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Uma visão crítica do soberano: sobre a herança moderna, a lógica atual de soberania e o exercício democrático

A critique sight of sovereignty: about modern heritage exercise, sovereignty logic nowadays and democratic exercise

Daniel Carneiro Leão Romaguera(1); João Paulo Allain Teixeira(2); Fernando Hoffmam(3)

1 Mestre em Jurisdição e Direitos Humanos pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP/PE), tendo feito Mestrado-Sanduíche na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS/RS), sob a orientação do Prof. João Paulo Fernandes de Souza Allain Teixeira e da Profª. Fernanda Frizzo Bragato. Membro dos Grupos de Pesquisa “Jurisdição Constitucional, Democracia e Constitucionalização de Direitos” e “Pós-colonialidade e Integração Latino-Americana”, vinculados, respectivamente, a Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e a UNILA. Professor da Faculdade Damas Instituição Cristã (FADIC) e da (FACHUSC).
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2 Professor Adjunto do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco (CCJ/UFPE), Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE), Professor da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), Professor do Mestrado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNICAP. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
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3 Mestre e Doutorando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS); Bolsista PROEX/CAPES; Membro do Grupo de Pesquisa Estado e Constituição e da Rede Interinstitucional de Pesquisa Estado e Constituição, vinculado à UNISINOS e ao CNPQ; Professor Titular do Curso de Direito da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI/ Câmpus Santiago); Membro do Grupo de Pesquisa Direito, Justiça e Cidadania, vinculado à URI e ao CNPQ; Especialista em Direito: Temas Emergentes em Novas Tecnologias da Informação e Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA).
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Resumo

Este ensaio consiste em análise da soberania na atualidade, tendo em vista a herança decorrente das teorias modernas e a intensificação do exercício de poder soberano no cenário político recente. Para tanto, foram consideradas relações de poder que submergem a concepção prevalente de soberania no constitucionalismo democrático e no sistema-mundo da ordem global, pois, segundo a hipótese proposta ainda resta presente o projeto da modernidade e a expansão ocidental atrelada ao exercício de soberania. Assim, foi realizada investigação acerca da herança respectiva ao conceito de soberania, ao relacionar a formação da ordem internacional e o constitucionalismo democrático com a dominação do terceiro mundo pelo continente europeu e dimensão política na atualidade. A matriz teórica insurge da desconstrução pensada por Jacques Derrida seguido da reflexão crítica de Costa Douzinas. Nesse sentido, se fez necessário pensar além dos limites institucionais de proliferação soberana dos estados-nação e da lei internacional, na busca de alternativa capaz de ultrapassar os limites da unidade moderna, bem como inibir a proliferação da sociedade internacional sob o prenúncio universalista. Em sentido contrário, portanto, foi observada o exercício de resistência oposto ao processo legitimado pela violência do direito, o que implica na contínua (re)definição do espaço democrático. Portanto, vislumbrou-se a possibilidade de deslocamento do soberano através da mobilização democrática.

Palavras-chave: Soberano. Democracia. Modernidade. Desconstrução.

Abstract

This essay consists on the analysis of sovereignty nowadays, given the legacy from modern theories and intensification of exercised sovereignty in recent political scene. Is taken in consideration power relations which drown the prevalent conception of sovereignty in democratic constitutionalism as in the world system global order. According to the hypothesis proposed remains present the project of modernity and western expansion linked with the exercise of sovereignty. Research was carried out about the heritage of the concept sovereignty, related with the formation of international order and democratic constitutionalism as considered according to domination of the Third World by Europe and political dimension today. The theoretical bias comes from deconstruction thought by Jacques Derrida followed by critical reflection professed by Costa Douzinas. So it was necessary to think beyond the institutional boundaries of sovereign proliferation of nation-states and international law in the pursuit of alternative able to push the boundaries of modern drive and inhibit the proliferation of international society under the universal harbinger. On the other hand, however, it observed the exercise of resistance opposite to legitimized violence of law, which implies the continuous (re) definition of democratic space. So it is investigated the possibility of displacement of sovereign through democratic mobilization.

Keywords: Sovereign. Democracy. Modernity. Deconstruction.

1 Introdução

O texto articula a possibilidade de deslocamento da soberania e suas estruturas através do exercício democrático, tendo em vista a lógica de soberania presente na contemporaneidade.

Inicialmente, se fez necessária à análise da herança respectiva ao conceito de soberania, relacionada com a formação da ordem internacional e o constitucionalismo democrático dos estados-nação ante a dominação do terceiro mundo pelo continente europeu.

Pois, assim, se faz viável compreender a lógica estruturante do capitalismo neoliberal, constitucionalismo democrático e lei internacional, ao passo que ainda se reproduz a promessa da modernidade. Que, em momento algum foi deixada de lado com a crise anunciada no Séc. XX, pelo contrário, foram intensificados seus mecanismos de atuação.

Nesse sentido, foi feita alusão à obra de Jacques Derrida conforme reflete sobre o mal estar da soberania e a concepção de democracia porvir. No presente trabalho, então, foi relacionado à possibilidade do exercício democrático em face da abertura que Derrida identificou no regime democrático, pois a democracia não pode ser outra coisa senão contínuo movimento diante de sua imperfeição e promessa.

A análise feita, ainda, consistiu em leitura crítica acerca da dinâmica da ordem internacional conforme Costas Douzinas identificada paradoxos no cenário político atual dos Direitos Humanos. Além disso, foi investigado o viés dos estudos sobre a democracia radical quanto a possibilidade de uma nova forma de atuação política.

Sob tal viés, no intuito de romper com o âmbito institucionalizado prevalente do soberano e, também, em oposição à violência manifestada no monopólio da lei, vislumbrou-se a possibilidade do exercício democrático, uma vez considerados os efeitos da herança incorporada e a importância de se opor aos modelos políticos de um corpo unificado.

