2606

Relações étnico-raciais na perspectiva da saúde da população negra no curso de medicina: análise curricular

Ethnic-racial relations in the perspective of the health of the black population in the medical course: curricular analysis

Maria Cristina da Conceição(1); Jorge Luís de Souza Riscado(2); Rosana Quintella Brandão Vilela(3)

1 Universidade Federal de Alagoas, Maceió – AL, Brasil.
E-mail: [email protected] | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4118-3283

2 Universidade Federal de Alagoas, Maceió – AL, Brasil.
E-mail: [email protected] | ORCID: http://orcid.org/0000-0002-7015-0798

3 Universidade Federal de Alagoas, Maceió – AL, Brasil.
E-mail: [email protected] | ORCID: http://orcid.org/0000-0003-3910-4678

Resumo

Esse estudo visa verificar a presença da temática étnico-racial no Curso de Graduação em Medicina de uma instituição pública de Alagoas, investigando abordagens sobre as Relações Étnico-Raciais e da Saúde da População Negra no Projeto Pedagógico e nos conteúdos da matriz curricular. Metodologia qualitativa, exploratória e documental, sustentada pelas recomendações das Diretrizes Curriculares para as Relações Étnico-Raciais, da Política de Saúde Integral da População Negra e das Diretrizes Curriculares para o Curso de Medicina. Foi elaborada uma matriz instrumental visando organizar os dados, a partir das categorias elegíveis: Explicitação das Relações Étnico-Raciais e a Saúde da População Negra nos Fundamentos e Justificativas para a Formação Médica; Aspectos étnico-racial afro-brasileiro nos Objetivos; Habilidades e Competências; Relações Étnico-Raciais na Organização e no Conteúdo, sendo essa dividida em sete subcategorias. Os dados foram interpretados na perspectiva de análise de conteúdo. Os resultados demonstraram um silenciamento acerca das relações Étnico-Raciais na estrutura do Projeto Pedagógico no tocante aos fundamentos e justificativas, bem como, nos objetivos e competências para a formação médica. Nas abordagens dos conteúdos foram encontradas citações pontuais sobre as nosologias consideradas prevalentes na população negra como doença falciforme, diabetes mellitus, glaucoma e hipertensão arterial, para os demais assuntos não foram identificados elementos que considerem de forma explícita o viés étnico-racial ligado à Saúde da População Negra nas ementas e nos planos de disciplinas obrigatórias da graduação. Na organização do curso e na matriz curricular foram identificados aspectos potencializadores possibilitando integralizar essa temática em todos os eixos formativos do curso de forma transversal.

Palavras-chave: Currículo. Etnicidade. Saúde da População Negra. Educação Médica.

Abstract

This study aims to verify the presence of ethnic-racial themes in the Medical Graduation Course of a public institution in Alagoas, investigating approaches on Ethnic-Racial Relations and Health of the Black Population in the Pedagogical Project and in the contents of the curricular matrix. Qualitative, exploratory and documentary methodology, supported by the recommendations of the Curricular Guidelines for Ethnic-Racial Relations, the Integral Health Policy of the Black Population and the Curriculum Guidelines for the Medicine Course. An instrumental matrix was elaborated to organize the data, from the eligible categories: Explicitation of Ethnic-Racial Relations and the Health of the Black Population in the Foundations and Justifications for the Medical Formation; Afro-Brazilian ethno-racial aspects in the Goals; Skills and Skills; Ethnic-Racial Relations in Organization and Content, which is divided into seven subcategories. The data were interpreted from the perspective of content analysis. The results showed a silencing about Ethnic-Racial relations in the structure of the Pedagogical Project regarding the fundamentals and justifications, as well as in the objectives and competencies for medical training. In the content approaches, specific citations were found on the nosologies considered prevalent in the black population, such as sickle-cell disease, diabetes mellitus, glaucoma and arterial hypertension, for the other subjects there were no elements that explicitly considered the ethnic-racial bias linked to Black population in the menus and plans of compulsory subjects of graduation. In the organization of the course and in the curriculum matrix, potential aspects were identified, making it possible to integrate this theme in all the formative axes of the course in a transversal way.

Keyword: Curriculum. Ethnicity. Health of the Black Population. Medical Education.

Introdução

O contexto social brasileiro é formado por uma diversidade étnico-racial e cultural, representadas pelas culturas europeia, indígena e africana, o que caracterizou a sociedade como multicultural, com predominância dos afrodescendentes, devido ao grande número de pessoas dessa descendência trazidos para o Brasil na condição de escravos. Contudo, a ideologia da identidade coletiva e única, permeada na sociedade brasileira, contribuiu fortemente para o não reconhecimento dessa heterogeneidade e da diversidade de relações existente no País (NASCIMENTO, 2003).

As relações étnico-raciais na sociedade brasileira foram pautadas no sistema colonialista em que a hierarquia de raça levou a sobreposição da cultura branco-eurocêntrica e permitiu a invisibilidade, de maneira intencional, das demais matrizes étnicas e raciais, cujas histórias e culturas, são fatos que não se discutem, não são notados e/ou não querem fazer notar.

No caso dos afrodescendentes trazidos para o Brasil, a invisibilidade de sua história e de sua cultura, se constitui em uma das estratégias da escravidão, visando destruir a memória coletiva desse seguimento populacional e, de justificar relações étnico-raciais desiguais estabelecidas no campo econômico, sociocultural, político e racial (MUNANGA, 2015). No contexto atual essas desigualdades, traduziram-se em arranjos políticos e sociais que limitam oportunidades e formas de expectativa de vida da população negra (BRASIL, 2013).

Sendo assim, o questionamento sobre as diferenças étnico-raciais, na contemporaneidade, se tornou uma das emergências, visto que cada vez mais os casos de autodefinição étnica e racial, contraria a teoria de identidade coletiva única e ressalta o direito à diferença. Fato evidenciado pelo censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, divulgado em 2010, mostrou que a população negra, composta pelos pretos e pardos, representa 50,7% da população brasileira, sendo a maioria localizada no nordeste. Em Alagoas esse segmento populacional representa um total de 62% do contingente demográfico (IBGE, 2010).

Os questionamentos sobre as diferenças étnico-raciais levaram o Governo Federal, no final do século XX e início do XXI, a se utilizar dos dispositivos legais para instituir políticas que fazem parte de um conjunto de ações afirmativas, surgidas como frutos de uma longa trajetória de luta e reivindicações do movimento negro, bem como de outros seguimentos sociais.

A luta do movimento negro fez-se protagonista em diversas esferas, como educação, cultura, saúde, sendo que nesta última contribuiu para tencionar a comissão constituinte, para a construção do manuscrito no artigo 196 da Constituição Federal de 1988, onde se preconiza que a “saúde é um direito de todos e um dever do Estado” (BRASIL, 1988).

