17-1559

O tributo como mecanismo de barganha política

Taxing as a tool of political bargaining

Maurin Almeida Falcão(1); Luciana Gualda e Oliveira(2)

1 Universidade Católica de Brasília, professor do programa de mestrado em direito e dos cursos de graduação em direito e relações internacionais. E-mail: [email protected]

2 Professora do curso de graduação em direito. Universidade Católica de Brasília – UCB. E-mail: [email protected]

Resumo

O presente trabalho tem o objetivo de apresentar e analisar o contexto sociopolítico do tributo a partir de uma ênfase voltada para a sua percepção como fato social, jurídico, econômico e político. Em realidade, a argumentação a ser desenvolvida ocorrerá no sentido de harmonizar essas diferentes percepções e demonstrar a importância do ônus fiscal como pedra angular do Estado Democrático de Direito. Não obstante essa perspectiva faz-se necessário apontar a sua utilização como meio de barganha política, ressaltando de passagem, a divisão de classes e a disputa pela riqueza social como variáveis importantes que incidem na definição do perfil do sistema tributário. Nessa direção, o trabalho questiona sobre a accountability do Estado com vistas a preservar os valores do tributo como importante fato social.

Palavras-chave: Tributação. Contexto sociopolítico. Barganhas políticas.

Abstract

This study aims to present and analyze the sociopolitical context of tax from a focused emphasis on their perception as a social, legal, economic and political fact. Thus, the argument will be lead in order to harmonize these different perceptions and demonstrate the importance of the tax burden as a keystone of democratic legal state. Despite this perspective, it is necessary to point out its use as a means of political bargaining, noting in passing the class division and competition for social wealth as important variables that affect the definition of the tax system profile. In this sense, the work questions about the state of accountability in order to preserve the tax values as an important social fact.

Keywords: Taxing. Sociopolitical context. Political bargaining.

1 Introdução

É possível afirmar que os Estados, qualquer que seja a sua vertente política ou diretriz econômica, têm a sua base de sustentação na sociedade que o provê dos meios indispensáveis ao cumprimento de suas finalidades precípuas. De fato, não existe Estado ou comunidade primitiva, desde o passado longínquo, cuja existência seria dissociada de qualquer forma de imposição tributária. Os vencidos eram espoliados pelos vencedores nas disputas por mais territórios ou por outras formas de riqueza social. Desde a concepção do Estado de Direito, e consequentemente do movimento constitucionalista, o confisco tratou de ser legitimado, deixou de ser amoral para fazer parte de uma conduta desejada e perseguida pelos Estados, maquiados por princípios metafísicos indiscutíveis, por trazerem em seu bojo, questões nobres, alçadas há tempos, por todas as culturas, raças e religiões como mecanismo de controle social.

E dentre esses princípios, antes apenas valores morais, tem-se a solidariedade, que vai balizar todos os demais princípios que legitimam o Estado a expropriar a riqueza de terceiros por meio da tributação. E, diante dessa mudança de perspectiva, de esbulho para conduta legitimada, é importante ressaltar o papel político e econômico que por meio de um maniqueísmo formidável, principalmente nos intitulados Estados Democráticos de Direito, colocou, de forma providencial, o Estado nas mãos do povo, forjando a legitimação de todos os atos políticos, econômicos e sociais sob o verniz do princípio do consentimento.

O que se viu a partir daí, foi o esboço de constituições moldadas aos Estados Democráticos de Direito, tendo o povo não apenas como mero coadjuvante, mas como ator principal de todas as mazelas produzidas no cenário econômico e político. Assim, deixou de ser alijado do processo político, para ser representado junto aos poderes Executivo e Legislativo. Dessa forma, estava encerrada a questão que teve início com a Magna Carta do Rei João sem Terra, em 1215, onde o mote era “Não há tributação sem representação”, derivado do já referido princípio do consentimento. E como questionar tal arquitetura de poder? Mais ainda, como não se satisfazer com Constituições que traduzem, pelo menos em tese, os anseios do povo? Limitam o poder dos soberanos, permitem à participação popular por meio de seus representantes, garantem direitos individuais, sociais e coletivos, como ir contra o sistema tão bem engendrado?

Sem dúvida, as conquistas experimentadas ao final do Século XIX e dos séculos XX e XXI demonstram largamente a evolução dos diferentes segmentos sociais. Avanços extraordinários em termos de tecnologia, saúde, transporte, comunicação foram experimentados. Entretanto, o Estado, passados mais de dois séculos das revoluções industrial e francesa, ainda está bem distante de assegurar os direitos e as garantias fundamentais e individuais dispostos em suas constituições. E aqui, imprescindível que haja a compreensão de que os problemas sociais e econômicos atingem todos os Estados, em maior ou menor grau, consequência de economias mundiais cada vez mais interdependentes, inseridas no processo de globalização. Assim, o desequilíbrio econômico de um país, reverbera pelos demais, o que demonstra que enquanto as economias mundiais preocupam-se apenas com seus superávits internos, em uma visão egocêntrica, vivenciam um status de crise permanente, com períodos esparsos de bonança, cada vez mais esporádicos, resultado de manobras político-econômicas que funcionam como uma pequena fagulha de esperança diante de realidade tão adversa.

Por se tratar de tema com forte conteúdo social, sobretudo por aglutinar diferentes perspectivas política, o tributo se revelou sempre como forma de disputa pela riqueza social e de reajustamento de poder entre classe. Nesse diapasão, se mostrou como um importante meio de barganha política nas sociedades modernas. Nesse cenário, o problema que se coloca decorre do fato de que, se de um lado, o tributo se constitui em pedra angular da coesão social, pelo outro, se revela como uma forma de cisão entre classes.

