esse modelo passou a ser visto, no país, como a “verdadeira arquitetura modernista”, uma vez que não possuía qualquer vínculo com o passado colonial e eclético.

No interior das casas

Independentemente do partido arquitetônico orgânico ou progressista, essa nova arquitetura, em seu interior, não deixava dúvidas: a fluidez, a transparência entre os espaços internos e externos e a continuidade dos ambientes eram características típicas da arquitetura modernista. Outro elemento característico dessa arquitetura era o uso de móveis industrializados, mais leves, mais simples e, ao mesmo tempo, com um design mais arrojado e inovador, permitindo a criação de layouts adequados para situações diferentes em um mesmo ambiente. Tudo isso era o reflexo de um novo tempo e de uma nova maneira de morar, aceita e adotada ainda por poucos representantes da burguesia paulistana.

Em relação ao programa, na casa modernista ocorreram algumas alterações, porém, nenhuma mudança muito radical em relação às casas neocoloniais racionalizadas. Apareceram alguns casos permitindo a passagem da sala de jantar para a cozinha de forma direta, sem a utilização da copa, como espaço de transição da área social à área de serviços. Esse fato pode ser explicado, principalmente, pelo melhor planejamento e organização funcional da cozinha, sendo, assim, necessário somente um único ambiente para o cozimento e a preparação dos alimentos. A partir da década de 30, pode-se ver, em algumas plantas de projetos, esse único espaço sendo chamado de “copa-cozinha”. Surgem, também, projetos com a preocupação de tirar a área social da frente da casa e colocá-la ao fundo, criando uma ligação com o jardim do quintal, muitas vezes, através de um terraço. Os terraços aparecem com uma frequência maior, mais por uma questão estética da arquitetura progressista, do que funcional, com a finalidade de criar contrastes entre “cheios e vazios” no molde do edifício prismático (Figuras 4, 5 e 6). Torna-se mais comum, também, o uso de desníveis, através de alguns poucos degraus, como um elemento separador entre ambientes, sem a necessidade do uso de paredes ou qualquer outro obstáculo visual. A “limpeza” visual das faces do edifício, com traços simples e sem ornamentos, manifestava-se também em seu interior, onde passou a ser comum o uso de móveis mais leves, de madeira compensada e estrutura metálica, e ornamentos em menor quantidade.

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Figura 4. Vista da frente e da lateral da casa do senhor G. Haberkamp, projetada por Henrique Mindlin, apresentando uma volumetria prismática cubista e ambientes com acessos a terraços.

Fonte: Revista “Acrópole”, n. 01. São Paulo: 1938, p. 22.

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Figura 5. Vista da face posterior da casa, mostrando o acesso ao terraço, no piso superior, e ao jardim, através das portas da sala de estar, nos fundos da casa.

Fonte: Revista “Acrópole”, n. 01. São Paulo: 1938, p. 26.

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Figura 6. Perspectiva dos pavimentos térreo e superior (acima).

Fonte: Revista “Acrópole”, n. 01. São Paulo: 1938, p. 22.

A residência do senhor G. Haberkamp, exibida nas três figuras anteriores, projetada por Henrique Mindlin, na rua Dr. João Pinheiro, na região dos “Jardins”, é o assunto do primeiro artigo de um projeto da revista Acrópole, em sua primeira edição de maio de 1938. É interessante notar que, nessa edição, juntamente com o artigo desse projeto de Mindlin, considerado na época como “futurista”, há outros artigos de projetos neocoloniais, além de a capa da revista trazer uma homenagem a Ramos de Azevedo. Assim, percebe-se que o Ecletismo e o Modernismo caminhavam paralelamente, apesar da preferência da elite paulistana ainda ser pelo padrão eclético neocolonial.

Na decoração e no mobiliário da casa, objetos em estilo art decó e em design modernista se misturavam. O piso de madeira, coberto por grandes tapetes, e a lareira na sala de estar (ou living room) também eram características comuns nos projetos modernistas das décadas de 30 e 40.

A casa de Warchavchik da rua Santa Cruz

Na rua Santa Cruz, no bairro Vila Mariana, a casa do arquiteto Warchavchik projetada e executada entre os anos 1927 e 1928, tem grande importância na história da arquitetura paulistana e brasileira, por ser considerada pela grande maioria de críticos, historiadores e arquitetos, a primeira obra modernista do Brasil. Sendo assim, uma análise sobre essa obra não poderia faltar neste artigo.

Esse projeto já foi tema de muitas discussões em jornais, livros e trabalhos acadêmicos, com suas críticas negativas e positivas, mais por questões relacionadas ao partido arquitetônico e pela técnica construtiva, do que pelo programa funcional.

Em plena década de 20, Warchavchik somente conseguiu propor tal arquitetura, porque a casa não era para nenhum de seus clientes da burguesia paulistana, mas, sim, para sua própria moradia. A obra foi construída em um terreno pertencente à família de sua esposa, Mina Klabin, que projetou todo o paisagismo ao redor da casa.