Seguindo nessa direção, a instituição do Sistema Único de Saúde (SUS), possibilitou a materialização do direito à saúde estendido a todos, pois seus princípios e diretrizes organizativos visam assegurar, uma saúde universal, integral e equânime para todos os cidadãos no território brasileiro.

No processo de consolidação do SUS, o norteamento de diretrizes para formação dos profissionais da saúde, voltada às novas perspectivas de acomodação das diversas realidades e demandas relacionadas ao momento histórico, social, econômico e cultural da sociedade, foram também necessárias (BATISTA; GONÇALVES, 2011; PEREIRA; LAGES, 2013).

Como norteador da formação e da prática dos agentes de saúde, o SUS tem buscado instituir políticas, nas quais busca alinhar orientações para a educação em saúde que atendam aos paradigmas emergentes, dentre as quais se encontra Política de Saúde Integral População Negra – PNSIPN (BRASIL, 2013).

Aprovada em 10 de novembro de 2006, pelo Conselho Nacional de Saúde - CNS, e instituída pela portaria nº 992, em 13 de maio de 2009, a PNSIPN, tem como objetivo a promoção e equidade em saúde, com planejamento de ações tendo em vista o maior cuidado na área da atenção à saúde desse segmento populacional, que ainda carrega nesse campo a marca das desvantagens nas condições de vida e da falta de acesso aos serviços de saúde.

A PNSIPN possibilitou ainda a criação de um campo de pesquisa e intervenção, contribuindo para a produção de conhecimento científico, a capacitação de profissionais de saúde e a divulgação de informações para a população sobre a atenção em saúde (MONTEIRO et al., 2005).

Em relação às políticas educacionais, a legislação vigente, busca reunir uma série de exigências que estimula o desenvolvimento de processos de compreensão e de reconhecimento da identidade de matriz afro e afro-brasileiras de forma positiva, bem como a construção de uma ética que respeite e considere as diferenças tanto na política como nas práticas pedagógicas.

Neste contexto, se destaca as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana - DCNERER (BRASIL, 2004) que foram instituídas em 2004 aprovadas a partir do Parecer CNE 03/2004 e da Resolução CNE/CP 01/2004, que dentre outros assuntos orienta para a inserção de conteúdos sobre a história e cultura da africana em todos os níveis de ensino.

Para a formação médica, as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de medicina, através das reformulações realizadas em 2014, propuseram ajustes que focalizam a necessidade de uma formação que considere a diversidade étnico-racial a partir do conhecimento sobre as realidades históricas e culturais da matriz afro-brasileira e sua influência nos processos de saúde-doença (BRASIL, 2014).

Esses ajustes parecem buscar atender a necessidade de uma resposta - na área da educação, as demandas da população afrodescendente, no que se refere às políticas de ações afirmativas, ou seja, de reparações e de reconhecimento e valorização de sua história, cultura e identidade. Para a formação médica, particularmente, entende-se que a educação profissional nesse campo, deve alinhar valores que possibilite ir além do exercício de uma medicina competente tecnicamente, bem como a características peculiares como: o compromisso ético e à concepção ampliada de saúde, onde cuidar é valorizar, é criar vínculo e se responsabilizar pela integralidade das ações (GOMES, 2011).

A inserção das relações étnico-raciais na perspectiva da população negra no currículo médico parece ser uma urgência, uma vez que, para esse seguimento populacional, os indicadores de saúde, quando desagregado por raça cor, têm revelado que qualidade de vida e, consequentemente, a saúde encontram-se abaixo, com uma significativa diferença, em alguns casos, quando comparado com outros seguimentos étnicos (BRASIL, 2014).

A lacuna da temática nos currículos e programas dos cursos de formação dos profissionais da área de saúde demonstra que, mesmo havendo legislação que disponha sobre a inclusão de estudo dessa temática no ensino superior, isso não garante sua efetividade. Segundo Monteiro (2016), “os cursos da área de saúde pouco ou nada têm feito no sentido de considerar o tema em questão como conteúdo pertinente à formação dos novos profissionais”.

Isso significa que, o fato das políticas afirmativas avançarem não garante que o reconhecimento e a implementação das mesmas sejam uma realidade. Diante desta preocupação, esse estudo teve como objetivo verificar a presença da temática étnico-racial no Curso de Graduação em Medicina, procurando responder os seguintes questionamentos: 1) as Relações Étnico-Raciais para o segmento populacional afro e afro-brasileiro estão sendo contempladas no PPC? 2) Em que áreas e, em que conteúdos da matriz curricular do curso de medicina contemplam as Relações étnico-raciais e Saúde da População Negra? 3) Quais potencialidades e desafios existem para inserção das Relações Étnico-Raciais?

Para responder a esses questionamentos, recorreu-se à análise da estrutura do PPC, nas dimensões política e pedagógica, relacionando-as com os contextos emergentes das relações étnico-raciais na perspectiva da saúde da população negra.

2.2 Percurso metodológico

2.2.1 Tipo de Pesquisa

Trata-se de um estudo documental, de caráter exploratório, numa perspectiva qualitativa, com propósito de responder as seguintes questões: as Relações Étnico-Raciais estão contempladas na dimensão política do PPC do curso de medicina da UFAL? As Relações Étnico-Raciais estão contempladas na dimensão pedagógica do PPC do curso de medicina da UFAL? Quais as potencialidades e desafios existentes para a inserção da temática?

2.2.2 Análise documental

A análise documental constitui uma técnica importante na pesquisa qualitativa, seja complementando informações obtidas por outras técnicas, seja desvelando aspectos novos de um tema ou problema (LUDKE; ANDRÉ, 1986).

O estudo em foco ateve-se à análise crítica do Projeto Pedagógico do Curso (PPC) de graduação em medicina da FAMED/UFAL, tomando como referência os seguintes documentos: a) Diretrizes Curriculares para o Curso de Medicina (BRASIL, 2014); b) Diretrizes Curriculares para Educação das Relações Étnicos-Raciais (BRASIL, 2004); c) Política de Saúde Integral da População Negra (BRASIL, 2009).

O PPC de medicina UFAL, versão 2013, disponível no site da FAMED/UFAL está organizado em cinco capítulos. Pautando-se nas Diretrizes Curriculares para o curso de medicina instituída em 2001 e, em legislações do SUS. Foi produzido de forma coletiva por uma equipe formada por representantes do corpo docente, técnicos, discentes, a partir das necessidades de adequar o curso as demandas emergentes e as mudanças e exigências legais para a formação médica.