Portanto, o presente artigo trata de análise crítica da concepção de soberania relacionada ao trajeto recente de formação da ordem internacional e a lógica dominante do exercício de poder político na atualidade.

2 Desconstrução e poder soberano: uma herança (i)maculada

Inicia-se por investigar da herança prevalente das teorias de soberania1, em especial, para que se possa compreender como a concepção do soberano na atualidade ainda se mostra capaz de formar o político e garantir a lei. Tal leitura segue o movimento de desconstrução presente na obra de Jacques Derrida2.

Não é difícil notar que a soberania nas últimas décadas, desde o fim da guerra fria, com a queda do muro de Berlim ao menos, tem sido ameaçada como conceito que revela supremacia ante o aparente enfraquecimento da força interna dos estados na ordem global 3.

Segundo Costa Douzinas4 muitas vezes se desconsiderou a relação entre a ordem internacional westfaliana e o âmbito interno dos estados para com a contemporaneidade:

Este ataque concertado está ligado ao fim da guerra fria, o anúncio bastante prematuro do “fim da história” e a “virada moral” na política internacional e doméstico. A globalização, o capitalismo e o cosmopolitismo neo-liberal minaram a ordem de Vestefália internacionalmente e as cúpulas do poder internamente (DOUZINAS, 2010, p. 01, tradução nossa).

Nesse sentido, o cenário é de que se expandiu o espaço de atuação das grandes potências, Joanna Bourke traz indicativo dessa transição para a dimensão legitimadora da ordem internacional (BOURKE, 2005): […] a sujeição da soberania a regras morais e legais e sua substituição por instituições internacionais e leis cosmopolitas abriram caminho para temores sombrios e ações ainda mais sombrias (DOUZINAS, 2007, p. 14).

É preciso observar aspectos e feições desconsiderados da soberania, que não pode ser entendida como uma unidade inquestionável, na qual as teorias pensam tratar de um mesmo fenômeno quando as diferenças são manifestas. Nesse sentido, Panu Minkkiken reconhece ao menos três formas de análise da soberania: Autocephalus, Heterocephalus e Acephalus (MINKKINEN, 2009).

Sintetiza Douzinas acerca das feições referidas por Minniken, bem como aponta a importância da contestação do conceito de soberania: “[…] autocephalus (auto-decisão, a soberania constitucional de direito), heterocephalous (muitas soberanias decorrentes de tecnologias capilares de poder) e acéfala (a soberania do sujeito do conhecimento e domínio) […] Apesar da logorrhoea teórica, a soberania permanece um conceito (impugnado) em busca de uma teoria” (DOUZINAS, 2010, p. 02, tradução nossa).

Em nossa interpelação, interessa o contágio da feição política do constitucionalismo, o Autocephalus, visto que a: […] mais óbvia apresentação e expressão empírica da soberania como um princípio político aparece no direito constitucional(DOUZINAS, 2010, p. 02, tradução nossa). Atualmente, o Direito constitucional é posto em questão, por modificações na percepção acerca da soberania e na sua materialização enquanto “princípio fundamental” do Estado e da ordem de Estados inaugurada em Vestefália.

A leitura do desgaste da soberania como elemento estrutural do estado carece ir além da tradição prevalente que fundou a concepção de soberania ligada à formação do estado moderno, pois, é de se considerar as implicações no cenário político do constitucionalismo democrático e da ordem global capitalista. O argumento apresentado é de que a soberania não perde espaço nas instituições.

Inclusive, no próprio âmbito estatal, manifesta-se Boaventura Sousa Santos em tempos de crise: “[…] paradoxalmente, a actuação do Estado-Providência é mais solicitada em períodos (de elevado desemprego, por exemplo) em que a disponibilidade de recursos é menor (receitas fiscais mais baixas)” (SOUSA SANTOS, 2000, p. 157). E paradoxalmente, o Estado, embora, apresente-se atuante em situações de crise – vide a crise de 2009 e a atuação do Estado Americano no socorro ao sistema financeiro – esta atuação, se dá esvaziada de soberania, não no sentido moderno, mas, sim, no sentido de que essa atuação é dirigida por atores estranhos ao Estado e aos anseios do constitucionalismo – enquanto espaço de garantia de direitos (BOLZAN DE MORAIS, 2011).

A violação dos limites do poder estatal, então, não inviabiliza a análise feita da soberania, tanto é que, segundo Derrida, os Estados Unidos são o maior Rogue State5 afinal exerce a razão do mais forte em oposição ao discurso prevalente, quando não contempla seus interesses (DERRIDA, 2005, p. 33).

Gene Sharp contribui para a leitura feita:

[...] as instituições sociais, políticas, econômicas, religiosas e até mesmo da sociedade - fora do controle do estado - foram deliberadamente enfraquecidas, subordinadas, ou mesmo substituídas por novas instituições arregimentadas utilizadas pelo Estado ou pelo partido governante para controlar a sociedade (SHARP, 2010, p. 08).

Assim, destaca-se o “[…] recurso ao uso legal e legítimo da força (necessidade a priori da coacção), ou seja, alguma soberania, ainda que não estatal” (DERRIDA, 2005, p. 178). Por exemplo, o combate ao terrorismo no pós 11 de setembro de 2001 (BORRADORI, 2004). É de se considerar que na ordem global: “Conflitos militares e confusões financeiras recentes têm mostrado que as relações de força e as lutas políticas, de classe e nacionais adquiriram uma importância ainda mais abrangente em nosso mundo globalizado” (DOUZINAS, 2007, p. 25).

O que revelou serem a: “[…] democracia e o Estado de direito […] cada vez mais usados para garantir que as forças econômicas e tecnológicas não estejam sujeitas a qualquer outro fim que não o da sua própria expansão contínua” (DOUZINAS, 2007, p. 25). O Estado de Direito, nessa perspectiva se mostra atacado pelas forças externas à sua legitimidade democrático-constitucional e, transbordado em suas funções de garantia de direitos – humano-fundamentais –, em direção à garantia da atuação livra do mercado e das potências mundiais, até mesmo, quando atuam em violação aos direitos humanos e a qualquer padrão de garantia desses direitos na ordem internacional (ZOLO, 2010).