Nesse contexto, é que se segue a análise da tributação como mecanismo de barganha política, e para tal, o percurso proposto é o de se analisar a tributação enquanto fato social, jurídico, econômico e político para, em um segundo momento, descrever os mecanismos fiscais de barganha política, apresentando as conclusões, sem a pretensão, contudo, de se esgotar o tema. Desse modo, a partir de uma abordagem hipotético-dedutiva, o trabalho se lança na conceitualização do tributo enquanto fato social para depois analisá-lo a partir dadas ações deliberadas de grupos sociais com o intuito de instrumentalizá-lo de acordo com as suas estratégias de reajustamento de poder. Em um primeiro momento, o trabalho se voltará para a contextualização sociopolítica do tributo a partir de sua percepção como fato social, jurídico, econômico e politico. Posteriormente, uma segunda parte tratará da análise do fenômeno tributário como mecanismo de barganha política a partir do leque de possibilidades colocadas à disposição das classes sociais mais organizadas tais como as os benefícios fiscais e a mitigação da progressividade.

2 O contexto sociopolítico do tributo

Como produto da vida em sociedade, o tributo se constitui em fenômeno transdisciplinar, perpassando pelas diferentes vertentes da economia, da ciência política, da sociologia, da antropologia e do direito. Nessa perspectiva, a sua abordagem deve considerar essas múltiplas funções sendo inócua, por isso, qualquer análise construída a partir da ótica monodisciplinar.

O tributo nasce da necessidade do homem, quando este transcende do ser individual ao ser social e passa a viver nas comunidades primárias até o desdobramento de uma organização sociopolítica complexa as quais culminaram nos atuais modelos de Estados organizados. Depreende-se, pois, que o tributo em suas diferentes perspectivas se constituiu, desde sempre, no amálgama indispensável à coesão social. De fato, a sua relação estreita com as diversas estruturas sociopolíticas construídas ao longo da história faz com que esse se situasse no epicentro da evolução do Estado, das suas instituições e da própria democracia. Tem-se, então, que a necessidade de organizar e disciplinar condutas, com vistas à evolução das estruturas econômicas, políticas e sociais nos diferentes períodos histórico do percurso da humanidade, viria a se materializar, em parte, no próprio tributo enquanto fato social.

Sem dúvida, perseguir o melhor caminho com vistas ao incremento do bem-estar em todos os seus espectros seria o mote de todo a evolução humana, cujo início remonta ao indivíduo nômade, vivendo em um grupo reduzido, familiar, cujo instinto voltava-se para a busca diuturna de alimentos à proteção contra animais, fenômenos naturais e outros indivíduos, garantindo-lhe a própria sobrevivência. Nesse contexto, a lei do mais forte se impunha e o grupo familiar lhe devia obediência além de usufruir da caça e da proteção. A evolução desse quadro se deu gradativamente, da verificação de que a divisão de tarefas produziria benefícios para todos os envolvidos. De fato, foi essa perspectiva que possibilitou o agrupamento dos homens e o surgimento das primeiras comunidades. Entretanto, certo é que as regras familiares já não eram suficientes para dar cabo às demandas coletivas que passaram a surgir. Nesse contexto, o direito, aos poucos, toma novas formas, na tentativa de impor controles sobre a comunidade, normatizando as relações humanas, os fatos econômicos, regulando a vida. Essas regras se legitimavam pelo divino que encarnava no próprio chefe, inconteste.

E, a partir da divisão do trabalho, as comunidades primitivas deram lugar a sociedades cada vez mais complexas, transformando as relações humanas, a sociedade, as necessidades, a importância de se demarcar territórios e a fixação do homem na terra.

Nessa incipiente estrutura sociopolítica é certo que o tributo esteve presente, sendo então possível afirmar que desde que o homem deixou de ser um ser individual para se tornar um ser coletivo. Assim, a divisão do trabalho, por mais elementar que fosse, possibilitou aos que detinham mais força para caçar e proteger se tornassem chefes e, estes, por sua vez, impunham as regras, dentre elas, que parte da caça ou da colheita seria ofertada como pagamento. E nesse movimento, o tributo esteve presente durante todo o processo histórico, sendo exigido por quem detinha a força, mais tarde pelos proprietários da terra, pela Igreja e pelas classes dominantes até chegar à forma atual, onde a relação política é marcada pelo princípio do consentimento.

Por isso, a importância de se analisar o tributo nas suas mais variadas expressões. Com efeito, não se trata de fenômeno isolado mas decorrente da própria condição do homem enquanto ser social. De fato, a legitimação do poder fiscal foi confirmada pelos cânones do princípio do consentimento. Contudo, antes de ser entronizado no processo democrático, o tributo conheceu diferentes estágios da vida em sociedade. Das suas vertentes antropológicas onde o homem sempre temente e devedor dos deuses ou, conforme asseverou Bouvier, a partir da crença segundo a qual a ordem social teria como fonte o invisível, o tributo se inseriu em diferentes contextos sociopolítico.1 De fato, a análise do aspecto sociológico do tributo enquanto fato social conduz, de forma inexorável, a sua análise enquanto fato jurídico, econômico e político.

a – Sistema tributário e sociedade

O sistema tributário é o reflexo das estruturas econômicas, políticas e sociais de uma determinada sociedade. Por isso, reflete o seu nível de desenvolvimento econômico, as suas ideologias e as suas preocupações com a justiça social. O poder que cada Estado tem de estruturar um sistema tributário, de acordo com a sua autonomia técnica e com as suas tradições jurídicas se constituem em um dos traços mais importantes da sua soberania. O mosaico de sistemas tributários que compõem a ordem tributária internacional é o melhor exemplo da diversidade política, cultural, econômica e social dos povos. As diferentes famílias do direito produziram os mais distintos sistemas tributários os quais se tornaram a expressão latente da organização sociopolítica de um determinado Estado. A história é pródiga em eventos nos quais o tributo teve um papel importante no deslinde dos fatos relacionados ao ambiente sociopolítico. Cabe ressaltar, nesse aspecto, a indagação de Steichen sobre se a história explicaria o tributo ou seria o tributo que explicaria a história?2 De fato, esse paradoxo remete à valiosa contribuição do tributo à evolução sociopolítica que marcou, desde os primórdios, os esforços com vistas à obtenção de uma melhor eficiência da ação coletiva. Na sua vertente antropológica o tributo refletiu o temor e a crença do homem ao invisível ou a obediência a um ser superior, seja no plano material ou espiritual.