Na análise do conteúdo do PPC se buscou identificar indícios de abordagens sobre a saúde da população negra na contextualização e nas intencionalidades, tanto na parte política - aqui representada pelos fundamentos, justificativas, objetivos, perfil do egresso, competências e habilidades -, quanto na parte pedagógica representada pela matriz curricular, composta por planos de ensino das disciplinas; objetivos de aprendizagens e conteúdo.

Para realizar a análise do PPC foi necessário inicialmente elaborar categorias e, a partir dos documentos analisados, as unidades de registro (UR) para cada categoria. Foram estabelecidas três categorias. Categoria 1: Explicitação das relações étnicos raciais e a saúde da população negra, nos fundamentos e justificativa para a formação médica. Categoria 2: Aspectos étnico-racial afro-brasileiro nos objetivos, habilidades e competências. Categoria 3: relações étnico-raciais na organização e no conteúdo curricular.

2.2.3 Coleta de Dados

Os dados foram coletados no período de agosto de 2016 a abril de 2017. Inicialmente foi realizado um levantamento nos documentos de referência - DCN para o Curso de Graduação em Medicina, nas DCN para Educação das Relações Étnico-Raciais e na Política de Saúde da População Negra, analisando artigos e parágrafos na perspectiva de elaborar as UR e de identificar os aspectos relacionados à saúde da população negra. Em seguida, a estrutura do PPC e a matriz curricular do curso de medicina da FAMED foram analisadas, visando identificar em que áreas e conteúdos as relações étnico-raciais, para a formação médica na perspectiva da saúde da população negra, estavam contempladas.

2.2.3.1 Instrumento de Coleta de Dados

Para a construção dos dados foi elaborada uma matriz instrumental, objetivando um norteamento para a obtenção das informações com categorias prévias, elegidas a partir do referencial teórico e descritas no quadro abaixo:

Quadro 1. Categorias e Subcategorias

Categoria 1- Explicitação das Relações Étnico-Raciais e a Saúde da População Negra nos Fundamentos e Justificativas para a Formação Médica

Elementos que consideram a abordagem ao perfil epidemiológico, condições de vida, e realidade social da população negra

Categoria 2 – Aspectos étnico-racial afro-brasileiro nos objetivos, Habilidades e Competências

Elementos que valorizem os aspectos éticos/humanísticos considerando o viés racial para a formação médica

Categoria 3 – Relações Étnico-Raciais na Organização e no conteúdo curricular

Elementos que considere o viés étnico racial nas abordagens de temas sobre da Saúde da População Negra no ensino de graduação em medicina

Subcategorias

Contextualização da Saúde da População Negra

Humanização e Saúde da População Negra

Política de Saúde da População Negra

Nosologia da Saúde da População Negra

Semiologia e atendimento da População Negra

Farmacologia Perspectiva Saúde da População Negra

Ética, Bioética e Espirituali-dade

2.2.4 Análise dos Dados

Os dados foram discutidos na perspectiva da análise de conteúdo, utilizando os referenciais das relações étnico-raciais e da política de saúde integral da população negra, com o propósito de escoimar, em cada texto, o núcleo emergente que atendesse aspectos objetivos e subjetivos contidos no Projeto Político Pedagógico, nas dimensões política e pedagógica, buscando desvelar questões relacionadas à temática Saúde da População Negra - SPN durante a formação.

Assim, para a categoria 1- Explicitação das Relações Étnico-Raciais e a Saúde da População Negra nos Fundamentos e Justificativas para a Formação Médica - a análise do PCC foi realizada nos fundamentos e justificativas para a formação médica, observando as abordagens quanto ao perfil epidemiológico, condições de vida, e realidade social da população negra. Já na categoria 2 - Aspectos étnico-racial afro-brasileiro nos objetivos, Habilidades e Competências - foram observados se os objetivos do curso, o perfil do egresso e o desenvolvimento de habilidades e competências apresentavam os elementos que valorizavam os aspectos éticos humanísticos considerando o viés racial para a formação médica.

Por fim, na categoria 3 - Relações Étnico-Raciais na Organização e no conteúdo curricular - foram analisadas a organização e o conteúdo curricular para o curso de graduação em medicina, observando nessa fonte documental se essa contempla as relações étnico-raciais e os temas sobre matriz africana e afro-brasileira, no contexto da saúde da população negra. Para tal, a ementa e os planos de atividades das 34 disciplinas obrigatórias do curso foram pesquisados. As subcategorias vinculadas a esta, emergiram dos documentos utilizados como referências fundamentais para o curso de graduação em medicina, e os temas sobre a matriz afro e afro-brasileira no contexto da saúde da população negra.

2.2.5 Aspectos Éticos

Não foi necessário submeter à pesquisa ao comitê de ética em pesquisa, por tratar-se de um estudo documental baseado em dados disponíveis a acesso público e irrestrito.

2.3 Resultados e discussão

Ao observar o PPC da instituição estudada, percebeu-se, a priori, que ele traz em seus inscritos e, em suas propostas de implementação, os caminhos requeridos para o alcance das Relações Étnico-Raciais Afro e Afro-brasileira, preconizada pelas Diretrizes Curriculares de Medicina, Diretrizes Curriculares para Educação das Relações Étnico-Raciais e pela Política de Saúde Integral da População Negra do SUS.

No entanto, o levantamento de dados realizado nos documentos, não foi identificado à inserção materializada do viés étnico-racial enquanto princípio organizativo e pedagógico capaz de operacionalizar o ensino em saúde, a partir do indicado nas DCERER, nas PNSIPN e DCN de Medicina, que permita entendimento de uma concepção de mundo na perspectiva histórico-cultural afro e afro-brasileira e, no processo saúde-doença da população negra.

A análise realizada mostra que o PPC apresenta uma proposta de ensino ancorada nas DCN de medicina e nas políticas de saúde do SUS. Entretanto, não foi apontado explicitamente, referencial sobre as relações étnico-raciais, nem sobre a saúde da população negra.

2.3.1 Categoria 1 - Explicitação das Relações Étnico-raciais e saúde da População Negra nos fundamentos e justificativas da formação médica

Para análise das justificativas para a formação médica foi considerada uma abordagem que permitisse a visibilidade do perfil epidemiológico, condições de vida, e realidade social da população negra na apresentação da realidade e a relevância do debate sobre a temática étnico-racial para o curso de medicina, descritas no Projeto Pedagógico.

Os dados encontrados no PPC pesquisado ressaltam aspectos sobre a geografia local, a epidemiologia e os dados sócio-demográficos populacionais, os determinantes sociais e as necessidades de saúde. No entanto, essa apresentação é feita de forma homogênea sem nenhuma contextualização acerca das diferenças raciais e aos impactos e necessidade de saúde da população negra. Possivelmente, pelo fato do PPC ter sido editado em 2013, período anterior as reformulações das DCN feitas em 2014.