A partir do fator legitimador do soberano nos valores constitucionais: “Princípios e instituições fundamentais da Constituição têm a importância histórica e moral de conferir voz à soberania e legitimidade à política” (DOUZINAS, 2010, p. 03, tradução nossa). Essa voz conferida via Constituição institui – ou deveria instituir – a soberania e sua legitimidade política de atuação, na busca por padrões mínimos de humanidade a partir da garantia e concretização dos direitos humanos. Num primeiro momento, esse agir garantidor e concretizador, deu-se nos limites do Estado, mas, contemporaneamente, formou uma “malha” institucional e cultural de manutenção desses “direitos de todos em todos os lugares” (BOLZAN, 2011).

No entanto, os Estados e a própria ordem internacional não estão ameaçados somente pela atuação das grandes potências mundiais – que, seja, diretamente – como, também, sofre o ataque voraz do mercado global, via processo de globalização e, atuação do capitalismo financeiro, propulsor de uma “ordem neoliberal global” (PASSET, 2002). Não por outra razão Douzinas esteve à frente da resistência a reforma na Grécia, ao apontar a necessidade de rebelião contra a austeridade e violência econômica, como forma de libertação da ordem neoliberal, em oposição ao fetichismo constitucional, que:

[...] esquece, no entanto, a primazia das relações sociais sobre a expressão textual e tende para o que se poderia chamar de “fetichismo constitucional” ou nomophilia: a afirmação exagerada que a lei é soberana e politicamente neutra, o que confere ao texto constitucional a capacidade de regular cada os aspectos da vida e pacificar o conflito social e político (DOUZINAS, 2010, p. 03, tradução nossa).

Assim, com sua autoafirmação através da força, a soberania confere estabilidade à estrutura política pelas leis, para que seja exercida a governança. Na distinção entre o legal e político, vê-se a afirmação paradoxal de soberania que Costas Douzinas chamou: “O paradoxo da indivisibilidade e ilimitabilidade da soberania” (DOUZINAS, 2010, p. 03, tradução nossa).

Para compreender o paradoxo, portanto, é preciso superar a concepção moderna de soberania6, que segundo John Austin tem como fator determinante a obediência que conduz à passagem do estado de natureza para a ordem estatal (AUSTIN, 1885, p. 169). Esta necessidade se dá em razão da erosão do espaço-tempo da soberania na modernidade, qual seja o Estado, bem como, da distorção funcional da ação soberana moderna na condição de garantir direitos ligados à cidadania. Contemporaneamente, a ação estatal não se dá em seu próprio nome, nem em nome dos seus e, muito menos em nome de “todos”, mas, sim, em nome da governança global. Pois, na sua superioridade demanda subordinação: “O soberano se define incondicionalmente como superior ao seu outro. O poder de determinar a si mesmo gera a relação de dominação e subserviência” (DOUZINAS, 2010, p. 04, tradução nossa).

Em razão disso, é possível verificar a dinâmica em que se estabeleceram as possíveis, ou seja, aquilo que pode ser atribuído ao debate político. Percebe-se, então, o papel da soberania popular como artifício legitimador do político, hábil para garantir a permanência do exercício de poder.

Afinal, a reflexão da soberania relacionada à fundação do estado civil através do contrato social, ainda se mostra pertinente no constitucionalismo. Quanto ao soberano, é extrínseco ao próprio contrato ao passo que estabelece os limites do legítimo.

Na leitura dos fatores que legitimam a supremacia, Boaventura de Sousa Santos traz síntese do pensamento Hobbesiano:

Segundo Hobbes, o contrato social é o instrumento por meio do qual o povo renuncia o estado de natureza – ou seja, À liberdade total e à igualdade que necessariamente conduz à guerra de todos contra todos – e cria uma sociedade civil baseada na soberania absoluta do Estado em que, em vez de liberdade e igualdade, garante a praz, a autoridade efectiva e, finalmente, a única sociedade justa possível. No polo contrário, o povo tem um interesse fundamental em obedecer ao soberano, pelo menos enquanto o soberano garantir a protecção das suas vidas (SOUSA SANTOS, 2000, p. 133).

Tal gênese, então, revela que o próprio direito é ultrapassado ao operar sua lógica, pois o “[…] soberano é aquele que tem o direito de suspender o direito” (DERRIDA, 2005, p. 30), reflexão desenvolvida por Carl Schmitt: “Soberano: quem o ordenamento jurídico reconhece o poder de proclamar o estado de exceção e de suspender, a validade do ordenamento, então […] permanece fora do ordenamento jurídico e, todavia, pertence a este, porque cabe a ele decidir se a constituição in Toto possa ser suspensa” (AGAMBEN, 2010, p. 22).

Nesse sentido, a desconstrução7 se preocupa com o que reside oculto, trata-se do fantasmagórico8, em nossa abordagem, nas democracias constitucionais e direito internacional. Pois, resta presente: “O estado de exceção”, a suspensão das liberdades civis, o uso extensivo de tortura, coisas que, de acordo com o consenso liberal, as democracias não podem fazer […]” (DOUZINAS, 2007, p. 15).

O apontamento é de que o potencial popular está subordinado na democracia constitucional desde a origem fundante dos estados modernos. Ora, há uma afirmação pelas constituições da soberania popular que segundo Douzinas implica no truque de conferir voz ao povo (“ventriloquist’s trick that gives ‘the people’ voice”), isso porque, há uma separação e confusão entre os sujeitos, o enunciador e o sujeito de declaração (DOUZINAS, 2010).