Salanié ressaltou que “Pour autant que nous puissions le savoir, les impôts sont apparus en même temps que la civilisation en Mésopotamie et en Egypte, comme l’attestent des tablettes sumériennes datées de 3500 avant notre ère”.3 As formas rudimentares da exação fiscal e a ausência de moeda circulante se traduziam na entrega de parte do que fora produzida ou na prestação de trabalho aos senhores feudais sob a forma de corveia ou de submissão integral às vontades do soberano. Não importando qual seja a modalidade do sacrifício fiscal, o mesmo foi objeto, desde sempre, de uma apaixonante análise sobretudo quando se refere às revoltas fiscais e às guerras que marcaram a história, além da conotação ideológica consistente que ganhou no Século XIX. Nesse momento, não apenas os valores do liberalismo econômico e político decorrentes da necessidade de se implementar o livre-comércio sobre bases aduaneiras mais atraentes, mas também os valores da socialdemocracia que se impunham com vistas à sustentação da grande sociedade solidária. É interessante observar que essas duas perspectivas teriam um traço em comum. Por mais difícil que seja a argumentação sobre essa convergência, por abrigar valores tão divergentes, o resultado obtido permite constar que a introdução da tributação sobre a renda, considerado o mais justo, foi bem visto por ambos os lados. Nas hostes liberais, destinava-se a compensar a perda de receitas tributárias em face do incremento do livre-comércio e a consequente redução dos direitos aduaneiros. No campo socialdemocrata, a tributação sobre a renda seria a melhor forma de implicar todos no financiamento da questão social ou, como reiterado acima, na construção da grande sociedade solidária.

Ao despertar reações as mais diversas, desde a sua rejeição até o seu reconhecimento como meio importante para a coesão social e expressão de cidadania, o tributo se tornou um notável instrumento da vida social. Ao longo da história, foi percebido de formas diferentes, se constituindo em instrumento de dominação, de submissão aos poderes feudais, de sustentação aos poderes regalianos dos absolutistas até se firmar como um importante meio de coesão sociopolítica ao incorporar os princípios do consentimento e da capacidade contributiva, ambos insculpidos na declaração de 1789. Assim, o viés político emanado da Revolução Francesa incorporou esses dois princípios com forte conteúdo democrático e humanista. Por outro lado, o viés técnico que marcou a Revolução Industrial incorporou a noção de solidariedade, fase que marcou o início do intervencionismo estatal e inaugurou o período das finanças públicas modernas por meio das funções de alocação, de redistribuição e de estabilização, na forma consagrada por Musgrave. Assim, recepcionados os princípios que seriam posteriormente positivados em considerável parte das constituições ocidentais, o tributo passaria a ser um importante componente da Economia Política. Os seus desdobramentos nos domínios da Economia Política Aplicada e da Economia Social, emprestou-lhe a abordagem cientifica necessária a sua inserção no universo da produção, circulação, distribuição e consumo da riqueza. A partir da contribuição de Smith, Say, dentre outros preclaros expoentes da então recém-inaugurada ciência econômica, tornou-se uma referência importante para a compreensão da economia positiva por exemplo, tendo se constituído assim, em peça importante para estudar o comportamento dos atores econômicos e sociais. Nos domínios da economia normativa, que se inscreveria no âmago da questão tributária, a redistribuição, vista como um dos meios de se alcançar a justiça fiscal, sob diferentes perspectivas, colocou todos na busca de sistemas tributários ótimos. Em realidade, tornou-se a utopia que passou a conduzir o debate em busca do melhor percurso sociopolítico os sistemas tributários. A difícil conciliação entre os objetivos de equidade e eficiência dos sistemas tributários foi responsável por uma vasta literatura sem que se tenha chegado a uma conclusão definitiva. A profusão de modelos de equilíbrio geral, aonde se tentou buscar esta otimização por meio da primazia de uma ou de outra modalidade da tributação clássica, não encontrou ainda uma resposta que pudesse reunir equidade e eficiência. O fato é que o tributo foi assimilado, nas palavras de Rosanvallon, “como um possível instrumento de reforma social”, o que o levou a ser considerado um marco na história fiscal moderna.4

Assim, como produto da vida em sociedade, o tributo ajuda a compreender melhor um determinado povo e reflete, por isso, as formas de controle social adotadas em face do consciente coletivo. De fato, por meio da análise de um dado sistema tributário é possível vislumbrar os valores da justiça fiscal espelhados nas formas de distribuição do ônus tributário decorrente da vida em sociedade. O surgimento das diversas modalidades de tributação nos tempos modernos se deu, em sua maioria, em função de eventos históricos ligados às ideologias, às guerras, à evolução da proteção social, expondo a permeabilidade do sistema tributário aos acontecimentos do cenário sociopolítico. A estrutura clássica que o compõe – renda, patrimônio e consumo – passou a ser modulada conforme o momento sociopolítico, sendo que a primazia de uma ou de outra modalidade, passou a expor as diretrizes da política fiscal das economias modernas nas diferentes quadras dos dois últimos séculos. Se o conflito entre capital e trabalho na sociedade pós-Revolução Industrial impôs a construção da grande sociedade solidária, calcada no debate sobre a progressividade da tributação sobre a renda. Por outro lado, nesses tempos de globalização, a concorrência fiscal e a necessidade de inserção internacional dos sistemas tributários, os submeteram inexoravelmente aos ditames da maior inovação tributária do Século XX: a tributação moderna sobre o consumo. Com efeito, a mobilidade da riqueza em um mundo de nômades fiscais impôs às economias a necessidade de se identificar alternativas às receitas perdidas em função dos fenômenos referenciados da inserção internacional e da concorrência fiscal desleal.