Para o ensino superior, as DCN propõem de forma clara a inserção da temática racial na Atenção em Saúde, o artigo 5º descreve:

[...] o graduando será formado para considerar sempre as dimensões da diversidade biológica, subjetiva, étnico-racial, de gênero, orientação sexual, socioeconômica, política, ambiental, cultural, ética e demais aspectos que compõem o espectro da diversidade humana que singularizam cada pessoa ou cada grupo social [...] (BRASIL, 2014).

As orientações pretendem proporcionar aos discentes, a formação capaz de compreender a complexidade da realidade que envolve a atuação do profissional médico nos diversos cenários, sobretudo, no contexto brasileiro. Além de instrumentalizá-lo para um atendimento clínico baseado no respeito e que considere a singularidade da pessoa, sua cultura e o contexto em que se encontra.

Para Soares Filho (2012), a identificação das diferenças raciais no campo da saúde, é considerada importante, pois permite fazer distinção a respeito das iniquidades geradas no cerne do contexto brasileiro, e contribui para a orientação e formulação de políticas que atenda às necessidades particulares.

Monteiro (2016) ressalta que, dentro do processo de reconhecimento dos determinantes sociais de saúde, que constituem os desafios da Saúde Pública, é preciso considerar, dentre outras questões, a raça-etnia no enfrentamento das razões que determinam a produção e reprodução das desigualdades sociais na sociedade brasileira.

Nos dados sobre o perfil epidemiológico da população brasileira, nos últimos anos, fica evidente que a população negra ainda se encontra em considerável situação de vulnerabilidade, com condições de saúde precárias, com índices elevados no que diz respeito às doenças crônicas e infecciosas (IBGE, 2014). Essa realidade possivelmente influenciada pelo o racismo institucional, que ainda persiste “nas estruturas de organização da sociedade e nas instituições” (BARBOSA, 2017), dificulta a qualificação de profissionais com o propósito de minimizar essas iniquidades.

Entretanto, a demonstração das especificidades contextuais da população negra no PPC, pode possibilitar a justificativa de ensino dessa temática na formação médica, uma vez que o PPC representa um importante elemento no direcionamento de plano de ação da instituição para o alcance de políticas no intuito de oferecer uma formação coerente e efetiva, a qual deve demandar das emergências advindas dos contextos e das exigências legais (GOMES, 2016).

Além disso, os estudos dos dados nessa área comprovam que trazer à tona essa demanda, se traduz em importante estratégia para desnaturalizar a coincidência que equivocadamente se apresenta entre desigualdades sociais e raciais, quebrando o paradigma que concebe e, quando muito a questão racial, como um mero subproduto da desigualdade socioeconômica (IPEA, 2014).

2.3.2 Categoria 2 – Aspectos étnico-racial afro-brasileiro nos objetivos, habilidades e competências

Na formação profissional na área da saúde, a competência exigida se relaciona com o cuidado com o outro, que deverá mobilizar na prática conhecimentos e atitudes que permitam responder de forma satisfatória as demandas e necessidades dos indivíduos e da coletividade (SANTOS, 2011). Nesse processo, porém há que considerar a definição de competências relacionadas com o perfil de profissional que se deseja formar, a partir dos contextos políticos e socioculturais em que atuarão.

Na concepção de Santos (2011) para que as competências sejam adquiridas devem estar claramente definidas, descritas e disponibilizadas para todos os envolvidos no processo educacional. Nesse caso, evidenciar de forma clara os objetivos educacionais voltados à questão racial, no PPC do curso, é uma necessidade, para que haja coerência com os pressupostos que fundamentam a formação e com a legislação vigente.

O PPC em análise menciona, entre as competências descritas, a concepção de educação que tem a práxis como referencial, a partir de uma proposta de formação crítico-reflexiva do egresso, demonstrando o compromisso da instituição em desenvolver, não apenas competências técnicas, mas também a construção de uma sociedade mais justa e comprometida com o sistema de saúde baseados nos princípios éticos e humanos.

Esta concepção está presente nos objetivos, quando afirmam:

Formar médicos [ ...] dentro dos princípios éticos e humanos (PPC, p. 44).

Propiciar uma formação generalista [...] priorizando a relação médico-paciente com senso crítico, fazendo-se transformador da realidade (PPC, 44)

Desenvolver no aluno o pensamento crítico [ ...] (PPC, p. 44).

Propiciar diferentes cenários de ensino aprendizagem, permitindo o aluno conhecer e evidenciar contextos variados de organização social, de trabalho e de cuidados, contribuindo para a sua formação técnica, política e humanista com valores orientados para a cidadania (PPC, p. 44).

Propiciar uma análise crítica permanente e dinâmica da sociedade contribuindo para as transformações exigidas (PPC, p. 44)

Ter como referência o trabalho no Sistema Único de Saúde – SUS para o processo ensino aprendizagem (PPC, p. 44)

Ao orientar as competências para que estejam subsidiadas por elementos que valorizem os aspectos éticos e humanísticos, fica evidente o cuidado para que o PPC seja coerente com os valores preconizados pela instituição, em construir uma sociedade mais justa e comprometida com os princípios do SUS.

Além disso, o PPC apresenta ainda, nas habilidades e competências referências explícitas, quanto à preparação de profissionais para atender a questão da “diferença”, no entanto, não menciona os aspectos étnico-raciais e suas singularidades relacionadas aos afro-brasileiros, conforme descrito a seguir:

Desenvolver capacidade de lidar com as diferenças [...] (PPC p. 61)

Desenvolver diálogo claro e coerente, considerando aspectos sócio-culturais do paciente e da família [...] (PPC p. 63)

As informações descritas no documento pesquisado demonstram uma explícita intenção institucional em garantir uma formação médica voltada à cidadania, muito embora, não se tenha identificado menção à necessidade de reflexão crítica sobre o modo como as relações étnico-raciais tem acontecido.

Vale salientar, que no contexto da sociedade brasileira, esse fato historicamente tem provocado exclusão da população negra, sobretudo nos aspectos socioeconômicos, gerando a pobreza e os desequilíbrios nas condições de saúde desse segmento populacional. Assim, verifica-se a necessidade, cada vez mais, de inserir abordagens sobre essa questão nas reflexões e debate político acerca do processo de construção da cidadania.

Os dados evidenciados na pesquisa nacional de saúde de 2013 apontaram que as condições de saúde do negro comparadas às dos não negros, ainda são consideradas ruins demonstrando que o cuidado à saúde dessa população ainda se encontra precário (IBGE, 2014). São realidades que tornam clara a necessidade de desenvolver competências e habilidades que contemplem a dimensão étnico-racial.

Para Henriques Camelo et al. (2013), a possibilidade de solução das maiores questões de saúde encontra-se nos recursos humanos, pois através de sua influência na atenção e na terapêutica prestadas aos indivíduos e coletividade, podem ser capazes de interferir positivamente na modificação das condições de vida e de saúde da população.