A perceber, então, a atribuição de “soberania” que é conferida ao povo quando há bem da verdade é a assembleia constituinte que institui a ordem constitucional e suas estruturas, ou seja, possui autoridade e exerce a força (HUNT, 2009, p. 19).

Douzinas refere à tomada do todo pela parte: “[…] a confusão, do rolar juntos através da figura retórica de metalepse (a parte está no todo) está implícita em todas as declarações legais.” (DOUZINAS, 2010, p. 05, tradução nossa).

Já dizia Tocqueville, para falar de leis e políticas nos Estados Unidos é preciso começar pelo Dogma da Soberania do Povo, na obra “De la démocratie em Amérique”: “O povo é o fim de todas as coisas; tudo dele emana e tudo nele se absorve” (DERRIDA, 2005, p. 59).

No preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos da América, arquétipo prioritário das declarações:

Nós, o povo dos Estados Unidos, a fim de formar uma União mais perfeita, estabelecer Justiça, assegurar a tranqüilidade interna, prover a defesa comum, promover o bem-estar geral, e assegurar as benções da liberdade para nós mesmos e nossa posteridade, ordenamos e estabelecemos esta Constituição para os Estados Unidos da América (UNITED STATES CONSTITUTION, 1787).

Segundo Lynn Hunt o que a tradição liberal construiu nessas declarações revela um contrassenso em si mesmo, chama do paradoxo da auto evidência, pois se realmente os direitos liberais fossem universais, naturais e iguais, de que serviria seu reconhecimento?

Isso porque, assim não são, já que apenas passam a ter significado e relevância quando tem conteúdo político, ou seja, são manifestados nas relações de poder. Em que, o reconhecimento constitucional serve a legitimar as estruturas e práticas sociais:

Essa afirmação de autoevidência, crucial para os direitos humanos mesmo nos dias de hoje, dá origem a um paradoxo: se a igualdade dos direitos é tão autoevidente, por que essa afirmação tinha de ser feita e por que só era feita em tempos e lugares específicos? Como podem os direitos humanos ser universais se não são universalmente reconhecidos? (HUNT, 2009, p. 18).

Portanto, os atos de declaração são ambiguamente retrógrados e avançados. Nas diversas constituições, os declarantes afirmavam estar contemplando direitos que já residiam ao homem. Mas, ao mesmo tempo, ao fazê-lo, efetuavam uma revolução na soberania e criavam uma base inteiramente nova para o governo.

Assim, não é difícil compreender que a produção histórica projeta-se para o futuro anterior9, pois com o anúncio do povo, os representantes constituem esse “history-making event” 10: […] Este representativo do evento declara a lei, apresentando-se como porta-voz ou fantoche de outro orador, uma putativa autoridade superior, deus ou o povo. Os sujeitos de enunciação e declaração enrolam-se. (DOUZINAS, 2010, p. 05, tradução nossa).

O exercício de desconstrução deve apontar esse universal, que está presente na individualização do enunciador da lei, pois precisa de uma voz e o povo é mudo. Algo presente desde o império romano com o judex:

[...] a postulação existencial de um judex, de um indivíduo único que diz o direito, e que é único não porque ele tem esse poder para si mesmo... nem porque as pessoas decidiram dar a ele [mas porque] apenas um único indivíduo pode falar. (NANCY, 1993, p. 132, tradução nossa).

A palavra judex corresponde ao legislador, pode ser deus, povo, rei, etc. É condição para a soberania, pois confere funcionalismo a lei, com a juris-dicto tem-se a personificação necessária. Douzinas afirma: “Este é também o ponto de entrada para Deus, o rei ou o povo, os grandes representantes da soberania” (DOUZINAS, 2010, p. 05, tradução nossa).

Nessa acepção que se revela a potencialidade da lei pelo monarca, o soberano se autoafirma ao atribuir direitos, mas: “a soberania é função do discurso legal, efeito falante da lei” (DOUZINAS, 2010, p. 05, tradução nossa). Nesse sentido, lembra Peter Fitzpatrick:

A lei ocidental, em contrapartida, é investida de inviolabilidade e transcendência. Essas qualidades são usualmente postas nos termos da existência normativa ou formal, geral ou abstrata, da lei. Em termos práticos, isso implica que a lei não é capaz de “suportar muita realidade”. A lei deve ser mantida a uma certa distância “dos comprometimentos e discursos cotidianos da prática e dos conflitos sociais e políticos” [...]. [...] A lei, como a divindade, cria seu próprio mundo, e a realidade legal é o efeito mágico da invocação de fórmulas dentro da lei, ás quais os sacerdotes e as pessoas em geral aderem miticamente. Sendo mágica e transcendente, a lei não pode ser levada a uma comparação avaliativa, muito menos definitiva, com a realidade mundana (FITZPATRICK, 2007, p. 86).

A constatar o que está por trás quando se afirma que o direito confere unidade ao povo, visto que resulta na/da existência soberana, já que: “O direito é o pressuposição da união das pessoas; mas para se tornar real, deve ser pronunciado. O monarca, o governante único e exclusivo, passa a existir, a fim de expressar esse direito” (DOUZINAS, 2010, p. 05, tradução nossa). A concluir que, o povo cumpre com o papel de conferir voz à lei, como elemento legitimador do exercício soberano:

Se o “povo” é representado... como interiormente desenvolvido, genuinamente orgânico, uma totalidade, então a soberania está lá como a personalidade do todo, e essa personalidade que está lá, na existência real adequada do seu conceito na pessoa do monarca (HEGEL, 1967, § 279, tradução nossa).

O propósito de unidade demanda a identidade daquele que faz a lei, do qual resulta a personificação decorrente da soberania que tem essa função. É o que Derrida chamou de mal de soberania, pois não há nada além do poder da linguagem e o comando da lei:

Jacques Lacan insistiu algumas vezes, que não há nenhum outro do outro, todas essas máscaras de poder supremo são impostores, não há nada além da linguagem, as suas estruturas e interdições, exceto para o real que não pode ser simbolizado (DOUZINAS, 2010, p. 08, tradução nossa).