Deve ser observado ainda que a crise internacional dos anos setenta do Século XX, o fim dos Trinta Gloriosos e o início da crise do Estado-providência foram igualmente responsáveis pela modulação do sistema tributário com vistas a atender a nova configuração da economia do setor público, segundo as orientações provindas dos organismos internacionais. A propósito, convém notar que essa nova paisagem se inscreve dentre os fatos que agravaram a crise sociopolítica dos sistemas tributários não obstante o fato de que a disputa em torno da riqueza social produzida pelo Estado remontaria à sociedade pós-Revolução Industrial. Essa riqueza social, colocada de forma escassa para a sociedade e, por isso, se constitui em um objeto de disputa, passou também a ser produzida pelo Estado a partir do advento do intervencionismo. Note-se que a atuação estatal por meio da redistribuição dessa riqueza configura-se, justamente, como um dos pontos principais de disputa por segmentos mais organizados da sociedade civil. Seja por meio do imposto negativo ou de inúmeras exonerações fiscais, grupos mais organizados obtém um maior acesso à riqueza social do Estado por meio da manipulação da norma legal ou pela via política. Em consequência dessas ações, o sistema tributário se tornou um espaço político de disputa ou melhor, de busca por uma posição privilegiada no momento de repartição da riqueza social produzida pelo Estado.

b - Os fundamentos da teoria funcionalista e do tributo como fato social

A teoria funcionalista, em busca permanente dos fatos que possam estabelecer o equilíbrio social, estruturou os seus valores em torno do papel individual que todos exercem com vistas a tornar efetiva a construção da grande sociedade solidária. Por isso, a necessidade de um controle social destinado a assegurar que a implicação de todos na construção de uma sociedade melhor, se estabeleceria a partir de regras de conduta pautadas na vontade coletiva. Em sua acepção funcionalista, Durkheim definiu os fatos sociais como sendo:5

Toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou, ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência própria, independente das manifestações individuais que possa ter.

A partir desse conceito torna-se possível identificar três elementos intrínsecos ou caraterísticas do fato social. A primeira é a coercitividade, consumada por meio de penalidades impostas aos indivíduos que descumpram regras pré-existentes. A segunda característica, partindo da leitura de Falcão, é a adesão tácita no qual os indivíduos se submetem a um conjunto de regras pré-estabelecidas, desde o nascimento.6 E, a última, diz respeito a natureza coletiva dos fatos sociais, a generalidade, da qual, segundo ainda Falcão “advém o primado da sociedade sobre o indivíduo”,7 base de todas as sociedades atuais e que vai legitimar todo um movimento que vai desde a concepção de Estados, qualquer que seja a sua forma, até a mitigação de princípios metafísicos, valores comuns como a liberdade, a propriedade privada, a dignidade da pessoa humana, a igualdade e a solidariedade.

Portanto, partindo da definição do tributo como fato social desenvolve-se toda a problemática a ser debatida em face da sua submissão ao conceito expendido por Durkheim. Em consequência, é possível afirmar que o tributo nasce com a própria noção de organização do homem em comunidade. Mises demonstra em sua obra “Ação Humana - Um Tratado de Economia”8 que a passagem do homem individual para o ser gregário, deu-se em razão dos benefícios vislumbrados pelo indivíduo em razão da divisão do trabalho, gerando maior produtividade e vantagens para todos.9 Já Giddings reitera que a origens das sociedades estão ligadas a uma consciência da espécie onde os indivíduos entendem que a agregação é necessária à própria subsistência da espécie.10 Por sua vez, Macliver entende o surgimento das sociedades lastreado pelo senso de comunidade ou propriedade comum.11

Em contrapartida, os adeptos das correntes metafísicas e teleológicas explicam o surgimento da agregação do homem como ser social, retirando-lhe a condução de sua própria existência, mas determinando condições externas como reais fatores da agregação social, pautadas na legitimidade do Divino ou de líderes, como forma de se perseguir o desenvolvimento da sociedade.

Em que pese a corrente que se venha a adota, o fato é que, a partir de um determinado momento, o homem deixou de ser apenas indivíduo e passou a ser inserido em um contexto social. Nessa perspectiva, encontra-se a gênese do tributo, ainda longe do conceito existente, mas como fonte necessária de recursos a própria existência das sociedades, das mais remotas até as atuais, primitivas ou complexas, democráticas ou não. O ato de tributar significa repartir entre as tribos, sendo os tributos ofertados aos chefes, líderes, ou mesmo aos deuses ao se invocar a sua proteção. Tal prestação se dava, de acordo com Martins, “in labora, in natura ou in pecúnia” que, rapidamente passariam a deixar de ter cunho voluntário, para passarem a serem exigidas “pela força e arbitrariedade”.12 E assim, seguem durante todo o curso da história ocidental, da qual se tem conhecimento, as civilizações helênica e romana, perpassando pela Idade Média e pelas cruzadas, coincidindo com a assinatura da Carta Magna, momento importante, cerne do princípio da legalidade, onde somente por meio de representação legislativa poder-se-ia cobrar tributos, “além de ser o prenúncio das atuais constituições, traz preceitos importantíssimos de defesa dos direitos dos indivíduos em oposição ao Estado”.13

Durante as monarquias absolutistas, entre os séculos XVII e XVIII, verifica-se o surgimento de “novos movimentos sociais para limitar o poder de tributar, entre eles a Declaração de Direitos, promulgada em 1689, durante o reinado de Guilherme III, na Inglaterra, quando a autorização para instituir tributos passou a ser exigida pela sociedade”14. Mais adiante, temos a Revolução Industrial e a Revolução Francesa, essa última modelou o Estado de Direito ao inserir princípios destinados a resguardar os direitos dos cidadãos. Nesse ínterim, verifica-se a passagem dos Estados Absolutistas aos Estados de Direito, regidos por Constituições que passariam a assegurar os direitos de primeira geração e a limitar o poder dos governantes. E nas Constituições atinentes aos Estados ditos democráticos de Direito, o povo passa a ter papel crucial, pelo menos quanto à legitimação dos atos de seus representantes. Em síntese, o tributo percorre então o caminho de imposição baseada no poder do mais forte, do chefe, dos soberanos, à imposição lastreada e normatizada, encontrando no povo a sua legitimação como mecanismo de se viabilizar uma pretensa “justiça social”.