A análise dessa categoria revelou que a instituição visa instrumentalizar o aluno para o desenvolvimento de competências que contemple as dimensões técnica, relacional e contextual. Entretanto, a dimensão racial, não está explícita ou descrita de forma objetiva em nenhuma dessas outras competências utilizadas para instrumentalizar os discentes.

2.3.3 Categoria 3 – Relações étnico-raciais na organização e no conteúdo curricular

A Resolução CNE/CP 01/2004 em seu artigo 5º prevê, para as relações étnico-raciais, que os conteúdos abordados devem colaborar para a correção de posturas e atitudes que implicam desrespeito e discriminação. Assim, os temas abordados sobre o processo saúde doença da população negra, formação em saúde, devem servir para a reflexão e esclarecimento de relações, condutas, estilo de vida, trabalho, valores culturais. A discussão sobre a temática é também uma forma de educar para que “desconstruam estigmas e preconceitos, fortaleçam uma identidade negra positiva e contribuam para a redução das vulnerabilidades” (BRASIL, 2013).

A organização curricular explicita a dinâmica do curso, no que se refere aos conteúdos das disciplinas, a articulação entre eles e as atividades a serem desenvolvidas para oferecer uma formação adequada. Seguindo o que preconiza as DCN, a estrutura do curso de medicina deve:

Artigo 29: A estrutura do Curso de Graduação em Medicina deve: [...]

III - incluir dimensões ética e humanística, desenvolvendo, no aluno, atitudes e valores orientados para a cidadania ativa multicultural e para os direitos humanos (BRASIL, 2014);

IV - promover a integração e a interdisciplinaridade em coerência com o eixo de desenvolvimento curricular, buscando integrar as dimensões biológicas, psicológicas, étnico-raciais, socioeconômicas, culturais, ambientais e educacionais (BRASIL, 2014).

A operacionalização dessa dinâmica formativa, propostas para os conteúdos a serem inseridos na matriz curricular, favorece o comprometimento das instituições formadoras com um ensino baseado no respeito às diferenças étnicas, e com a PNSIPN.

As DCN orientam, dentre outras questões, que se inclua a etnicidade nas anamneses, conforme previsto nos descritores da Atenção às necessidades de saúde individual, artigo 12:

I - Realização da História Clínica prevê

f) identificação dos motivos ou queixas, evitando julgamentos, considerando o contexto de vida e dos elementos biológicos, psicológicos, socioeconômicos e a investigação de práticas culturais de cura em saúde, de matriz afro-indígena-brasileira e de outras relacionadas ao processo saúde-doença; (BRASIL, 2014)

II - Realização do Exame Físico:

c) postura ética, respeitosa e destreza técnica na inspeção, apalpação, ausculta e percussão, com precisão na aplicação das manobras e procedimentos do exame físico geral e específico, considerando a história clínica, a diversidade étnico-racial, de gênero, de orientação sexual, linguístico-cultural e de pessoas com deficiência; (BRASIL, 2014)

Para verificar a presença dessa temática no conteúdo programático, foram analisadas as ementas e planos das 34 disciplinas presentes na matriz curricular do curso de medicina em estudo. Visando auxiliar a análise, 7 subcategorias foram criadas, agrupando 23 unidades de registro.

2.3.3.1 Subcategoria 1 - Contextualização da Saúde da População Negra

Nesta subcategoria classificamos as unidades de registros ligadas à história das populações afro e afro-brasileira, bem como a cultura, determinantes sociais, condições de vida e epidemiologia na perspectiva da problematização sobre a identidade brasileira influenciada pelos arquétipos afro e afro-brasileiro.

Especificamente o termo história das populações afro e afro-brasileira, não foi identificado em nenhuma disciplina, porém no Eixo de Aproximação à Prática Médica e à Comunidade (EAPMC), nas disciplinas Saúde e Sociedade 1, 2, 3 e 4 foram encontrados registros indicativos da interface entre o campo da Saúde e o das Ciências Sociais com possibilidades de abordagens das unidades de registro desta subcategoria, conforme o excerto:

Formar os estudantes sobre a compreensão das diferentes concepções do processo saúde-doença [grifo da autora], reconhecendo a determinação dos aspectos socioeconômicos, político-culturais e ambientais e o papel sócio-político da medicina e do estudante como profissional e cidadão; (Ementa SS1)

2.3.3.2 Subcategoria 2 - Humanização e a saúde da população negra

As unidades de registros elencadas para esta subcategoria referem-se à postura crítica e reflexiva frente às crenças, atitudes, valores discriminatórios e preconceituosos, cuidado centrado na pessoa, família ou comunidade, população livre de estereótipos, racismo e seus efeitos pessoais, interpessoais e institucionais, alteridade e a relação médico-paciente, bioética.

Na análise dos documentos foram identificadas três disciplinas componentes do Eixo de Desenvolvimento Pessoal (EDP), que abordam questões relacionadas às unidades de registros elencadas.

Iniciar o processo de identificação e reflexão dos aspectos éticos que estão sempre presentes nas relações com as pessoas [grifo da autora], sejam elas, colegas, professores, pacientes, sujeitos de pesquisa, profissionais do serviço, membros de equipes diversas e comunidade. (Objetivos de ERP1)

[...] desenvolvimento de habilidades e atitudes adequadas para o exercício profissional e para sua inserção na sociedade como cidadão. (Ementa de ERP2)

Abordagem acerca das diferenças étnico-raciais e suas implicações nas relações pessoais, coletivas e institucional, mais uma vez não se encontram explicitada no texto referência, levando-nos a inferir as entrelinhas.

2.3.3.3 Subcategoria 3 - Política de Saúde da População Negra

A proposta desta subcategoria foi identificar elementos que possibilitem a compreensão e definição da Política de Saúde da População Negra, suas razões e emergência, bem como as especificidades da saúde, compreensão e visão críticas antirracistas quanto aos fatores desencadeadores e determinantes do racismo na atenção à saúde.

Seguindo nessa direção, têm-se razões também para buscar compreender o impacto do racismo nos processos de planejamento e, de gestão em saúde, bem como o histórico do protagonismo negro nas lutas políticas e sociais, nos conselhos e conferências de saúde.

Assim, as unidades de análise utilizadas foram: legislação, conferências e conselhos, planejamento e gestão, atenção - estratégias, programas e práticas.

As disciplinas Saúde e Sociedade 5 e 6 apresentaram descrições acerca de discussão sobre políticas de saúde pública no Brasil, bem como os elementos ligados a planejamento, gestão dos serviços de saúde e as ações de promoção, proteção e recuperação de saúde, enfatiza ainda atuações voltadas atenção à saúde da criança e adolescente, da mulher, bem como a do adulto e do idoso.