Como bem pontua Fernanda Bernardo quanto à “ex-apropriação” do originário: “[…] toda a soberania é fantasmática, ideológica ou ficcional; por outras palavras e nas palavras do próprio Derrida, está mal de soberania. Que é denegada com a apropriação soberana, segundo Derrida presente em todos os processos de colonização” (DERRIDA, 2005, p. 11/12).

Portanto, é inegável a impossibilidade e necessidade do legislador soberano:

Não há nada por trás de sinais, que possa garantir a sua integridade e nada por trás da lei para entregar a sua justiça. E se a produção da lei é uma função para o sujeito, o significante transcendente, o legislador sublime, o garante da unidade é ao mesmo tempo necessário e impossível (DOUZINAS, 2010, p. 08, tradução nossa).

Por outro lado, é perceptível um cinismo no constitucionalismo democrático de força performativa: “[…] parafraseando Foucault, no direito constitucional a cabeça do rei ainda não foi cortada. Parafraseando Pierre Legendre, mesmo cortada, a cabeça deve ser mantida no corpo do rei. Temos que fingir que ele ainda está vivo” (DOUZINAS, 2010, p. 08/09).

Já que é pelo desejo que se constitui a autoridade do legislador, que confere sentido ao que não possui, ao soberano fantasma que adquire vida por si só, pois: “O soberano, fingindo falar da lei, traz o sujeito(tado) à vida. A progênie (soberano) ajuda a gerar o criador (sujeito-cidadão)” (DOUZINAS, 2010, p. 09, tradução nossa).

Logo, a soberania é o efeito, que tem sua força infirmada na própria lei, na violência manifestada em sua imposição. Acontece que, tal imaginário têm sofrido ataques. Na leitura de Douzinas “[…] todo tipo de pessoas não estão dispostas a aceitar a mentira do pai, a possibilidade de deixar para trás a declaração do monarca e expor as mentiras do soberano” (DOUZINAS, 2010, p. 09, tradução nossa).

Em sentido contrário, portanto, o presente esforço visa romper com essa dialética prevalente da lógica de soberania definidora do âmbito de validação democrático. Assim, almeja-se oposição à linearidade casual da política prevalente e ao status quo, para “liberar-se do privilégio teórico da soberania” (FOUCAULT apud AGAMBEN, 2010, p. 13), pois, é preciso “[…] construir uma analítica do poder que não tome mais o direito como modelo e código.” (FOUCAULT, 1988, p. 87).

Adverte-se, então, antes de iniciarmos o próximo tópico, não se tratar aqui de analisar a legitimidade das ações sociais e dos protestos ou da composição política específica de certo grupo ou movimento ou social, em absoluto, é preciso ultrapassar o prenúncio liberal de que no institucionalizado se dá a pacificação dos conflitos sociais. Isto, porque o prenúncio, agora, é neoliberal, e o sujeito encontra-se instituído pelo mercado em uma situação de subalternidade frente à substancialidade da instância social. A instituição produz um “eu” dominado e expurgado de sua existencialidade humana, de modo, a procurar abrigo em uma (a)normalidade mercadológico-assujeitadora. “A instituição só pode ser evidentemente – constato aqui a velha prática das leis – uma grande maquina para dissimular a verdade, para produzir a ilusão pelas máscaras, para propor sempre a outra coisa sublime, ao invés da verdade do mais gritante desejo” (LEGENDRE, 1983).

Além do mais, estar-se-ia apenas discutindo o controle institucional das práticas sociais, segundo Henry Jones:

Um exemplo desta posição é tomada por Habermas, quando escreve sobre a paz trazida pela democracia liberal, o livre comércio, e a esfera pública global. Esta receita para a paz reformula intervenção como uma atividade policial, corrigindo os malfeitores e a ordem imponente. Habermas adota a “Paz Perpétua” de Kant como um limite (JONES, 2014, tradução).

Assim, a perspectiva seguida não compreende a discussão da criminalização do que excede os limites do espaço legítimos do social, sob pena, de, tão somente reproduzir o problema apontado nos modelos jurídico-estatais. Pois, ao passo que são fomentadas práticas de poder contrárias aos valores que o discurso propugna, a questão democrática tende a esvaecer-se com a apreensão institucional. Dessa maneira, o democrático do constitucionalismo é protegido de si mesmo.

Entretanto, apesar da noção de democracia ser imprescindível ao poder dominante, paradoxalmente, também, permite o espaço para a desconstrução. Isto porque, conforme Derrida o por-vir indica que a democracia é projetada para além do presente como promessa, mas que nunca ocorrerá, não se pode negar a aporia. Mas, é justamente no contínuo exercício frente ao deslocamento das estruturas que reside o democrático para Derrida (DERRIDA, 2010).

A feição desconstrutivista, portanto, consiste em movimento que implica na reinterpretação de todo um aparelho de limites, aos quais uma história e uma cultura puderam confinar à sua criteriologia, em oposição aos critérios de busca pela origem de conceituação metafísica. Esta árdua e interminável tarefa consiste em (re)lembrar a história para além dos limites dos conceitos de justiça, direito, lei, valores, normas e prescrições que se impuseram e sedimentaram-se como pressupostas. No presente esforço, portanto, relativo à dimensão atual da soberania e seu trajeto político correspondente.

3 Deslocamento soberano, exercício democrático e Direitos Humanos

Neste tópico será vislumbrada a possibilidade de ultrapassar os limites do soberano pelo exercício democrático em oposição às práticas soberanas.

Para isso, é preciso pensar o democrático além dos padrões identitários do legítimo e da reprodução do senso prático – de direitos humanos; ao relacionar, teoria crítica e democracia radical, faz-se, incialmente, análise da liberdade e resistência.