As principais críticas negativas em relação a esse projeto são: a construção ter sido realizada, quase que inteira, com tijolos revestidos de cimento branco, e não em concreto armado; as janelas horizontais, de canto, darem um aspecto formal modernista, porém não justificando o uso dos materiais tradicionais; e a cobertura não ser um terraço-jardim sobre uma laje, mas um telhado de telhas coloniais, escondido por uma platibanda. Assim, dos “5 pontos da nova arquitetura”, estabelecidos por Le Corbusier, Warchavchik utilizou somente um, e de forma parcial: as janelas horizontais. Somente a intenção plástica do edifício parecia ser uma novidade. Isso fez com que Carlos Lemos, em mais um de seus comentários polêmicos, discordasse do título de “a primeira obra modernista no Brasil” e a chamasse, em seu livro “Alvenaria Burguesa”, de “a última casa eclética ao estilo francês”.

Assim, podemos dizer que o marco finalizador do ciclo “cafezista” das residências burguesas foi justamente a casa da rua Santa Cruz, de Gregori Warchavchik – casa só de tijolos, de sobrado feito de assoalho e grossos dormentes de madeira e coberta de telhas tradicionais de barro de capa e canal. Constitui ela o fim de uma era e não o começo de outra (LEMOS, 1989, p. 201).

Em outras de suas críticas, Carlos Lemos (2005) também destaca algumas semelhanças do programa funcional da casa de Warchavchik com os programas utilizados por Ramos de Azevedo, como, por exemplo, a posição da escada, em um ambiente central, que funciona como um vestíbulo “à francesa”, e a importância dada a esse espaço para a circulação, sem corredores; além disso, o uso de portas internas para a circulação entre os dormitórios.

Por outro lado, Yves Bruand (2010) exalta alguns aspectos da obra, principalmente, ao enxergar, no interior da casa, as intenções modernistas do arquiteto, como a busca pela continuidade dos ambientes sociais, apesar das dificuldades técnico-construtivas da época, e a necessidade da relação entre o espaço interno e o externo da casa, como se lê no texto a seguir:

A influência do cubismo, porém, não se limitava à fisionomia externa, composta por prismas elementares; eram visíveis as pesquisas de continuidade espacial, de ligação entre o exterior e o interior. A porta envidraçada, protegida por apenas uma elegante grade de ferro que não impedia a visão e a janela de canto da ala direita, que abria para a varanda, davam uma sensação de acentuada transparência a essa face da casa, enquanto que a organização da planta visava a criação de um espaço contínuo, ao mesmo tempo interno e externo, valendo-se de grandes superfícies envidraçadas e de grandes aberturas, que colocavam os ambientes de estar em comunicação direta com a vasta varanda sem criar uma separação visual; a oposição completa entre as diversas faces agrupadas duas a duas, umas compostas de volumes prismáticos, as outras dominadas pelo caráter particular dado pela varanda em “L”, estava de acordo com uma das maiores preocupações do cubismo: a de não poder apreender-se um objeto a partir de uma única perspectiva, sendo necessário deslocar-se em torno dele para poder compreendê-lo ou representá-lo na sua totalidade (BRUAND, 2010, p. 67).

Warchavchik conseguiu construir uma casa esteticamente diferenciada em São Paulo, burlando as normas dos órgãos municipais da época, que não aceitavam ainda a completa ausência de ornamentos na fachada (Figura 7). Assim, a casa tornou-se atração local, com muita gente indo aos domingos à rua Santa Cruz para ver a “caixa d’água”, apelido que foi dado à casa na época (BRUAND, 2010).

Mas merecia Warchavchik ser tão criticado como foi?4 Afinal, era ele mesmo o proprietário da casa e parecia não ter o direito de realizar uma construção conforme os seus próprios desejos. Em verdade, as críticas a Warchavchik ocorreram por ele ter sido um arquiteto sempre radical na defesa da arquitetura modernista e por ter escrito vários artigos a favor da “nova arquitetura” e, no entanto, em sua própria casa, não aplicou integralmente os conceitos que defendia. Mesmo assim, deve-se valorizar sua coragem e pioneirismo e, apesar da dificuldade da identificação dessa obra dentro de um modelo arquitetônico puro, compreendê-la dentro de um momento de transição natural, observando as dificuldades do arquiteto, as propostas formais e o programa funcional da casa. Outras residências construídas para a elite paulistana, que vieram depois, projetadas por arquitetos considerados defensores da arquitetura modernista, também mostraram elementos do ecletismo até a década de 40.