Política e legislação da saúde no Brasil (Ementa de SS5)

Identificar os problemas e determinantes da Gerência de unidades básicas de saúde relacionados à atenção à saúde da Criança e do Adolescente, da Mulher, do Adulto e do Idoso; [grifo da autora] (Ementa SS5)

Gestão, planejamento e organização de serviços de saúde. (Ementa de SS6)

Não foi identificado no ementário das referidas disciplinas a intersecção entre os conteúdos abordados com a questão étnico-racial da população negra.

2.3.3.4 Subcategoria 4 - Nosologia e a saúde da população negra

Nesta subcategoria as unidades de registro relacionam-se as doenças de condições genéticas, as doenças adquiridas pelas condições de vida desfavoráveis, as doenças agravadas pelas condições de acesso e condições fisiológicas que sofrem interferências ambientais e evoluem para doenças.

As unidades de registros elencadas apareceram em sua maioria vinculadas aos conteúdos das disciplinas Semiologia, Propedêutica 1, 2 e 3, Saúde do Adulto e do Idoso 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, Saúde da Mulher 1, 2, Saúde da Criança e do Adolescente 1, 2, Psiquiatria de Urgência, Saúde e Sociedade 7, Medicina Legal do Eixo Teórico-Prático-Integrado (ETPI).

Embora se preconize evidências científicas que, no Brasil as diferenças raciais em muito tem contribuído para manter a baixa qualidade da saúde da população negra, tornando as nosologias, oriundas das más condições de vida e as agravadas pela falta de acesso aos serviços de saúde, bem como as que se originam a partir das condições fisiológicas que por sofrerem interferências evoluem para doença, como sendo mais prevalentes junto à população negra, tais agravos, não são revelados dentro dos conteúdos com referência ao viés étnico-racial, conforme as citações abaixo:

Realização da anamnese e do exame físico e estudo das modificações fisiológicas durante o ciclo gravídico-puerperal. Rotina de seguimento clínico pré-natal. Compreensão do processo de parto e dos procedimentos de assistência ao parto normal. (Ementa SM)

Estudo da fisiopatologia, do quadro clínico e do prognóstico das principais doenças nas áreas de cardiologia, pneumologia, endocrinologia e cirurgia vascular. (Ementa SAI1)

Estudo da fisiopatologia, do quadro clínico e do prognóstico das principais doenças da criança e do adolescente... (Ementa SCA1)

Habilitar nas técnicas propedêuticas e habilidades de diagnóstico clínico, laboratorial, tratamento e prevenção das principais patologias do trabalho. (Ementa SS7)

Estudo da fisiopatologia, do quadro clínico e do prognóstico das principais doenças nas áreas de otorrinolaringologia e oftalmologia segundo critérios de incidência, prevalência e importância pedagógica. (Ementa SAI3)

Enfoque na vigilância à saúde como uma prática sanitária de organização da assistência em situações de riscos e agravos da saúde da população, as especificidades individuais e sua relação com o coletivo e as estratégias de intervenção, sob a perspectiva do cuidado, em busca de soluções conjuntas para promover, proteger e recuperar a saúde com vistas à qualidade de vida da população. (Ementa Semiologia Integrada)

O descrito nas ementas e planos das disciplinas apresenta uma predominância do enfoque objetivo relacionada à observação das causas e origens das doenças, incidência e prevalência dessas, bem como na descrição do quadro clínico e fisiopatológico, sem menção explícita que considere a especificidade da saúde da população negra.

No tocante à unidade de registro relacionada às condições genéticas como a doença falciforme que aparece no conteúdo da disciplina Saúde do Adulto e do Idoso 4, Hipertensão arterial e Diabetes Mellitus estão previstos na Saúde do Adulto e do Idoso 1 e glaucoma na Saúde do Adulto e do Idoso 3, mesmo que de forma pontual, são explicitamente abordadas.

[...] Doença Falciforme [...] (Plano da Disciplina SAI 4)

[...] Hipertensão Arterial Sistêmica [...] (Plano da disciplina SAI 1)

[...] Diabetes Introdução E Classificação [...] (Plano da disciplina SAI1)

[...] Glaucoma [...] (Plano da Disciplina SAI 3)

Vale destacar que, muito embora, encontremos discurso com viés equivocado, estudos apontaram que alguns agravos como a hipertensão arterial e diabetes mellitus geneticamente, a população negra mostra-se mais suscetível a essas enfermidades (OLIVEIRA, 2001; BRASIL, 2001; VAN DEURSEN VARGA; CARDOSO, 2016).

2.3.3.5 Subcategoria 5 - Semiologia e o atendimento População Negra

Para esta subcategoria as unidades de registro buscaram elementos que considerem a peculiaridade na comunicação, a inclusão do quesito cor na perspectiva da identificação étnico-racial e percepção da concepção de saúde-doença na cosmovisão mítica e religiosa afro-brasileira, avaliação genética e das condições socioeconômica.

Na análise dos documentos, foi possível observar que as disciplinas Semiologia e Saúde e Sociedade 2 consideram alguns aspectos específicos e relacionados a questões sociais das populações, mas não cita fatores estritamente condicionados às populações afro-brasileiras:

Enfoque na vigilância à saúde como uma prática sanitária de organização da assistência em situações de riscos e agravos da saúde da população, as especificidades individuais [grifo da autora] e sua relação com o coletivo e as estratégias de intervenção, sob a perspectiva do cuidado, em busca de soluções conjuntas para promover, proteger e recuperar a saúde com vistas à qualidade de vida da população. (Ementa Semiologia Integrada)

Reflexão sobre cadastros; diagnóstico da saúde da comunidade e acompanhamento das famílias. (Ementa SS2)

[...]reconhecimento dos aspectos culturais, sociais e religiosos da doença... (Ementa Semiologia Integrada)

[...]desenvolvimento de atividades contextualizadas na realidade sócio-sanitária da população, contemplando ações de promoção da saúde, prevenção, cura das doenças e recuperação da saúde, proporcionando uma visão integral do ser e seu adoecer. (Ementa Semiologia integrada)

O foco está no preparo para as intervenções que precisam ser feitas, a considerar as dimensões biopsicossociais, que visam instrumentalizar os discentes para o exercício da clínica, a partir da prática semiológica que permita, no entanto, o reconhecimento dos vários aspectos relacionados à doença e às questões culturais, sociais e religiosas.

Quanto à dimensão étnico-racial, não foi identificado menção acerca da singularidade e das diferenças, para distinguir as especificidades nos processos de diagnósticos e prognósticos de doenças e agravos à SPN.

2.3.3.6 Subcategoria 6 - Farmacologia na perspectiva da saúde da população negra

As unidades de registros dessa subcategoria se relacionaram aos seguintes enfoques: resposta medicamentosa, políticas farmacêuticas e remédios populares.