A resistência tem relação direta com o valor liberdade, na concepção da lei natural de Ernst Bloch, a liberdade compreende manifestação contrária ao instituído, para tanto, não pode assumir forma determinada: “[…] agir contra facto, assim, em uma perspectiva de um mundo ainda aberto, não determinado seu caminho até o fim.” (BLOCH, 1988, p. 192, tradução nossa).

Assim sendo, a liberdade é violada não só quando temos a opressão comumente manifestada nos padrões dominantes de submissão violenta e, inevitável soberania, mas, também, quando a forma de questionar tais violações é fechada em um sistema estrutura. Pois, transforma pretensas oposições a seu favor, ou seja, se expande a ponto de controlar a própria “liberdade”:

[...] a liberdade também é incompatível com um mundo totalmente determinado e fechado, em que a única intervenção pessoal possível é um ajuste criterioso às idéias dominantes e da exploração dos dados e inevitáveis estruturas a favor do sujeito; uma vantagem cujos contornos foram bem demarcadas e limites são rigorosamente policiados (DOUZINAS, 2000, p. 05, tradução nossa).

Portanto, a estruturação dessa lógica implica na transgressão à concepção de liberdade (feição negativa), posto que o conceito de liberdade se estabelece para além da moldura jurídico-institucional11. Assim, há que se reconhecer que os limites do reconhecimento de direitos tem relação com o ideal de liberdade: “[…] a liberdade é reforçada pela capacidade dos direitos de estender os limites do social e de expandir e re-definir identidades pessoais e de grupo” (DOUZINAS, 2000, p. 05, tradução nossa).

Nesse sentido, é preciso tencionar os limites do direito e do direito a liberdade, no intuito de romper com os modos de subjetivação, que são categorizados pela lei.

Revela-se, nesse ponto, como a medida conduz a não liberdade 12, pois, depende da identidade humanitária constituída pelo discurso prevalente de Direitos Humanos (igualdade) conforme o efeito humanizador da moral prevalente.

Cumpre pontuar, ainda, a necessidade de romper com os modos de subjetivação13 em nossa era, por ser expansiva a regulação dos aspectos da vida humana:

[...] no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos (FOUCAULT, 1988, p. 151).

Almeja-se, portanto, resistir à dominação e a opressão institucional. A constatar que, os direitos humanos perdem este objetivo, ou possibilidade, quando constituem a versão contemporânea de missão civilizatória europeia (DOUZINAS, 2007, cáp. 06).

Entretanto, para permitir que a resistência seja capaz de considerar a liberdade, sempre que esta é incorporada14, o comportamento ante tal petrificação deve ser um exercício contrário que permita a contínua (re)definição ante a externalidade dos limites sociais.

Não perceber isso, significa estar fadado a aplicação casuística do constitucionalismo restrita a interesses individuais com a proliferação excessiva da legalidade (presente o niilismo), no qual os direitos humanos ainda no prenúncio antropocêntrico estão atrelados à identidade do sujeito15, e, ao permanecerem assim, se revelam incapazes de permitir qualquer tipo de emancipação, já que não basta se opor a figura do estado na contemporaneidade:

[...] dentro de uma década, os direitos humanos começariam a ser invocados em todo o mundo desenvolvido e por muitas pessoas comuns como nunca. Em vez de implicar libertação colonial e a criação de nações emancipados, os direitos humanos mais frequentemente agora significavam proteção individual contra o Estado. (MOYN, 2010, p. 04, tradução nossa).

Pois, tais direitos com sua feição dissimulada de significação, suplantados pela ontologia de seus valores, vêm a constituir principal fonte de controle no mundo contemporâneo, onde o espaço político reside em sua discrepância:

[...] suas pressuposições ontológicas, os princípios de igualdade e liberdade, e seu corolário político, a pretensão de que o poder políticos deve estar sujeito às exigências da razão e da lei, agora passaram a fazer parte da principal ideologia da maioria dos regimes contemporâneos e sua parcialidade foi transcendida (DOUZINAS, 2007, p. 19).

Para Boaventura de Sousa Santos o expansionismo relaciona-se a um capitalismo desorganizado 16, que tem origem no início da modernidade: “[…] o cientificismo e o estadismo moldaram o direito de forma a convertê-lo numa utopia automática de regulação social, uma utopia isomórfica da utopia automática da tecnologia que a ciência moderna criara” (SOUSA SANTOS, 2000, p. 143).

De tal modo, desde o início da modernidade até os dias atuais permanece a função autorreferencial do direito comprometedora da emancipação social:

[...] do positivismo jurídico à autopoiése, o pressuposto ideológico foi sempre o de que o direito devia desconhecer, por ser irrelevante, o conhecimento social científico da sociedade e, partindo dessa ignorância, deveria construir uma afirmação epistemológica própria (“direito puro”, “direito auto-referencial”, “subjectividade epistêmica do direito”) (SOUSA SANTOS, p. 165).

Do seu contrário, para permitir que a resistência seja capaz de considerar a liberdade, sempre que esta é incorporada pela soberania17, o comportamento ante tal petrificação deve ser o exercício contrário à institucionalização estatal.

A investigação feita, portanto, é bem diferente de entender a liberdade como valor consignante de humanidade como expressão moral dos Direitos Humanos, pois com sua exposição é contabilizada na ordem internacional.

Nesse momento, é preciso compreender os Direitos Humanos que funcionam como moral capaz de justificar as manifestações de poder:

O núcleo desse argumento é desenvolvido a partir de uma crítica à defesa dos bombardeamentos da NATO 1999 da Iugoslávia (a guerra do Kosovo) por Habermas. [...] ofereceu uma expressão mais completa de uma posição tomada por vários advogados internacionais, que reconheceu a ilegalidade da guerra, mas argumentou que deve ser considerada como “moralmente justificada (WERNER, 2007, tradução nossa).