Conclui-se que, diante da definição de fato social, trazida por Durkheim, e suas características, é correto afirmar que o tributo é um fato social, pois apresenta, em todo a sua dimensão histórica as características necessárias para ser compreendido como tal, quais sejam: a coercibilidade, a adesão tácita e o primado da sociedade sobre o indivíduo ou generalidade.

c - O tributo como fato econômico

Além da autonomia técnico-jurídica que uma determinada sociedade tem para estabelecer um sistema impositivo, as estruturas econômicas de uma dada sociedade têm importância transcendental na formulação do sistema tributário. A dimensão das bases econômicas resultantes do estágio de desenvolvimento informa o grau de complexidade e as possiblidades tributárias colocadas à disposição remetem, em definitivo, à noção do rendimento do sistema tributário. Quanto maior o nível de desenvolvimento de uma sociedade, maiores serão as possibilidades de se identificar novas bases tributáveis em face da existência de renda e patrimônios suficientes para garantir a rentabilidade do sistema tributário. Breve, o desenvolvimento econômico é um componente importante na expansão dos sistemas tributários.15

As funções econômicas do tributo, identificadas por Musgrave como sendo a alocação, redistribuição e a estabilização se constituíram na base das finanças públicas modernas. Deve ser notado que é por meio dessas funções que o Estado pode definir o seu grau de intervenção no mercado. É importante observar que essas funções surgiram por ocasião da passagem do Estado mínimo (Estado policial) para o Estado intervencionista (Estado-providência) sendo, posteriormente, “codificadas” por Musgrave. Por oportuno, cabe ressaltar que as falhas do mercado liberal em incrementar o bem-estar dos indivíduos, fez com que o Estado se tornasse o provedor natural das necessidades sociais. Foram as transformações sociopolíticas ocorridas na sociedade pós-Revolução Industrial que desencadearam a intervenção do Estado. Esse contexto seria responsável ainda pelo surgimento da economia normativa, a qual justificaria o papel do Estado com vistas à eliminação do vazio social. Assim, com supedâneo no tributo, o intervencionismo estatal seria inaugurado e passou, a partir daí, a ser objeto de controvérsia em consequência das suas repercussões sobre os valores da economia de mercado. Por outro lado, foi percebido também como um importante instrumento de solidariedade social a partir do estabelecimento de uma escala social vista a partir de um plano vertical.

Não obstante essas diferentes percepções, infere-se que o tributo deixou de ser uma singela forma de financiamento da ação coletiva para se tornar um valioso instrumento de intervenção econômica. A teoria econômica contemporânea foi enriquecida com a notável contribuição de Keynes à consolidação do intervencionismo estatal. Por conseguinte, o tributo se incorporaria aos mecanismos da política econômica em face do seu importante papel de estabilizador macroeconômico. Além da doutrina keynesianista, o New Deal norte-americano implementado a partir de 1933 reforçaria o papel do tributo além do simples provedor dos cofres públicos. Vê-se então que o cenário fiscal que se vislumbrava a partir do entre-guerras seria marcado pela primazia das funções intervencionistas do Estado e que teriam o tributo como a pedra angular da expansão estatal. Assim, consolidava-se a noção do Estado fiscal voltado para a liberdade e o individualismo.

A aplicação de modelos econômicos levaria, por exemplo, à modelagem da espiral preços-salários onde a manipulação da carga tributária teria uma incidência direta nos níveis de emprego, no poder aquisitivo, no custo da produção, dentre outros, provocando, assim, efeitos macroeconômicos desejados pelos condutores da política fiscal e monetária. Nesse entendimento, o tributo passaria a ser um instrumento notável de intervenção econômica, permitindo aos Estado modular os diversos segmentos sociopolíticos por meio das políticas econômicas, fiscais ou monetárias. A sensibilidade e a elasticidade do tributo permitiram a convergência dos parâmetros econômicos aos objetivos políticos de condução do Estado. Assim é que, apesar de uma certa anestesia fiscal por parte do cidadão-contribuinte, o tributo passou a permear o cotidiano dos indivíduos sem que esses se dessem contam dos seus efeitos no cotidiano e no consciente coletivo.

Na vertente microeconômica, a análise se volta para a repartição equânime do ônus tributário e à mitigação dos efeitos sobre os contribuintes. De fato, a observação dos princípios da equidade e da eficiência pelo Estado, no uso do seu poder tributante, tornou-se um ponto de fricção nas suas relações com o contribuinte. Nem sempre a busca pelo equilíbrio deste binômio se constituiu em tarefa cômoda, o que levou a um distanciamento entre o fisco e o contribuinte. De muito, a consideração acerca da situação pessoal do contribuinte deixou de ser considerada em um número importante de sistemas tributários. A metamorfose ocorrida nos últimos quarenta anos nesses sistemas, principalmente a partir da crise econômica internacional da década de 1970, feriu gravemente os cânones da justiça fiscal. A mobilidade da riqueza, dos fluxos de investimentos e do livre-comércio, forçou os Estados a atenuarem determinadas modalidades tributárias em proveito de outras. Por conseguinte, o fisco passou a ter uma maior eficiência (arrecadatória) em prejuízo da equidade. O fato é que a carga tributária passou a incidir sobre segmentos sociais que não teriam como evitá-la. Com efeito, em um mundo globalizado determinadas categorias de contribuintes passaram a contar com meios de planejamento tributário e um acesso às zonas de baixa tributação. Esse movimento levaria à geração de externalidades negativas no âmbito dos sistemas tributários, forçando as autoridades a buscar novas bases tributárias, sempre mais cômodas, como é o exemplo típico da tributação indireta.

d - O tributo como fato jurídico

O fato jurídico, em sentido amplo, representa todo o acontecimento natural ou humano capaz de criar, modificar, conservar ou extinguir direitos, bem como de instituir obrigações, em torno de determinado objeto. Tendo, por conseguinte três características básicas: decorrem de uma ação humana ou da natureza; produzem consequências de direito, instituídas pelas normas jurídicas e trata-se de acontecimento externo, decorrendo de uma situação fática ou real.16

Encontra-se, ainda, a distinção de fato jurídico em sentido estrito, quando a realização do fato independe de qualquer ação humana ou se houve participação, este atua secundariamente, definição que se afasta do estudo proposto, uma vez que o tributo decorrente de ação volitiva do homem, tendo este papel fundamental na implementação do tributo. E por fim a definição de ato jurídico, que decorrem da vontade do homem sem a intervenção da natureza, sendo que essa vontade deve ser declarada.17

Nessa senda, como o tributo decorre de uma manifestação volitiva do homem, e só assim pode ser concebida diante do Estado de Direito, a definição mais acertada é de que o tributo é ato jurídico, contudo tal constatação não exclui o tributo ser fato jurídico em sentido amplo, no sentido do fato jurídico em sentido amplo englobar o ato jurídico.