Nas disciplinas Princípios da Farmacologia, Agressão e Defesa e Saúde do Adulto e do Idoso 4 foram encontrados objetivos que descrevem como conceitos básicos da farmacologia, os princípios diretamente relacionados às consequências biológicas, resposta medicamentosa. Quanto aos protocolos terapêuticos e processos de distribuição pela rede SUS de medicamento, que se relacione com as políticas de atenção farmacêutica à saúde - ligadas à diversidade, parecem ser ignoradas. As disciplinas apresentam as seguintes ementas e objetivos:

Desenvolver habilidades para realização de testes Introdução dos conceitos básicos de Farmacologia Geral visando à capacitação do estudante para o entendimento da terapêutica medicamentosa.

Compreensão dos fundamentos do uso racional de medicamentos. (Ementa SAI4)

[...] e análises laboratoriais relacionadas a imunologia, microbiologia, parasitologia, anatomia patológica e farmacologia.

Identificar e descrever os aspectos biopsicossociais, legais e éticos no processo saúde-doença (Objetivos da disciplina Agressão e Defesa).

Introdução dos conceitos básicos de Farmacologia Geral visando à capacitação do estudante para o entendimento da terapêutica medicamentosa.

Compreensão dos fundamentos do uso racional de medicamentos.

(Ementa: Princípios da Farmacologia)

Ensinar os fundamentos da Farmacologia como ciência e sua importância dentro do processo saúde-doença.

Despertar uma consciência crítica a respeito dos medicamentos, das suas interações medicamentosas e das interações com os organismos vivos, bem como os riscos envolvendo o uso irracional dos medicamentos. (Objetivos da disciplina Princípios da Farmacologia)

No que diz respeito aos “remédios” adotados de geração em geração, que fazem parte da tradição, saberes e práticas populares de saúde assumidos pelas religiões de matriz africana, também não foram identificados nas ementas e planos dos conteúdos das disciplinas analisadas.

2.3.3.7 Subcategoria 7 - Ética, Bioética e Espiritualidade

Essa subcategoria refere-se aos indícios da cosmovisão africana na perspectiva do cuidado.

Os conteúdos de ética e bioética, presentes, na matriz curricular do curso estudado foram encontrados transversalizados nas disciplinas de Ética e Relações Psicossociais e de Deontologia, com indicações relacionadas a duas dimensões: a relacional que parte da necessidade de perceber os conflitos que decorrem da relação com as pessoas e dimensão regulamentadora da prática profissional. Não foi observada referência à unidade de registro elencada nesta subcategoria.

Diante da análise das 34 disciplinas contidas no Eixo teórico-prático, trinta apresentam conteúdos capazes de integralizar as temáticas descritas nas unidades de registro. Entre as 23 unidades de registro elencadas, 21 foram identificadas considerando inferências implícitas nos assuntos abordados. No que se refere às nosologias consideradas prevalentes na população negra, apenas as de condições genéticas apareceram com abordagens pontuais, porém, nenhuma delas trouxe explicitamente o viés racial em seus conteúdos.

Vale destacar que, a saúde da população negra não se limita a questão genética, e os agravos que acometem essa população envolvem uma complexidade de fatores. Neste sentido, pondera-se que os discentes necessitem vivenciar uma abordagem ampla, que possibilite a compreensão e visão crítica e antirracista quanto aos fatores desencadeadores e determinantes do racismo na atenção à saúde e seus impactos nos processos de planejamento e gestão.

As DCN apontam também a necessidade de considerar essa temática nos processos de diagnóstico e tratamento, conforme aponta o artigo 13:

Artigo 13 no descritor

I - Elaboração e Implementação de Planos Terapêuticos:

b) discussão do plano, suas implicações e o prognóstico, segundo as melhores evidências científicas, as práticas culturais de cuidado e cura da pessoa sob seus cuidados e as necessidades individuais e coletivas (BRASIL, 2014).

Além disso, abordagens que estimulem a tomada de decisão acerca de diagnósticos e tratamentos, na evolução clínica dos pacientes são necessárias, evitando negligências e consequências negativas na qualidade da atenção de pacientes acometidos por patologias (LANGUARDIA, 2006; FIGUERÓ; RIBEIRO, 2017).

Embora, os estudos evidenciam que raça não é um conceito biológico aplicado ao ser humano, no Brasil, faz parte de um construto sociocultural e ideológico que compromete as relações sendo usado para hierarquizar as pessoas e justificar tratamento diferenciado (VOLOCHKO; VIDAL, 2010). Tornando-se necessário problematizar tais realidades nos diversos campos do saber, inclusive na formação em saúde, pois muitos conteúdos são vistos na perspectiva de uma abordagem biológica, a qual, em várias ocasiões, usam as questões raciais para justificar problemas e necessidades de saúde inerentes à população a negra.

2.4 A guisa de considerações

A inserção da temática étnico-racial afro e afro-brasileira, nos currículos em saúde é uma forma de atender as demandas emergentes e, se constitui em uma oportunidade de ampliação dos conhecimentos sobre a diversidade cultural da sociedade brasileira, sua história, bem como sua influência na cultura local e no processo saúde-doença.

A pesquisa identificou que há um silenciamento no PPC, do curso de medicina estudado, sobre a realidade da Saúde da População Negra na estrutura, organização e nas intencionalidades descritas no PPC e nos conteúdos, embora haja, algumas referências pontuais de temas sobre doenças, consideradas científica e geneticamente, prevalentes na PN, não há evidências explícitas sobre discussões que considere o viés racial.

Por outro lado, foi observado que a instituição possui uma organização curricular fundamentada em paradigmas que permitem aproximações com as Relações Étnico-Raciais, com possibilidades significativas de inserção transversal da temática, necessitando adequações e ajustes na organização de sua matriz curricular, bem como nas ementas e planos das disciplinas a fim de possibilitar a integralização dessa temática em todos os eixos formativos do curso.

Os dados que evidenciam uma invisibilidade da questão étnico-racial não devem ser considerados como sendo a realidade total, uma vez que, nos limitamos a examinar apenas os documentos que competem ao ensino de disciplinas obrigatórias, deixando propositalmente, de analisar as disciplinas eletivas e, as proposições e ações ligadas à pesquisa e à extensão.

Destaca-se ainda que os documentos caracterizam-se como anúncio das políticas e ações pedagógicas pretendidas, o que nem sempre reflete o que é praticado na ação cotidiana do ambiente escolar, trazendo implicações limitantes para esse estudo.