O que se dá conforme a herança ocidental, nos alerta Walter Benjamin:

O perigo afeta tanto o conteúdo da tradição como seus receptores. A mesma ameaça paira sobre ambos: o de se tornar um instrumento para as classes dominantes. Em cada época deve ser renovada tentativa para arrancar do caminho da tradição um conformismo que está prestes a dominá-la (BENJAMIN, 1969, p. 255, tradução nossa).

Seria um engano, então, pensar que a Constituição é uma saída, pelo contrário, nela se reproduz esse potencial da ordem política18, ao afastar qualquer possibilidade de ultrapassar seus limites. Ademais, não se pode negar, que a principal função do poder constituído é impedir um exercício fora dos resquícios e limites do poder constituinte, que se reafirma:

A análise da aprendizagem e da aquisição de disposições conduz ao princípio propriamente histórico da ordem política. Pascal tira uma conclusão tipicamente maquiavélica a partir da descoberta de que o arbítrio e a usurpação estão na origem da lei, de que é impossível fundar o direito na razão e no direito, de que a Constituição, sendo decerto o que mais se assemelha, na ordem política, a um primeiro fundamento cartesiano, não passa de uma ficção fundante destinada a dissimular o ato de violência fora da lei que está na raiz da instauração da lei: na impossibilidade de facultar ao povo o acesso à verdade libertadora sobre a ordem social (“veritatem qua liberetur”), pois isso apenas serviria para ameaçar ou arruinar essa ordem, é preciso “trapaceá-lo”, dissimular-lhe a “verdade da usurpação”, ou seja, a violência inaugural na qual se enraíza a lei, fazendo com que seja “vista como autêntica, eterna” (BOURDIEU, 2007, p. 203-204).

É por isso que a concepção de democracia deve ser questionada para além de sua própria possibilidade, através em seu exercício deve ser extrapolada, pois compreende o “[…] direito de tudo publicamente criticar inclusive a própria democracia” (DERRIDA, 2005, p. 169).

Diante dessa acepção revela-se a Democracia por vir 19: “[…] democracia por vir - porque é o único nome para um regime político que declara sua historicidade e sua imperfeição” (DERRIDA, 2000, p. 09, tradução nossa). Com efeito:

A democracia como sentido de uma forma de sociedade é precisamente o privilegio da invenção quotidiana, a exaltação de seus antagonismos e formas de resistência às práticas de dominação. Ela precisa, para constituir-se, do reconhecimento de um território simbólico coletivamente constituído como negação de um lugar a priori, e como rebelião a um delito social julgado previsível (WARAT, 1997, p. 102).

Afinal, a democracia deve se colocar sempre em xeque, para a busca por maior justiça, liberdade e igualdade, no que excede às instituições e a realidade social de suas práticas:

A democracia é, para Derrida, o único regime ou quase-regime político aberto a sua historicidade na forma de transformação política, e aberto à sua própria reconceitualização por meio da autocrítica, chegando até e incluindo a idéia e o nome ‘democracia’ (NAAS, 2006. p. 33).

Logo, considerando a necessidade de cautela com relação aos saberes incorporados, é imperioso desconstituir os mitos racionais da modernidade: “[…] um repensar radical sobre a ciência moderna e o direito moderno, um repensar tão radical que, na verdade, pode ser concebido como um des-pensar” (SOUSA SANTOS, 2000, p. 164).

Assim, a desconstrução reside no intervalo que separa a indesconstrutibilidade da justiça e a desconstrubilidade do direito – a justiça é viável como experiência do impossível. Para isso, faz-se necessário romper com a totalidade axiomática metafísico-antropocêntrica.

Significa dizer que não se está à busca de um modelo ideal de democracia, em absoluto, não há tal purificação, mas, relacionar democracia com contínuo exercício de resistência e mobilização do povo20. Por isso, Derrida conclui existir a necessidade de proteção da democracia de si mesma, o que revela “[…] um certo suicídio na democracia […] suicídio auto-imunitário” (DERRIDA, 2005, p. 88).

Cabe ressalvar, ainda, o conceito de autoimunidade que ultrapassa o jurídico, o que também possibilita a subversão e exclusão do que não lhe é aprazível na imposição do ideal democrático:

[...] perversibilidade auto-imunitária da democracia: a colonização e a descolonização foram ambas experiências auto-imunitárias no decurso das quais a imposição de uma cultura e de uma língua política supostamente identificadas com um ideal político greco-europeu (DERRIDA, 2005, p. 89).

Nesse sentido, a imunidade serve para proteger a democracia dos inimigos declarados através daquilo que nega: “[…] democracia se defende contra seus inimigos, se defende ela mesma, dela mesma contra os seus potencias inimigos” (DERRIDA, 2005, p. 98).

Por outro lado, não há saída que destoe da atribuição de responsabilidade desmedida em meio à contínua busca por justiça ante a imperfeição do modelo democrático: “[…] algo que nunca existiu de maneira satisfatória e continua por-vir” (DERRIDA, 2007, p. 46, tradução nossa). Nota-se, portanto, que para Derrida o democrático reside no deslocamento das estruturas.

Nesse final, então, procura-se correlacionar à perspectiva desconstrutivista acerca do soberano com o político dos espaços democráticos.

Ressalta-se, assim, a necessidade de compreender a força da soberania para além do âmbito estatal por ter relação com os demais afluentes da sociedade internacional, a destacar a globalização econômica, ambiente político e as leis internacionais. Ora, a democracia está atrelada as amarras do capital, Boaventura de Sousa Santos ao analisar a democracia e capitalismo, conclui que aquela deve romper com as correntes deste:

A democracia liberal foi historicamente derrotada pelo capitalismo e não me parece que a derrota seja reversível. Portanto não há que ter esperança que o capitalismo volte a ter medo da democracia liberal, se alguma vez teve. Esta última sobreviverá na medida em que o capitalismo global se puder servir dela. A luta daqueles e daquelas que vêem na derrota da democracia liberal a emergência de um mundo repugnantemente injusto e descontroladamente violento tem de centrar-se na busca de uma concepção de democracia mais robusta cuja marca genética seja o anti-capitalismo (SOUSA SANTOS, 2013).