Nesse contexto, cabe salientar que o fato jurídico também é fato social, por apresentar todas as características necessárias já abordadas. A primeira, a coercitividade, consumada por meio de penalidades impostas aos indivíduos que descumpram regras pré-existentes. Essas regras, quer estejam previstas na Constituição ou em legislação infraconstitucional, existem no ordenamento jurídico e o resultado pelo descumprimento dessas obrigações tributárias, ditadas pelas normas, quer sejam principais ou acessórias, implicam na imposição de sanções, também pré-estabelecidas. A segunda característica, a adesão tácita no qual os indivíduos se submetem a um conjunto de regras pré-estabelecidas, desde que nascem, também é verificada com relação ao tributo, uma vez que todo o sistema tributário contemplado no arcabouço legislativo dos Estados, são aceitos pela coletividade de forma tácita E, a última, diz respeito a natureza coletiva dos fatos sociais, a generalidade, da qual, segundo Falcão “advém o primado da sociedade sobre o indivíduo.18

Conforme Stefenoni, o fato social sofre um processo de adjetivação (juridicização) para que se torne um fato jurídico, forma pela qual o Direito acompanha as mudanças sociais. 19 Correto afirmar, ainda, que o tributo enquanto fato social, ao sofrer a juridicização, torna-se fato jurídico em sentido amplo ou ato jurídico em sentido estrito, e como tal, passa a fazer parte do conjunto de regras impostas à sociedade como aceitas e legítimas por todo o corpo social. Entretanto, o cerne da questão está menos em se provar o tributo enquanto fato jurídico do que na indagação de que forma o tributo se torna legítimo e aceito.

Diante dessa abordagem, forçoso ressaltar que as normas ou regras de conduta durante milênios foram legitimadas pelo poder divino e, por tais razões, são impossíveis de serem contestadas. Apenas a partir do Iluminismo, nos séculos XVII e XVIII, é que a razão se sobrepõe à religião, e surgem as teorias tendentes a legitimar o direito. Kelsen, em sua obra Teoria Pura do Direito, aduz que sob uma perspectiva positivista encontra-se a norma fundamental, o pressuposto de validade das normas, bem como as demais encontram sua legitimação determinada pelas normas hierarquicamente superiores:20

O princípio de que a norma de uma ordem jurídica é válida até a sua validade terminar por um modo determinado através desta mesma ordem jurídica, ou até ser substituída pela validade de uma outra norma desta ordem jurídica, é o princípio da legitimidade.

Nesse contexto, a legitimação da norma independe de qualquer fator externo a ela, que se autovalida e se legitima, de acordo com o sistema hierárquico das normas e da norma fundamental. Essa extromissão de aspectos exteriores e do próprio conteúdo da norma para a legitimação desta foi fundamental para dissociar a concepção milenar de que o direito advinha do divino e, consequentemente, encontrava o pressuposto de validade e legitimidade na metafísica. Entretanto, apesar de revolucionária, a teoria de Kelsen foi alvo de severas críticas quando utilizada pelo regime nazista “com o propósito de demonstrar que as normas discriminatórias a que deram efetividade haviam sido validamente postas no ordenamento jurídico alemão, e que, caso não as houvessem cumprido, aí sim é que haveria ilicitude capaz de condená-los”.21

Em contraposição ao pensamento kelseniano, Habermas, entende o Direito como uma solução para a estabilização e a integração social22. O direito, por ser norma posta, seria o elemento integrador permitindo a estabilização da sociedade diante dos dissensos gerados pela própria complexidade dos atores sociais:

Em sua função integradora, o direito regulamenta ainda os excessos da economia e do poder, instrumentalizando-se para ordenar o que os mecanismos de integração sistêmica já não conseguem mais controlar: a motivação e a disposição interna dos atores em contextos políticos, sociais e cotidianos23

2 Os mecanismos fiscais de barganha política

Embora a questão passe despercebida pela quase totalidade do universo de contribuintes, o tributo sempre se constituiu em um importante instrumento de barganha política. O sistema tributário foi, desde sempre, uma arena de disputas políticas por um melhor posicionamento das classes sociais com vistas à obtenção da riqueza social. A riqueza social colocada à disposição de todos, de forma escassa, gerou uma disputa pela sua posse e foi definida por Walras como “l’ensemble des choses matérielles ou immatérielles qui sont rares, c’est-à-dire, d’une part, nous sont utiles, et qui, d’autre part, n’existent à notre disposition qu’un quantité limitée”.24 Por sua vez, o Estado fiscal, investido da sua condição de regulador da vida em sociedade, pôde, por meio do tributo, acumular parte da riqueza gerada pela sociedade. Nessa perspectiva, passou a ser objeto de cobiça de segmentos sociais organizados que, por meio da manipulação do processo legislativo, puderam se apossar de parte significativa da riqueza social. Não apenas por meio de benefícios fiscais mas também pela instauração de regimes favoráveis quanto à tributação sobre a renda, notadamente por meio do manejo do grau de progressividade, diversas classes sociais foram poupadas do ônus fiscal. Deve ser incorporada ainda a este cenário, a presença ostensiva de grupos de dominação que, segundo Meynaud, tornam as decisões dos poderes públicos de acordo com os interesses ou ideias de uma determinada categoria social.25 Em última instância, influenciam a produção da norma jurídica e anulam a democracia. Entretanto, Scheve e Stasavage expõem uma posição contrária, que se revela talvez mais uma utopia do que a abordagem realista de Meynaud ao pregarem que “A basic principle of democratic societies is that people ought to be treated as equals by their government. Political equality is seen as being what is fair or just. As part of this general norm, citizens should be treated as equals with respect to taxation.”26

Sem dúvida, essas clivagens de ordem doutrinária e ideológica permearam, desde sempre, o debate em torno do fato político denominado tributo. Em antológica obra sobre essa questão, Eisenstein afirmou que a tributação reflete a ideologia dos grupos de interesse.27 A partir dessa constatação, abriu-se uma notável perspectiva de análise sobre o alcance sociopolítico do fenômeno tributário, para muito além da sua abordagem dogmática clássica.