No desenho da planta (Figura 8), percebe-se, realmente, a intenção do arquiteto de continuidade dos ambientes sociais, assim como da transparência entre os espaços internos e externos, sendo mediada, nos ambientes sociais, por uma grande varanda, chamada de “terraço” por Warchavchik. O mobiliário leve e o uso de espaços abertos (terraços) no prisma também caracterizam o estilo modernista da casa. Por outro lado, o escritório à frente da casa, ao lado esquerdo da entrada principal, lembra o tradicional modelo paulista das residências ecléticas. O piano, peça fundamental nas residências da burguesia do início do século XX, também aparece desenhado, ocupando boa parte do living room.

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Figura 7. Fachada principal da casa da rua Santa Cruz.

Fonte: Jornal Folha de S.Paulo. http://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/23225-gregori-warchavchik - copiada em 20-05-2015.

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Figura 8. Planta do piso térreo, à esquerda, e do piso superior, à direita.

Fonte: LIRA, José. Ruptura e Construção: Gregori Warchavchik, 1917-1927. SciELO - Scientific Electronic Library Online. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, 2007. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002007000200013.

Também é interessante notar a necessidade técnica do arquiteto em projetar os ambientes térreos e superiores com medidas determinadas e limitadas pela sustentação das paredes térreas em alvenaria: são vistos dois dormitórios, exatamente do tamanho do living room, e um outro do tamanho da sala de jantar.

Considerações finais

No início do século XX, a burguesia paulistana passou a morar em regiões da Avenida Paulista, dos “Jardins” e no Pacaembu, continuando a ocupação no vetor de sentido sudoeste, conforme se vê ocorrendo até os dias atuais, com casas e apartamentos no Morumbi e outros bairros, e municípios como Cotia, Taboão da Serra, Embu das Artes, entre outros.

A primeira metade desse século foi marcada pela mescla entre a busca da identidade nacional e a influência estrangeira. Isso ocorreu, à primeira vista, não somente em manifestações da arquitetura brasileira, mas também na arquitetura mexicana, na norte-americana, com modelos em Miami e na região da Califórnia, e em outros países latino-americanos.

Em São Paulo, as casas neocoloniais procuraram manter todo o conforto e a privacidade do morador, apesar da racionalização do espaço. O porte da residência da elite paulistana diminuiu, e os espaços públicos da cidade passaram a ser mais valorizados. A cidade, a sociedade e a casa passavam por profundas transformações.

A tecnologia permitia que o espaço interno da casa se mantivesse de forma organizada, privilegiando o bem-estar e a vida privada dos moradores. O luxo ainda existia, porém sem exageros, pois a vida social deixou de ocorrer dentro de casa. Esta deveria funcionar bem somente para o proprietário e sua família. O piano, sempre presente nos ambientes sociais, foi substituído pelo rádio e pela vitrola. O mobiliário ficou mais “enxuto”, até mesmo para acompanhar as naturais alterações no espaço. Não era mais possível morar em um palacete, devido à carência de terrenos, de empregados, de novas necessidades familiares e outros motivos, que compunham um paradigma mais prático do modo de viver do século XX.

Esses conceitos de racionalização e maior praticidade, encontrados no programa e no desenho dos ambientes da casa neocolonial, juntamente com o desejo de resgatar um modelo plástico na arquitetura como identidade nacional seguiam, cronologicamente, paralelos à difusão das ideias de Le Corbusier e Frank Lloyd Wright, e fortaleciam os ideais modernistas, já presentes na arquitetura de jovens arquitetos, mesmo que ainda de forma tímida. Na cidade de São Paulo, essa timidez se apresentou nitidamente devido aos pensamentos conservadores de grande parte da alta classe social.

Percebe-se, assim, que, tanto na virada do século XVIII para o XIX, quanto na do século XIX para o XX, existiu, na arquitetura e no programa funcional da casa, um tipo de “resposta contrária”: o Ecletismo promoveu uma mudança radical em relação à arquitetura e ao modo de vida da elite paulistana colonial, e o Modernismo, por sua vez, também propôs mudanças com conceitos revolucionários, totalmente contrários àqueles do Ecletismo, e de difícil assimilação pela burguesia tradicional paulistana, que via na “casa” não somente um abrigo, mas também um símbolo fundamental de distinção socioeconômica, repleto de memórias incrustadas em suas vergas curvas e telhas coloniais, que evocavam o auge da economia cafeeira. E é claro que essas mudanças ocorreram inseridas em um conjunto de transformações históricas, que foram muito além do modo de vida do núcleo familiar, da sociedade, da cidade e, muitas vezes, do país. No entanto, o modo de viver da elite paulistana sempre teve características bem particulares, refletidas pela história peculiar e efervescente da cidade, e manifestadas no programa funcional da casa e no modo de utilização de seus espaços.

Referências

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Revista de Arquitetura IMED, Passo Fundo, vol. 8, n. 1, p. 77-94, Janeiro-Junho, 2019 - ISSN 2318-1109

[Recebido: 25 abril 2019; Aceito: 12 junho 2019]

DOI: https://doi.org/10.18256/2318-1109.2019.v8i1.3288

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