A oposição anticapitalista é o que se procura no recente contexto dos protestos desde as primeiras manifestações do Occupy Wall Street, com o prenúncio de questionamento do capitalismo e o modo de vida reproduzido na ordem global21: “Você está trabalhando para o capitalismo. O capitalismo está trabalhando para você?”.

Nesse sentido, é referenciada a democracia radical (radical democracy)22, a fim de que sejam consideradas as diversas dimensões da vida social, política e econômica, e, assim, formule-se “[…] crítica ao poder centralizado de todo o tipo - carismático, burocrático, classista, militar, corporativista, partidário, de união e tecnocrático” (LUMMIS, 1997, p. 25, tradução nossa).

Logo, o conceito de democracia possui feição primordialmente popular quando propugna que o povo deve ser capaz de decidir acerca do que lhe afeta: “[…] as decisões são apresentados com aqueles diretamente afetados por elas, um realinhamento da economia e da política que implique a reintegração de vários aspectos da vida, com menores economias regionais e unidades sociais” (ARONOWITZ, 2011, p. 99, tradução nossa).

De tal forma: “[…] os ideais democráticos de igualdade, liberdade e controle popular são permitidos em seu domínio mais completo e expansiva aplicação” (KEENAN, 1997, p. 01/03, tradução nossa).

O que implica em (re)tomar tais princípios, não mais em um consenso apriorístico ou um catálogo normativo, mas na reviravolta utópica dos Direitos Humanos. Pois, é para além da legalidade e institucionalidade que se busca pensar tais direitos no exercício democrático. Através dessa expansividade, portanto, a democracia deve “[…] abrir-se, oferecer uma hospitalidade a todos os excluídos” (DERRIDA, 2005, p. 134).

Além do mais, nos recentes protestos não se percebe um propósito inquestionável ou algo que ligue diretamente os envolvidos, ou melhor, uma finalidade precípua nas práticas ou valores inquestionáveis, mas, contínuos embates sociais em torno da lógica neoliberal da ordem global.

Por não ter uma ideologia definida é que tais protestos são uma grande ameaça, pois não estão direcionados a uma instituição, governo ou modelo político específico, mas a um conjunto de hegemonias prevalentes, bem como, as pessoas que integram tais mobilizações não fazem parte de uma classe ou grupo específico, é o que Antonio Negri e Michael Hardt chamaram de “Multidão”. Avançando com Negri e Hardt, é a multidão do comum que, possibilita – ou pode vir a possibilitar – a celebração de um novo processo constituinte arraigado no comum como subjetividade que rompe com as produções de sentido moderno-capitalistas consolidadas sobre uma visão individualista e privatista de sociedade. Ao assumir o comum como subjetividade, se assume a força modificadora da sociedade civil que é capaz de consolidar um novo projeto democrático (NEGRI; HARDT, 2014). Nesse sentido:

Um tempo de democracia se vincula a um tempo disforme, onde a continuidade representa, tão-só, a possibilidade do incompleto, do contraditório, da afirmação da diferença que marca a existência humana individual e coletiva. Apresenta-se como o enigma daquilo que num instante é e, no próximo, passa a ou já pode não ser (BOLZAN DE MORAIS, 1998, p. 108).

Aliás, “A organização politica sempre requer a produção de subjetividades. Devemos criar uma multidão capaz de uma ação política democrática e de uma autogestão do comum” (NEGRI; HARDT, 2014, p. 67).

O que se percebe, portanto, é uma tentatica de reação ao sistema-mundo, e que nos parece ser o primeiro passo, para pensar a democracia além do “[…] velho-novo enigma da soberania” (DERRIDA, 2005, p. 20). Onde, busca-se ultrapassar as identidades prevalentes, sem abandonar a conexão metafísica na medida em que é capaz de alcançar avanços sociais o retomar a dignidade do humano (DERRIDA, 2005, p. 16).

4 Conclusão

Neste artigo foi (de)composta de forma crítica a concepção de soberania como exercício de poder legítimo, na medida em que o constitucionalismo democrático e ordem internacional reproduzem a lógica prevalente das teorias modernas.

Nesse sentido, fez-se o apontamento da crise patente do conceito de soberania professado na maioria das narrativas filosóficas da contemporaneidade não afastar o crescente avanço de expansão institucional do político, já que a herança incorporada reproduz-se nas constituições democráticas e lei internacional.

A matriz teórica envolve reflexões feitas a partir do movimento da desconstrução pensado por Jacques Derrida, que inspirou diversas vertentes da teoria crítica do direito e filosofia política de nosso tempo. Assim, destacou-se a presença do soberano nas estruturas de poder relacionada ao projeto de direito – constitucionalismo democrático, lei internacional e mercado financeiro – e a filosofia (pós)moderna dos nossos tempos.

O que não significa, porém, que a apropriação pelo soberano e seu legado seja intransponível, conforme foi argumentado, vislumbra-se a possibilidade de democracia no embate contra os padrões prevalentes ante a (re)definição dos Direitos Humanos, apesar de terem sido: “[…] transformados de um discurso de rebeldia e divergência em um discurso legitimidade do Estado.” (DOUZINAS, 2007, p. 25).

Nesse intento, a perspectiva desconstrutivista propugna por um exercício contínuo do democrático, não como regime, mas movimento de resistência ao soberano na ordem global. O que se fez ao relacionar a filosofia crítica e resistência política na atualidade para além do soberano.

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[Received: Sept. 18, 2015; Approved: Jan. 15, 2016]

DOI: http://dx.doi.org/10.18256/2238-0604/revistadedireito.v13n1p-130

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