O leque de benefícios fiscais passou a fazer parte da paisagem fiscal contemporânea. Por meio de uma espécie de “chantagem política”, grupos saídos das minorias organizadas passaram a influenciar a formulação de políticas tributárias garantidoras de status quo e de reajustamento de poder. A importância estratégica de grandes grupos econômicos, derivada do fato de que empregam grande quantidade de mão-de-obra ou produzem boa parte do produto interno bruto faz com que esses detenham um poder econômico que deve ser considerado pelo poder político. Não apenas o delineamento de uma política de atração de investimentos mas também as perspectivas ligadas à mobilidade dos fluxos de capitais concedem a determinados grupos um notável poder de barganha. Outra variável a ser considerada nesse processo de barganha política está relacionada ao financiamento de campanhas eleitorais. A partir desse pressuposto, os referidos grupos passam a financiar bancadas políticas dispersas e não posicionadas sob a mesma ideologia partidária. Tal estratégia conduzia ao controle, por exemplo, das políticas públicas onde a vontade expressa de determinadas minorias se sobreporiam à grande massa de eleitores, causando, em consequência, uma distorção do princípio do consentimento.

Esses mecanismos criam meios de acesso privilegiados à riqueza social e se constituem, além disso, em uma espécie de disputa entre classes conforme preconizava Marx e os adeptos da teoria das elites (Pareto e Mosca).

Todavia, é preciso observar que o próprio mecanismo tributário permite a repercussão da carga sobre outros segmentos colocados em desvantagem na relação de consumo, de emprego ou detenção da propriedade. As bases tributáveis – renda, patrimônio e consumo – permitem uma modulação dos seus efeitos fazendo com que responderão pela carga tributária aqueles que não tem como evitá-la. O universo jurídico-tributário contemporâneo passou a conhecer, após o processo de construção da nova ordem internacional, meios favoráveis de deslocamento da riqueza em decorrência da globalização e, ainda, a expansão das possiblidades de planejamento tributário e dos paraísos fiscais. Passou-se a conviver com contribuintes globalizados e não-globalizados, impondo-se uma espécie de chantagem e de concorrência fiscal desleal entre sistemas tributários. Dito isso, um processo latente de inversão do ônus tributário passou a se constituir em um traço subjacente do cenário sociopolítico. Nesse aspecto, a carga tributária passou a recair de forma mais intensa sobre as parcelas da população sem qualquer possibilidade de acesso aos mecanismos legais de evitamento ao tributo. A própria lógica da economia política, voltada à produção, distribuição e consumo da riqueza social, onde a incidência da variável tributária é significativa, confirmaria essa inversão dos fluxos da riqueza social.

Assim é que as externalidades negativas geradas pelo segmento de contribuintes globalizados e com expressivo poder de barganha, levaram ao esboço de diferentes tipologias dos sistemas tributários. O deslocamento do foco tributário para bases mais “cômodas” se constitui no traço marcante ocorrido nas formas de financiamento do Estado a partir da crise internacional que grassou as economias na década de 1970. Em face da necessidade de reestruturação do Estado e das suas instituições, inclusive do modelo do Estado-providência e do intervencionismo, a progressividade tributária passou a ser vista como inviável por atingir a formação da riqueza (renda e patrimônio). Por isso, seria preciso tributar de forma mais agressiva a destruição da riqueza (consumo). Essa perspectiva passou a alimentar o discurso neoliberal e anulou os esforços empreendidos até então, no sentido de tributar mais a renda e o patrimônio na busca de uma maior justiça fiscal. Depreende-se, portanto, que a maior ou menor intensidade do modelo progressivo passaria a depender das negociações políticas aonde a forte participação dos segmentos sociopolíticos organizados estariam em melhores posições.

Nesse diapasão, a progressividade, apesar do seu forte conteúdo de justiça fiscal, passou a ser contestada e vista como uma das responsáveis pelas mazelas econômicas. Os diferentes tratamentos jurídico-tributários concedidos a determinadas categorias de renda ou de patrimônio, em detrimento de uma massa de consumidores pertencentes às classes baixa ou intermediárias foram responsáveis por um sem número de privilégios fiscais. Contudo, imersa em uma espécie de anestesia fiscal, boa parte da sociedade não se deu conta dos avanços e vantagens tributárias obtidas pela minoria organizada. Deve ser notado que esse desequilíbrio na repartição da carga tributária decorreu, em sua quase integralidade, do questionamento da progressividade e das inúmeras possibilidades de mobilidade da riqueza e do planejamento tributário. Tendo obtido o status político que lhe foi conferido, o questionamento da progressividade se constituiu em bandeira política de partidos, do patronato e dos detentores dos meios de produção e da propriedade. De fato, a contestação das velhas estruturas da sociedade solidária, concebidas no século das luzes, se traduziu na forte degradação social que abalizou os diversos sistemas sociopolíticos. A geração de mais desigualdades, principalmente no campo da remuneração do trabalho, o forte contingente de desempregados e a relativa quebra da autonomia política dos sindicatos confirmaram as teorias que floresceram no campo liberal a partir de 1944, com a publicação da notável obra de Hayek sobre os perigos e as falsas promessas do socialismo.28