Ressalta-se a questão da literatura, acerca da especificidade do tema deste estudo, a qual tem se demonstrado tímida na área de currículo para a formação médica, o que limitou as discussões dos resultados, evidenciando que a invisibilidade para a temática étnico-racial, encontrada nesse estudo, não é algo específico da instituição estudada. Todavia, essa realidade possibilitou maior relevância ao estudo.

Referência

BARBOSA, Leonardo et al. Racismo institucional e as oportunidades acadêmicas nas IFES. Revista Brasileira de Ensino Superior, v. 3, n. 3, p. 80-99, 2017.

BATISTA, Karina Barros Calife; GONCALVES, Otília Simões Janeiro. Formação dos profissionais de saúde para o SUS: significado e cuidado. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 4, p. 884-899, Dec. 2011.

BRASIL, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Censo Demográfico. Resultados do universo. Agregados por setores censitários IBGE. 2010.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília/DF: Senado Federal; 1988.

BRASIL. Índice de vulnerabilidade Juvenil à Violência 2017 - Desigualdade Racial - Municípios com mais de 100 mil habitantes. SNJ/PR. São Paulo, 2017.

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Pesquisa Nacional de Saúde 2013: percepção do estado de saúde, estilos de vida e doenças crônicas: Brasil, grandes regiões e unidades da federação. IBGE. Rio de Janeiro, 2014.

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Síntese de Indicadores Sociais – Uma análise das condições de vida da população brasileira. IBGE. Rio de Janeiro, 2013.

BRASIL. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Situação social da população negra por estado. IPEA, 2014.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Manual de doenças mais importantes, por razões étnicas, na população Brasileira afro-descendente. Brasília/DF. MS, 2001.

BRASIL. Parecer nº 03/2004 de 10 de março de 2004. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. MEC/CNE. Brasília/DF.

BRASIL. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Etnico-raciais e para o Ensino de História E Cultura Afro brasileira e Africana. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão: MEC/SECADI, 2013.

BRASIL. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política do SUS. 2 ed. Brasília/DF. Ministério da Saúde, 2013.

BRASIL. Portaria 992/2009 de 13 de maio de 2009. Institui a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Ministério da Saúde - MS/GM Brasília/DF.

BRASIL. Racismo como determinante social em saúde. SEPPIR/PR. Brasília/DF, 2011.

BRASIL. Resolução no 01 de 17 de junho 2004. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. MEC/CNE/CP.

BRASIL. Resolução nº 03 de 03 de junho 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina. MEC/CNE/CES.

DOS SANTOS, Wilton Silva. Organização curricular baseada em competência na educação médica. Revista Brasileira de Educação Médica, v. 35, n. 1, p. 86-92, 2011.

FIGUEIRÓ, Alessandra Varinia Matte; RIBEIRO, Rosa Lúcia Rocha. Vivência do preconceito racial e de classe na doença falciforme. Saúde e Sociedade, v. 26, n. 1, p. 88-99, 2017.

GOMES, Andréia Patrícia et al. Transformação da educação médica: é possível formar um novo médico a partir de mudanças no método de ensino-aprendizagem. Rev bras educ méd, v. 35, n. 4, p. 557-66, 2011.

GOMES, Marta Quintanilha. A construção de projetos pedagógicos na formação de profissionais da saúde. IJHE-Interdisciplinary Journal of Health Education, v. 1, n. 1, 2016.

HENRIQUES CAMELO, Silvia Helena; SAPORITI ANGERAMI, Emília Luigi. Competência profissional: a construção de conceitos, estratégias desenvolvidas pelos serviços de saúde e implicações para a enfermagem. Texto & Contexto Enfermagem, v. 22, n. 2, 2013.

LAGUARDIA, Josué. No fio da navalha: anemia falciforme, raça e as implicações no cuidado à saúde. Revista Estudos Feministas, v. 14, n. 1, 2006.

LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli EDA. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. 1986.

MONTEIRO, Rosana Batista. Educação permanente em saúde e as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das relações étnico-raciais e para ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Saúde e Sociedade, v. 25, n. 3, p. 524-534, 2016.

MONTEIRO, Simone; MAIO, Marcos Chor. Etnicidade, raça e saúde no Brasil: questões e desafios. Críticas e atuantes: ciências sociais e saúde na América Latina. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, p. 473-485, 2005.

MUNANGA, Kabengele. Negritude-usos e sentidos. Coleção cultura negra e identidades. Autentica, 2015.

NASCIMENTO, Elisa Larkin. O sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil. Selo Negro, 2003.

OLIVEIRA, Fátima. Saúde da População Negra. Organização Pan-Americana da Saúde. 1ed. Brasília, 2002.

PEREIRA, Ingrid; LAGES, Itamar. Diretrizes curriculares para a formação de profissionais de saúde: competências ou práxis?. Trabalho, educação e saúde, v. 11, n. 2, p. 319-338, 2013.

SOARES FILHO, A. M. O recorte étnico-racial nos Sistemas de Informações em Saúde do Brasil: potencialidades para a tomada de decisão. In: BATISTA, Luís Eduardo; WERNECK, Jurema; LOPES, Fernanda (Orgs.). Saúde da população negra. ABPN-Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, 2012.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS. Faculdade de Medicina. Projeto Pedagógico do Curso, 2013.

VAN DEURSEN VARGA, István; CARDOSO, Raimundo Luís Silva. Controle da hipertensão arterial sistêmica na população negra no Maranhão: problemas e desafios. Saúde e Sociedade, v. 25, n. 3, p. 664-671, 2016.

VOLOCHKO, Anna; VIDAL, Natália de Paula. Desigualdades raciais na saúde: mortalidade nas regiões de saúde paulistas, 2005. BIS. Boletim do Instituto de Saúde (Impresso), v. 12, n. 2, p. 143-153, 2010.

Revista Brasileira de Ensino Superior, Passo Fundo, vol. 4, n. 3, p. 34-56, Julho-Setembro, 2018 - ISSN 2447-3944

[Recebido: Abril 04, 2018; Aceito: Setembro 05, 2019]

DOI: https://doi.org/10.18256/2447-3944.2018.v4i3.2606

Endereço correspondente / Correspondence address

Maria Cristina da Conceição

Universidade Federal de Alagoas

Rua Lourival, Cidade Universitária - Tabuleiro dos Martins, Maceió – AL, Brasil. CEP: 57072-900

Como citar este artigo / How to cite item: clique aqui!/click here!

Sistema de Avaliação: Double Blind Peer Review

Editora: Thaísa Leal da Silva

Enlaces refback

  • No hay ningún enlace refback.




e-ISSN: 2447-3944

 Licença Creative Commons
A Revista Brasileira de Ensino Superior está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

Indexadores

DOAJ.jpg latindex.jpg  
  REDIB  Diadorim.jpg
     
logos_DOI_CrossRef_CrossChek.png

  
 
 


  logos_DOI_CrossRef_CrossChek.png