Desse modo, a demanda por regimes fiscais privilegiados, materializadas na concessão de exonerações fiscais ao setor produtivo e a adoção de reformas tributárias que pudessem modificar a decisão de investidores, dentre outros, se revelou uma forte moeda política com vistas às barganhas que pudessem atender aos diferentes interesses dos grupos de pressão. Por conseguinte, os cânones da justiça fiscal seriam revistos de forma a refletir a nova configuração do tributo em uma sociedade em transformação. Como reiterado, a necessidade de inserção internacional dos países em um mundo de forte interdependência, a concorrência fiscal desleal e a conformação das economias aos usos e costumes internacionais, reduziram a margem de manobra com vistas à observação dos preceitos da justiça fiscal. Sem dúvida, pode-se afirmar que os governos abandonaram o seu dever de preservar a accountability com vistas a uma sociedade bem organizada em proveito das injunções do sistema internacional. No que se refere às demandas dos grupos internos, é importante observar o seu poder o qual é traduzido na pressão exercida sobre o governo com vistas à modificação do sistema jurídico-tributário ou na assinatura de acordos internacionais voltados para o livre-comércio, para a competitividade e à conformação às diretrizes emanadas dos organismos internacionais de regulação econômica.

Inserida em um contexto de forte conteúdo político, os projetos de reforma tributária esboçados por diversas economias não obtiveram, por isso, o consenso necessário a sua aprovação. Por abarcar não apenas os segmentos políticos subnacionais e o interesse dos grupos de pressão, esses projetos não conseguem avançar de forma suficiente devido ao temor ou risco de perda de autonomia ou de aumento dos custos de produção. Verifica-se, pois, que forças antagônicas tem interesse diferentes nos esforços tendentes a implementar a reforma dos sistemas tributários. Depreende-se, portanto, que o universo de contribuintes é locado à margem das discussões com vistas a um sistema que possa aliar equidade e eficiência. Entretanto, é preciso consignar que a baixa identidade política e o desconhecimento do tributo como variável importante do quotidiano fiscal leva a todos a uma espécie de anestesia que os leva a ignorar o fato de que a reforma tributária diz respeito a todos.

Por esta razão, determinados agentes obtém vantagens na modulação do ônus tributário ao se fazerem ativos na condução política dos projetos de reforma. Infere-se, portanto, que o processo de barganha é facilitado em razão do distanciamento de todos por entenderem que o processo em curso não lhe diz respeito. Hodiernamente, a mitigação da noção de justiça fiscal levou a um quadro de desigualdade de todos diante do Estado, é porque diversos segmentos se aproveitaram desse torpor fiscal e, assim, puderam legitimar e consolidar os seus interesses, dentre eles, os meios de repercussão do ônus tributário. Além do benefício econômico, tal empreendimento veio acompanhado da afirmação do poder político pois a maior proximidade da riqueza social criada pelo Estado, leva a uma espécie de reajustamento ou de consolidação do poder sociopolítico. Trata-se de uma situação perversa, marcada pela injustiça fiscal, a qual promoveria uma espécie de redistribuição social inversa, dos pobres para os ricos.29 Seria então uma negação dos valores democráticos que serviram de divisor de águas da tributação moderna?

Com base nessa argumentação, é possível de compreender a exata dimensão da estratégia patrimonialista desenvolvida no âmbito de certas classes, privilegiadas que são pela arquitetura sociopolítica. Por isso, Walras, na esteira de suas lições sobre a repartição da riqueza social observou com perspicácia que “Les plus hardis, les plus vigoureux, les plus habiles, les plus heureux ont eu la meilleure part, et les autres ont eu le reste, c’est-à-dire ou fort peu de chose”.30

3 Conclusão

Embora o alcance sociopolítico do tributo tenha sido evidenciado por diversas vezes nesse trabalho, verifica-se que as sociedades contemporâneas vêm experimentando um certo imobilismo diante do tributo, da carga tributária e de todos os seus desdobramentos. O ônus tributário importa em redução de bem-estar devido à diminuição do poder aquisitivo dos indivíduos. Nada acontece no mundo material que não envolva um fato gerador de tributos. Por isso, ele está estreitamente ligado ao quotidiano de todos. Não obstante as campanhas por parte da sociedade civil, surgidas nos últimos anos Brasil que, invocando os exageros da carga tributária, realizam exercício de imaginação, como por exemplo, os números de dias trabalhados por ano para pagar tributos, o custo tributário de presentes oferecidos em datas comemorativas, dentre outros, pode-se afirmar que o tema tem passado ao largo das preocupações de uma expressiva parcela da população. Poucos tem a noção de que vivem em uma sociedade solidária e, por isso, contribuem compulsoriamente para o seu financiamento.

Em realidade, esse distanciamento da noção cívica de se pagar tributos se deve, na sua grande parte, à forma como o Estado tem conduzido a relação entre o fisco e o contribuinte, no sentido de torná-la cada vez mais distante e desigual. Não cabe falar sobre a complexidade da legislação ou das modalidades tributárias uma vez que as mesmas estão intimamente ligadas aos estágios de desenvolvimento econômico e social. Quanto maior o grau de desenvolvimento, maior a complexidade do sistema tributário. Aqueles que tecem loas aos sistemas tributários dos países desenvolvidos, afirmando que estes seriam simples e sem burocracias, desconhecem a realidade dos fatos. Todavia, os sistemas tributários desses países estão ancorados em tradições jurídicas voltadas para o respeito ao cidadão-contribuinte além do forte aparato tecnológico do qual dispõem. Esse binômio garante a aplicação da carga tributária de forma equânime, dividindo o ônus de forma justa.

Breve, mesmo levando em consideração as contradições em torno do ônus da vida em sociedade, nenhum Estado Democrático de Direito poderá prescindir do tributo, mesmo em face das distorções impostas por parte do tecido social.

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Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, vol. 13, n. 3, p. 342-363, Set.-Dez., 2017 - ISSN 2238-0604

[Received/Recebido: Set. 14, 2016; Accepted/Aceito: Fev. 01, 2017]

DOI: https://doi.org/10.18256/2238-0604.2017.v13i3.1559

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